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CAPÍTULO 1 ASPECTOS DE UMA POLÍTICA CULTURAL

1.3 Produção oculta

Cremos ser produtivamente incômoda a escolha do termo produção oculta para nomear a criação artística realizada não profissionalmente. Isto porque, ao dizer que uma produção está oculta e que a “des-ocultação” desta produção é desejável, deveremos determinar a quem está oculta esta produção e qual o sentido de sua “des- ocultação”. Evidentemente que, ao relacionar esta produção oculta à produção artística

realizada na periferia, estamos determinando que a necessidade desta produção seja a sua revelação para o público e para a produção da região central da cidade. Não sem motivo, em diversas ocasiões de contato com a população, ao reproduzir o discurso programático da Secretaria Municipal de Cultura, fomos desafiados com o popular jargão: “Oculta para quem, cara pálida?”. Isto posto, percebemos que a escolha deste termo nos dá um amplo espectro de questões a serem avaliadas numa proposição de política cultural que se pretendesse em movimento crítico e contínuo no contato com a realidade da cidade.

Como explicitaremos nos capítulos seguintes, o Programa de Teatro Vocacional (sintomaticamente chamado de Projeto de Teatro Vocacional durante os quatro anos de nossa coordenação, explicitando seu caráter processual de concepção) caracterizou-se, em sua construção e revisão continuada durante os quatro anos da gestão, por qualificar esta produção dita “oculta” através do questionamento crítico das concepções poéticas das montagens dos grupos, por fomentar a formação de novos grupos e por criar uma rede de comunicação não horizontal – centro-periferia – e sim radial – cada grupo como um pólo gerador e agremiador – entre os grupos da cidade.

Esta concepção de comunicação radial, de certo modo, problematiza os termos usados na formulação do eixo veiculação e difusão de uma produção oculta na/da

cidade. Isto porque, se optarmos por uma visão horizontalizada da troca centro-

periferia, teremos que, inevitavelmente, conjugar duas visões bastante esquemáticas dos objetivos desta troca. Algo que não daria conta da proposta mais vertical do Projeto.

Observando a proposição da troca neste sentido horizontal (a partir de uma leitura não crítica da proposição), poderíamos entender o caráter de desocultamento desta produção como um traço de uma política apenas “assistencialista”, que entende como necessária a viabilização do reconhecimento desta produção por um centro

detentor do conhecimento estético. Ou seja, uma política comprometida com a circulação desta produção no sentido da periferia para o centro. Uma política cultural que entende a necessidade de um desvelamento, para este centro, de uma produção artística desconhecida e estranha a ele, com o intuito de democratizar a cultura consagrada, canônica, propondo seu intercâmbio com as manifestações populares espontâneas. Ou seja, se a leitura rasa desta proposta revela um comprometimento com o reconhecimento público da produção periférica, ela também aponta para um ideal (ou seja, para algo idealizado) de construção de uma identidade própria da arte na cidade, que mescle o que é consagrado às manifestações mais marginais.

No sentido inverso, mas ainda numa direção horizontal, poderíamos compreender limitadamente este desocultamento como traço embrionário de uma política “iluminista” que antevê a necessidade de levar a cultura, no nosso caso a arte, aonde ela não chega; difundir as manifestações consagradas, assim como seu pensamento gerador, para a periferia desconhecida. Ou seja, propor um intercâmbio no sentido do centro para a periferia.

Ambas as leituras não devem ser descartadas e guardam ambas expectativas legítimas da política proposta na gestão 2001-2004. Contudo deveremos olhar criticamente para os riscos envolvidos, tanto no olhar apenas “assistencialista” – que pode ser demasiado condescendente e até demagógico – ou apenas “iluminista” – que pode pecar por um centralismo autoritário e elitista, conseqüentemente limitado e ingênuo.

O Projeto de Teatro Vocacional, todavia, conjugou uma formulação que não abandonava os dois aspectos, mas reformulava os sentidos “periferia-centro/centro-

periferia” num encontro não apenas espacial e pré-determinado, mas crítico. A base

obra teatral frente ao seu reconhecimento público ou à confluência em si de um referencial consagrado, mas frente à sua coerência estética interna. Mas, para tanto, não podem ser desconsiderados estes dois aspectos – a difusão e a apreciação da obra criada e a confrontação da mesma com conhecimentos sedimentados – como ferramentas importantes para a qualificação e a verticalização da poética das obras teatrais realizadas pelos artistas não-profissionais.

Assim, aprimorando o olhar para os eixos propostos pelo Secretário Marco Aurélio Garcia, percebemos que a adoção do segundo eixo – veiculação e difusão de

uma produção oculta na/da cidade – deu-nos, por um lado, um norte para estabelecer

uma tensão necessária ao questionamento das práticas e expectativas dos grupos não- profissionais ocupantes dos espaços públicos, e, por outro, a consciência da necessidade de refletirmos sobre uma política formulada para a conformação, ou revelação, de uma

identidade cultural. Ao aceitar a necessidade de uma reflexão crítica a respeito destes

aspectos, inscrevemo-nos diretamente no terceiro eixo proposto – elaboração de um

pensamento estético crítico que refletisse as questões mais relevantes do século XX.

Em relação às expectativas dos grupos vocacionais, a proposição de uma reflexão que revelava não apenas as questões internas ao grupo, mas sua própria veiculação ao século XX (início do século XXI), ou seja, a sua existência e inscrição no contemporâneo, evidenciava um paradigma distinto que realocava a pertinência do teatro não-profissional não em função do teatro profissional, mas em função da própria linguagem teatral. Em relação à proposta de uma política voltada para questões de

identidade cultural, a indicação de um filtro de reflexão estética nos reposicionava

diante de uma elaboração não apenas cultural, mas artística, portanto estrategicamente distante das questões de política social.

2. Diálogo com as Administrações dos Equipamentos e Arte como Crítica da