• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2 UMA PEDAGOGIA EM BUSCA DO TEATRO COMO AÇÃO

4. Autonomia ou Emancipação?

4.2 Seguir em Frente

Voltemos-nos para a segunda questão recorrente no relatório de Rinaldi e diretamente relacionada às questões da comunidade e do grupo. Trata-se de um dos princípios motores do Projeto que aqui gostaríamos de rever e analisar: a busca da

autonomia.

O que significa buscar a autonomia?

Percebemos um pequeno equívoco no emprego deste termo na época da elaboração do Projeto. Dizer que um indivíduo deve “buscar sua autonomia” é colocar esta autonomia para além dele, como meta e não como uma acepção intrínseca a ele. Significa não considerá-lo a priori autônomo. Algo diferente da expressão: “lutar para ter sempre sua autonomia respeitada”, o que, em certos casos, torna-se necessário. Todavia, não buscávamos nenhum dos dois sentidos ao almejar a autonomia dos grupos vocacionais. Creio que o sentido que adotávamos para o termo aproximava-se mais do conceito de emancipação do que de autonomia. Tal aspecto nos ficou claro a partir da leitura de um autor desconhecido até 2002 ao Projeto, mas que se tornaria fundamental para as bases de nossa pedagogia: o pedagogo Paulo Freire.

Para compreender como Freire entende autonomia e emancipação, necessitamos arrolar alguns outros conceitos que o autor elabora ao longo de sua obra/vida e que estão maravilhosamente expressos no seu livro “Pedagogia da Autonomia, saberes necessários à prática educativa”. Para o pedagogo, ensinar exige a consciência do

inacabamento dos seres, assim como o reconhecimento do fato de que somos, todos,

seres condicionados. O inacabamento do ser humano é próprio da experiência vital. O que vive é inacabado, e será o esforço da busca pela sua completude que gerará as transformações necessárias que alimentam a vida. É, contudo, prerrogativa do ser humano, e não de outros seres vivos, a consciência deste inacabamento. Esta

inconclusão do homem é reconhecida, por ele, através da sua capacidade de ação sobre o mundo. O homem é capaz de intervir no mundo, de comparar, de ajuizar, de decidir, de escolher, de romper, e isto o faz um ser ético, um ser capaz de agir sobre o mundo a favor ou contrariamente a esta ética. Freire diz que gosta de ser homem porque:

(...) não está dado como certo, como inequívoco, irrevogável que sou ou serei decente, que testemunharei sempre gestos puros, que sou e que serei justo, que respeitarei os outros, que não mentirei escondendo o seu valor porque a inveja de sua presença no mundo me incomoda e me enraivece. Gosto de ser homem porque sei que minha passagem pelo mundo não é predeterminada, preestabelecida. Que o meu “destino” não é um dado, mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade não posso me eximir. Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidade e não de determinismo.120

Deste modo, a idéia de inacabamento em Freire relaciona-se diretamente à nossa responsabilidade como seres históricos e políticos, que agem no mundo para transformá-lo. Nossa autonomia relaciona-se a este inacabamento porque a forma, as decisões, as atitudes que tomaremos em busca de nossa completude, através de nossa ação sobre o mundo, são individuais e únicas. Assim, somos seres autônomos e devemos ter esta condição respeitada. Contudo, devemos estar conscientes de que somos também seres condicionados, porque inseridos numa História que fazemos e numa História que nos faz. Então, a autonomia em Freire não é a autonomia idealizada que leva o indivíduo, inevitavelmente quando acessada, ao esclarecimento, ao

120

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia, saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996 (Coleção Leitura), p. 52-53.

entendimento dos caminhos que deve trilhar para tornar-se e manter-se livre. Esta idéia de uma razão como guia infalível para a liberdade deve ser compreendida em contraponto às idéias desenvolvidas por Freire através de seu pensamento crítico, pensamento materialista histórico. O homem, como ser ético e consciente de sua inconclusão, não é vítima de um destino com o qual ele não pode lutar, mas é um ser que, coletivamente, constrói uma História e é construído por ela. Então, ele é autônomo, mas pode não ter esta autonomia respeitada, pode ser alijado dela e manter-se não livre por condições impostas a ele sob o manto de “fatalidades do destino”. O caminho da liberdade neste contexto é o caminho da conscientização das condições que mantêm o homem alijado de sua autonomia. Para Freire, o percurso a ser trilhado não é o percurso da conquista da autonomia (natural ao homem), mas o caminho da

emancipação através do conhecimento, como práxis coletiva. A emancipação,

diferentemente da autonomia, não pode ser entendida como atributo individual, privado, mas apenas como atributo coletivo, social.

Deste ponto de vista, não nos parece precisa a expressão “busca da autonomia do grupo vocacional”. Em primeiro lugar, porque esta busca, empreendida pelo grupo, deveria ser coletiva e não individual. Em segundo lugar, porque desde já considerávamos os integrantes dos grupos como seres autônomos e nos esforçávamos para respeitar sempre esta autonomia.

Poderíamos, contudo, manter a expressão, ainda que imprecisa, se nosso objetivo fosse apenas garantir a sobrevida do grupo vocacional na ausência de um artista-orientador ou do apoio público: o grupo tornar-se autônomo, independente. Mas tal perspectiva, embora também almejada, parece-nos limitante em relação à pedagogia geral do projeto. Acreditamos que esta sobrevivência só seria alcançada através da apropriação dos meios de produção do discurso poético. E isto significa afirmar que a

consciência do nosso condicionamento e a luta pela emancipação dos artistas vocacionais era o fundo necessário e motor para a busca incessante do conhecimento que move a criação artística, mas que vai além dela. Ao saber-nos inconclusos, e estarmos conscientes de que esta inconclusão nos leva a tomar as decisões necessárias para intervir no mundo, em busca de tornarmos-nos cada vez mais sujeitos da nossa História, estávamos operando coletivamente um processo de emancipação que não se limitava à ação teatral.

Mas quais as perspectivas de um projeto emancipatório? Quais as perspectivas, hoje, deste projeto e quais seus reflexos nos objetivos do Projeto de Teatro Vocacional? Nosso entendimento compõe-se em grande parte pelos primados que orientam a Teoria Crítica.