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CAPÍTULO 1 ASPECTOS DE UMA POLÍTICA CULTURAL

2. Diálogo com as Administrações dos Equipamentos e Arte como Crítica da

2.6 Relato das dificuldades

Vemos em alguns relatórios de avaliação do Projeto nos diferentes equipamentos (enviados para a diretoria do Departamento de Teatro durante os 3 anos e meio de atuação) exemplos destes dois embates, que se alongaram por todo o período da gestão. Citamos a seguir alguns exemplos.

Ao final de 2001, relatávamos nossas primeiras experiências com as gestões dos equipamentos.

A maior dificuldade que encontramos foi estabelecer um diálogo claro com as coordenações dos equipamentos e com os movimentos culturais de cada região. A falta de costume de um diálogo construtivo, com as contradições características do debate de idéias, aliada à falta de costume de uma proposição objetiva de política cultural, tem dificultado muito nosso trabalho. Acredito, porém, que apesar de nossa decepção por encontrar um enorme empobrecimento da capacidade de elaboração crítica da população em geral, incluindo os funcionários dos equipamentos, em função de anos de abandono do poder público e da ausência de políticas culturais, caminhamos onde o problema se acirra, iniciando um diálogo esquecido entre os equipamentos e estabelecendo um enorme esforço coletivo de trabalharmos integrados. O trabalho é lento, mas temos nos concentrado na criação de bases sólidas para que o trabalho seja incorporado, tanto pelos equipamentos quanto

pela população, tornando-se parte orgânica da rotina de cada região, podendo, assim, estabelecer uma via de mão dupla entre uma produção profissional de qualidade e a chamada produção oculta de cada comunidade.51

Relendo hoje o texto, parece-nos que ainda tínhamos uma visão ingênua de como estas dificuldades respondiam a características arraigadas nas conformações do poder público municipal das organizações políticas envolvidas na gestão. No início de 2002, um novo texto dá conta da profundidade destas idiossincrasias:

Das dificuldades da atuação do programa de teatro vocacional

O Programa de Teatro Vocacional está, no mês de Maio, completando um ano do início de sua implantação e neste momento achamos necessário fazer uma reflexão sobre as dificuldades que enfrentamos no cotidiano dos equipamentos em que atuamos. (...) Para a realização do programa decidimos atuar em rede pela cidade estabelecendo parcerias com os equipamentos dos demais departamentos, porque entendemos que este é o “braço” de contato direto da política cultural desta Secretaria com a população. Porém, além das dificuldades de realização de um trabalho que deve ser muito maleável, já que atinge diferentes grupos, em diferentes situações sociais e de realidade de bairro, temos encontrado enorme dificuldade em estabelecer um trabalho coletivo nos equipamentos. Ao estabelecermos parcerias com os demais Departamentos, esperávamos encontrar um objetivo claro, condizente com as diretrizes da política cultural desta gestão, na atuação direta com a

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população. Isto porque, para o bom resultado do programa, não podemos ter um caráter pontual ou eventual, e sim precisamos criar condição de aproximação com a população para incentivar o entendimento do sentido de espaço público. Os profissionais com quem trabalhamos são prestadores de serviço e, por mais que eles se esforcem para manter um contato constante com os grupos formados e os demais membros da comunidade, eles têm atuação limitada pelo fato de não serem, ademais de artistas-orientadores, agentes culturais, produtores e administradores dos espaços. Evidentemente, estas não são as atribuições destes profissionais, embora eles não se neguem a colaborar para a melhor realização de cada atividade, não importando qual a sua designação específica. Mas, na ausência total de pessoas especialmente determinadas para estas funções, a atuação destes profissionais deixará a desejar pelo simples fato de que eles não têm como se desdobrar em todas as funções. De outro lado, é nítido o melindre que é gerado quando algum destes profissionais se aventura em outras funções, quase como se houvesse uma disputa pelo poder, o que realmente não nos interessa de forma alguma.52

Obviamente, não podemos desconsiderar aqui problemas relacionados simplesmente à disputa de poder. Nossa proposição gerava um confronto considerável com a antiga disposição compartimentalizada da SMC, e a integração dos Departamentos era historicamente problemática. Exemplo claro destes conflitos foi

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CECCATO, Maria. Relatório sobre dificuldades de implantação do Projeto de Teatro Vocacional. SMC. 2002. Arquivo pessoal.

nossa tentativa de integrar as atividades realizadas nos equipamentos culturais do bairro de Santo Amaro.

Em 2001, ao visitarmos a Biblioteca Presidente Robert Kennedy, sita na Av. João Dias, acabamos por convidar a coordenadora da Casa de Cultura de Santo Amaro (ainda funcionária da gestão anterior) a visitar conosco a Biblioteca e apresentá-la à diretora de lá. A Casa de Cultura ficava do outro lado da avenida; apenas uma faixa de pedestres separava os dois espaços. Ambas as funcionárias trabalhavam na Casa de Cultura e na Biblioteca há pelo menos oito anos e nunca tinham se conhecido! Uma nunca tinha entrado no equipamento coordenado pela outra. Dois anos depois, ao fazermos uma reunião entre o grupo teatral apoiado pela Lei de Fomento – a Cia. Paidéia de Teatro, que fazia uma residência artística na Biblioteca Presidente Robert Kennedy – e a diretora da Biblioteca, a diretora da Biblioteca Infanto-Juvenil Benedito Bastos Barreto (sita a três quadras da Biblioteca Kennedy) e o coordenador da Casa de Cultura de Santo Amaro, houve até mesmo lágrimas. Sentados ao redor de uma mesa, os funcionários alegavam que nunca haviam se encontrado antes: “Isto nunca ocorreu aqui no Bairro!”.

Embora resultante de posicionamentos políticos distintos, o reflexo do encontro de nossas proposições com ambas as perspectivas, a neoliberal e a populista, como mencionamos, gerava dificuldades operacionais muito semelhantes.

Primeiramente, a posição dos funcionários de carreira, diretores e funcionários de Bibliotecas, acomodados às facilidades que uma política caracterizada pela retração das funções do Estado nas políticas públicas causa. O funcionário de carreira, habituado a uma função unicamente administrativa, não consegue articular-se como agente de uma ação cultural e passa a gastar tempo e energia apenas para garantir seu pequeno poder.

Em nossos relatórios (2001/2003), encontramos reportados os seguintes problemas que os funcionários não conseguiam solucionar ou para os quais negavam soluções:

• O espaço designado para a realização das atividades do Teatro Vocacional, os auditórios, em absoluto abandono, encontravam-se degradados e impossibilitavam a sua utilização. O grupo vocacional era obrigado a utilizar outro espaço inadequado, como pátios ou salas de leitura;

• O espaço designado para a realização das atividades do Teatro Vocacional, os auditórios, eram ocupados por outras atividades, “ditas culturais”, como reuniões da Guarda Civil Metropolitana, festas de escolas etc;

• A biblioteca não divulgava as atividades e mantinha as luzes apagadas mesmo quando aberta e em período de uso;

• O(a) diretor(a) da Biblioteca resistia em receber a programação do Circuito Cultural (programação de espetáculos teatrais itinerantes nas Bibliotecas e Casas de Cultura realizados em 2001);

• Programação de atividades teatrais por funcionária de uma Biblioteca (que anteriormente oferecia oficina teatral voluntária no mesmo local) com enfrentamento à artista-orientadora, desrespeito aos horários de trabalho dos grupos e agendamento de atividade teatral profissional;

• Restrições à consulta do acervo da Biblioteca pelos artistas vocacionais;

• Desrespeito aos horários das atividades do Teatro Vocacional. Seguranças do equipamento pressionavam os artistas vocacionais a deixarem o espaço antes do término do horário da atividade.

Reportamos inclusive o caso de um Grupo Vocacional que, por falta de espaço na Biblioteca Dinah Silveira Queiroz, trabalhava na quadra da Escola de Samba

Acadêmicos do Tucuruvi. Em 2003, sem conseguir mais o espaço da quadra emprestado, o grupo passou a ensaiar na rua!

No outro extremo, vemos a relação com os funcionários nomeados como coordenadores das Casas de Cultura, que sistematicamente negavam a função artista- orientador por considerar o Projeto e seus profissionais como representantes de um poder centralizado e elitista. Nos mesmos relatórios encontramos as seguintes dificuldades:

• A não-consideração do artista-orientador como uma pessoa de apoio à atividade teatral da Casa e a recorrente falta de consulta sobre as demais oficinas de teatro que ocorrem no equipamento;

• Resistências à programação do Circuito Cultural (considerada como programação imposta sem consulta à população local);

• Desrespeito aos horários de atividade do Teatro Vocacional, previamente agendados;

• Desrespeito ao profissional artista-orientador;

• Ausência de horário para as atividades do Teatro Vocacional. Falta de comunicação entre a coordenação da Casa de Cultura e o artista-orientador, gerando desencontros de horários de trabalho (incluindo o fechamento de uma Casa de Cultura para reforma em um dia de encontro do Grupo Vocacional sem o conhecimento do artista-orientador);

• Discordância explícita com os objetivos do Projeto Teatro Vocacional, gerando enfrentamento do coordenador da Casa de Cultura com o artista-orientador; • Atividades teatrais agendadas sem a consulta do artista-orientador.

A partir destes impedimentos nada animadores, tomamos a decisão de sair de pelo menos um equipamento, a Casa de Cultura do M’Boi Mirim (em que os problemas

se ampliavam para o contato com a população, como veremos no capítulo 2). Um exemplo bastante específico de nosso confronto com uma idéia populista de cultura se deu na Casa de Cultura do Butantã. O relatório de novembro de 2003 termina da seguinte forma:

Butantã:

O trabalho do artista-orientador é excelente como diretor e professor, mas tenho minhas dúvidas sobre um excesso de centralização. Temos discordâncias que talvez emperrem o trabalho.(...) Problemas. A coordenadora é a nossa velha conhecida...53

O relatório é um tanto desrespeitoso, mas, depois de dois anos e meio, ao relatar os acontecimentos ao Diretor do Departamento, nós já economizávamos detalhes. Trata- se de uma referência a um problema antigo em relação à Casa de Cultura do Butantã. A coordenadora da Casa, uma excelente pessoa, tinha, contudo, uma visão extremamente populista da cultura. Desde o início do Projeto, desafiou-nos a contratar uma pessoa da região. Nós argumentamos com ela, mas acabamos optando por contratar um antigo voluntário da Casa, que não deixava de ser um bom profissional de teatro, com vasto currículo de ensino. Na época, o diretor Celso Frateschi, inseguro com nossa opção, disse uma frase de extrema importância ao nosso aprendizado como gestora de políticas públicas: “A política boa é aquela que cria tensões, não aquela que apazigua anseios. Devemos criar demandas novas e não apenas atender as existentes.” Efetivamente, comprovamos na efetivação do Projeto esta orientação. E talvez, como aprendizado prático deste mau desejo de agradar a todos, nossa escolha neste caso tenha sido bastante infeliz. Apesar de coordenação e artista-orientador participarem dos mesmos

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CECCATO, Maria. Relatório de novembro com avaliação de cada equipamento. SMC. 2003. Arquivo pessoal.

movimentos sociais do bairro, eles se posicionavam de maneiras antagônicas. Ela visava especialmente uma política voltada para as artes populares e tradicionais, e ele, um teatro extremamente formalizado, de conteúdos não-engajados, pautado num ensino centralizado, funcionando diversas vezes mais como diretor do grupo vocacional do que como artista-orientador. A colisão foi imediata. E, desde então, nossa função resumiu-se a administrar este conflito. A coordenadora chamando o artista-orientador de “reacionário” e o artista-orientador chamando a coordenadora de “stalinista”. Somente no último ano, substituímos o artista-orientador e as relações se apaziguaram, mas nunca houve uma real integração das atividades na Casa. Ficava evidente, portanto, a dificuldade de operar um processo democrático frente às idéias cristalizadas e predeterminadas sobre política cultural não só expressas pelos gestores como também pela própria equipe de artistas-orientadores.

Todavia, os problemas que encontrávamos nos equipamentos, mesmo oriundos de visões política diversas, assemelhavam-se muito. Em novembro de 2003, escrevíamos um relatório mais otimista em relação a alguns espaços, mas monótono em relação a alguns problemas renitentes, donde figurava:

• Desrespeito às atividades agendadas pelo grupo vocacional e ao artista- orientador;

• Agressividade por parte de diretores de Biblioteca e coordenadores de Casa de Cultura com o artista-orientador;

• Utilização por uma diretora de Biblioteca, em monografia para um curso superior, dos dados do Projeto (provavelmente de modo equivocado) sem nunca ter conversado com a artista-orientadora que trabalhava no equipamento que coordenava;

• Interferência artística no trabalho por parte do coordenador de uma Casa de Cultura; falta de espaço para as atividades do Projeto;

• Isolamento do trabalho realizado pelos artistas-orientadores em relação às demais atividades do equipamento.

No final de 2003, planificamos algumas medidas para minimizar os problemas em 2004, optando, por vezes, pela desistência de atuar em espaços onde não encontrávamos apoio nem da SMC nem dos gestores nos próprios equipamentos. O texto que segue faz parte de um documento encaminhado para o Diretor do Departamento de Teatro via ofício:

Considerando que:

1. Estamos terminando 2003 com diversos novos desafios, mas não podemos seguir adiante sem olhar para trás;

2. Somos uma equipe bastante heterogênea de artistas exercendo funções que tocam diversas competências; de um trabalho notadamente pedagógico a uma construção artística propriamente dita, de uma orientação ético-filosófica a uma viabilização da expressão cultural através do teatro para um determinado grupo;

3. Atuamos em duas frentes distintas: a formação de novos grupos e a orientação dos grupos já existentes;

4. A filosofia de ação do Projeto busca exatamente a autonomia de ação por parte da população que procura fazer teatro “vocacionalmente”;

Acreditamos que não será possível aprofundar nossa ação sem um entendimento global das propostas de ação cultural da Secretaria, o

que envolve, necessariamente, nossa relação com os demais Departamentos.

As ações dos Departamentos da Secretaria nos parecem carecer de efetiva integração. Intuímos um tripé de sustentação da ação existente desde o início da atual gestão: Formação, Fomento e Reflexão Crítica. No entanto, a interação entre os projetos não parece contemplar com a devida consciência esse aspecto triangular da política de cultura da Secretaria. Afirmamos isso porque percebemos que grande parte dos problemas que enfrentamos dizem respeito ao não-entendimento ou à desinformação daquilo que efetivamente consiste cada uma das ações culturais que empreendemos e seus vínculos internos. As perspectivas de complementaridade entre as diversas faces da ação cultural da Secretaria são enormes. Não podemos compreender, portanto, que estas perspectivas não se tornem efetivas.

Nossa ação, porém, diferentemente de nossa crença, não sobrevive a esta lacuna de amarração, já que a nossa almejada busca pela autonomia dos grupos só será eficaz se prevermos alguma espécie de abertura dos equipamentos às necessidades de ação do Projeto Teatro Vocacional, visto que:

1. Tivemos raras oportunidades de agendarmos uma programação consistente em teatro para os equipamentos em que atuamos;

2. Não se mostrou viável uma assessoria para os diretores de equipamento com relação a oficinas voltadas para os grupos vocacionais de cada região;

3. Preparamos um excelente levantamento bibliográfico para um acervo especializado em teatro e artes para as bibliotecas, mas nunca obtivemos resposta da viabilidade de uma ação neste sentido; 4. Estamos certos de que a maioria dos diretores de equipamento não deseja e não entende a necessidade de uma assessoria;

5. Por fim, quando realizamos ações de mostras ou festivais, estas ocorrem ou dentro de um formato que o diretor do equipamento entende e nós não concordamos, ou da maneira que acreditamos, mas então ficamos isolados.54

Este relatório traz um panorama claro das dificuldades estruturais enfrentadas na implementação desta política. Estas dificuldades, muitas vezes, escapavam à nossa atuação. Contudo, como já dissemos, seguimos as atividades acreditando na viabilidade do nosso diálogo entre equipe e vocacionados e tentando ampliar a esfera dos debates para além da sala de aula/ensaio.

Todavia, seria interessante propor uma aproximação destas dificuldades por um ângulo diferente. Um ângulo, por um lado mais genérico, mas talvez mais pragmático no contato com nossa ação efetiva. Esta perspectiva é dada pela especificidade do estatuto da arte enquanto tal. E nos interessa contrapô-la aqui a algumas características

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CECCATO, Maria. Ofício para Direção do Departamento de Teatro. Perspectivas 2004. SMC. 24 de novembro 2003. Arquivo pessoal.

da cultura como o inerte cultural; ou seja, da cultura como forma reificada de um produto já distanciado de seu processo de construção dentro da dinâmica social.