• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO I PROJETOS DE POLÍTICAS DE REMUNERAÇÃO EM DISPUTAS NO

1.4. Profissão docente: vocação ou sacerdócio?

A escolha da profissão é um dos passos mais importantes que o indivíduo dá em relação a seu futuro. E isso influencia para o sucesso ou fracasso profissional. Desse modo, consideramos que a carreira docente apresenta peculiaridades que apontam historicamente para a sua desvalorização em diversos sentidos, seja em termos remuneratórios, ou para sua desvalorização social, conforme nos apresenta Paranhos et al (2012, p. 2):

Não é segredo que a profissão docente é atualmente uma profissão desvalorizada. Municípios, Estados e a Federação não se

comprometem de maneira rigorosa com a educação e com os profissionais que nela atuam. Para corroborar com o desprestigio oficial pela docência, a mídia também caracteriza o professor a partir de estereótipos que pouco ou nada contribuem com a sua valorização. Ora o profissional é caracterizado como uma pessoa muito importante, um herói, o que contribui para uma ideia da docência como missão. Outras vezes ele aparece como um sujeito cansado que ganha pouco e que sempre precisa de uma renda complementar

Essa construção social da educação como a grande redentora da sociedade torna a responsabilidade social do professor ainda maior, porque uma parte da população brasileira vê na educação uma saída para o desenvolvimento de nossa sociedade e, particularmente, como uma ferramenta que vai possibilitar a redenção social do indivíduo e, consequentemente, vai diminuir as desigualdades sociais, dito de outro modo, é através da educação que a pessoa que não tem condições financeiras favoráveis, conseguirá melhorá-la indo além da questão monetária.

Diante de uma construção histórica e social, na qual de um lado o professor se sente desvalorizado financeiramente pelo Estado ou pela sociedade enquanto profissional, temos uma estruturação que se deu ao longo de um processo histórico de disputas e interesses dominantes no ideário da profissão docente que é a de que para o indivíduo ser professor, deve estar vocacionado para tal função.

Reses (2012, p. 421) informa que:

Historicamente, a profissão docente foi entendida como uma “vocação”, uma missão que deveria ser mais importante do que a própria compensação financeira e influencia o docente a pensar que é um “dom” pessoal, que ele nasceu para isso.

Esse entendimento da profissão docente como uma vocação, intencional ou não, contribuiu para a desvalorização deste profissional uma vez que “a vocação pode levar ao entendimento de que a docência seja um sacerdócio, em que não há interesses materiais, portanto não se almeja remuneração digna, condições de trabalho, nem formação profissional”. Alves (2006) apud Paranhos et al (2012, p. 3). Isso explica, em parte, a diferença de remuneração do professor em comparação com outros profissionais que possuem a mesma escolaridade.

Pesquisa realizada pela CNTE, em 2002, em dez estados brasileiros, com 4.656 profissionais do ensino, sobre a situação dos educadores, concluiu o seguinte: 1) empobrecimento dos professores brasileiros; 2) degradação de suas condições de exercício profissional; e, 3) multiplicação de jornadas de trabalho.

Nesse cenário de desvalorização profissional do professor, aqueles que insistem em permanecer nessa profissão parecem mesmo apresentar um amor muito grande pela profissão, como se estivessem vocacionados para isso. Esse entendimento da profissão docente como uma vocação, de acordo com Freire (1996, p.161), “explica a quase devoção com que a grande maioria do magistério nele permanece, apesar da imoralidade dos salários. (...) mas cumpre, como pode, o seu dever”. Nesse ponto de vista, a construção de uma política de remuneração que considere aspectos da docência que levem à tão sonhada valorização profissional, são imprescindíveis.

Em relação a “vocação do professor”, Paranhos et al (2012) nos diz que há um ditado popular muito conhecido em nossa sociedade, o qual afirma que “pra ser professor precisa ter um dom ou vocação”; devemos tomar consciência de que tal dito é incompleto, pois não se trata só de dom ou vocação. “Para ser um professor é preciso formação! (p. 2)”.

Os estudiosos, com os quais até aqui temos dialogado, apontam para a importância da formação na profissão de professor para que se desmistifique a ideia de que qualquer um “vocacionado” possa atuar na docência. A vocação é importante, mas não deve justificar a “opção” de uma sociedade pela desvalorização da profissão, seja em termos salariais e/ou sociais por conta da falta de uma política de remuneração que não se proponha a valorizar esse profissional.

Hypolito (1997) apresenta argumentos sobre a desvalorização da profissão docente ligando a “vocação” ao caráter religioso quando diz que:

(...) a concepção de magistério como vocação/sacerdócio foi construída por razões político-religiosas conservadoras e autoritárias (...). A origem dessa concepção pode ser buscada no século XVI, quando se abriram escolas elementares para as camadas populares. Esta abertura visava fundamentalmente à leitura dos textos religiosos e, com isso, à manutenção da influência que a Igreja exercia sobre os intelectuais e grande massa da população (p. 18).

Nessa lógica, a educação tem sido utilizada como instrumento de reprodução dos interesses dominantes vigentes em determinado período histórico, pois conforme apresentou Hypolito (1997), a profissão docente estava atrelada aos sacerdotes que utilizavam a educação para a manutenção de seus interesses.

O sacerdócio era exercido por pessoas vocacionadas, que exerciam diversas funções, além da docência, no entanto, parece nos dias atuais que somente a docência ficou atrelada à vocação / sacerdócio por aqueles que desejam trilhar esse caminho.

Nessa perspectiva, Nunes (1985, p. 60) afirma:

O sacerdote acumulou várias funções: foi médico, botânico, estadista, militar, engenheiro, navegante, confessor e professor. Por este motivo, seria mais acertado falar na função docente do sacerdócio do que na docência enquanto profissão.

Interessante observar que ainda no século XXI, a profissão docente seja vista como vocação / sacerdócio, justificando dessa maneira a baixa remuneração atribuída aos professores.

Sobre a construção histórica da ideia de profissão docente enquanto sacerdócio, Gonçalves (2012, n.p.) apud Hypólito (1997) argumenta que:

Outra dimensão da concepção do magistério como vocação ou sacerdócio foi construída historicamente a partir do século XIV, quando se abriram escolas elementares para as camadas populares e o clero não deu conta de atender sozinho a toda demanda existente. Uma alternativa encontrada foi convocar os colaboradores leigos que, ao assumir a profissão docente, deviam, da mesma forma que os religiosos, fazer uma profissão de fé, jurando fidelidade aos princípios da instituição e doação sacerdotal aos alunos, independentemente das condições de trabalho e do salário. Todo este contexto está associado ao termo professor, que, originalmente, designa “aquele que professa”

O entendimento histórico apresentado de que o imaginário envolto sobre a profissão docente vem apontado para uma profissão vocacionada atende a interesses dominantes de reprodução das desigualdades sociais e das relações de poder vigentes e imbricadas no inconsciente social.

A vocação para a docência e sua receptividade social também é acolhida por muitos mestres, quer por razões afetivas, quer por razões político-religiosas, acabam desconsiderando que a docência vai além disso, pois constitui-se em uma profissão.

Bruschini e Amado (1998, p. 7) acrescentam, com relação a esta discussão, a seguinte informação:

Historicamente, o conceito de vocação foi aceito e expresso pelos próprios educadores e educadoras, que argumentavam que, como a escolha da carreira devia ser adequada à natureza feminina, atividades requerendo sentimento, dedicação, minúcia e paciência deveriam ser preferidas. Ligado à ideia de que as pessoas têm aptidões e tendências inatas para certas ocupações, o conceito de vocação foi um dos mecanismos mais eficientes para induzir as mulheres a escolher as profissões menos valorizadas socialmente.

Para não ficarmos apenas na percepção de que a desvalorização docente e o entendimento da mesma como vocação devam-se à entrada da mulher na docência, Louro (1998) apud Reses (2012, p. 424) nos apresenta outro dado a ser considerado:

Não há, na história do magistério no Ocidente, uma situação marcada por salários valorizados, que entram em queda pela irrupção das mulheres no mercado de trabalho docente. É preciso ter em mente que o magistério, nos séculos constituintes da modernidade ocidental, foi um trabalho de homens e homens pobres, que o adotavam como opção para escapar do trabalho manual.

Neste sentido, a docência, há alguns séculos, é constituída por indivíduos que estão à margem do poder econômico, político e/ou social vigente, portanto, a desigualdade social se faz presente na construção da profissão e, a partir desses parâmetros, vem sendo formada uma identidade de profissional da docência e, consequentemente, sua desvalorização em termos remuneratórios.

A mudança nesse cenário deve partir da tomada de consciência sobre a importância do professor para a transformação da sociedade e para a superação ou minimização das desigualdades sociais.

Em vista disso, Giroux (1986, p. 38) alerta que:

Os docentes necessitam de se definir a si próprios como intelectuais transformadores que atuam como docentes e educadores radicais. O

docente radical, como categoria, define o papel pedagógico e político que os docentes têm na escola, enquanto a noção de educação radical se refere a uma esfera mais ampla de intervenção na qual o mesmo interesse pela autoridade, pelo conhecimento, pelo poder e pela democracia redefine e amplia a própria natureza política da sua tarefa pedagógica, que é ensinar, aprender, escutar e mobilizar no interesse de uma ordem social mais justa e equitativa.

A desmistificação da docência no campo da vocação e/ou sacerdócio e, pois, sua inserção enquanto profissão passa por um longo caminho, conforme observado, de avanços e retrocessos. E a construção da identidade do professor enquanto profissional ainda é objeto de disputas e lutas pela consolidação de direitos estabelecidos na legislação brasileira pós CF/88.

Reses (2012, p. 428-429) indica que:

A constituição do magistério como uma “semi-profissão” merece algumas observações críticas. Em primeiro lugar, é necessário como assinala Bourdieu (1990;1991), escarparmos aos limites e ambiguidades que a expressão “profissão” carrega. Definir um agente social como possuidor de uma profissão é reconhecer que este é detentor de uma identidade socialmente dada por sua relação histórica com as formas específicas de trabalho e não pelo “simples” exercício desta forma de trabalho.

Um dos caminhos que podem ser definidos para o alcance do reconhecimento social da docência enquanto profissão, e não como vocação ou sacerdócio, ocorre por intermédio da organização dos trabalhadores como categoria, como classe, via sindicatos representativos dos mesmos na definição identitária do caráter da profissão docente, mesmo que essa representação ou organização ainda não dê conta de concentrar a totalidade dos interessados, no caso, os docentes.

Reses (2012, p. 447) acrescenta que:

O professor viveu/vive a contradição, a ambiguidade, da definição sobre o caráter de sua profissão. Este foi um dos fatores que gerou dificuldade na organização sindical destes profissionais. Se tendencialmente autônomos, se orgânicos às classes subalternas, se politicamente compromissados com a transformação das estruturas sociais e se “proletarizados”, por que os professores estariam sendo incapazes de reverter a posição em que hoje se encontram, sobretudo, em sociedades do tipo da brasileira?

As dificuldades de definição do caráter da profissão docente ocorrem em grau semelhante à dificuldade de organização sindical desses trabalhadores, sobretudo se considerarmos o processo histórico de construção da mesma vivenciada na sociedade ocidental moderna.

Miranda (2009, p. 7) faz a seguinte observação, sobre esse fato:

A trajetória que nos é possível observar, do sacerdócio à sindicalização, indica que a categoria docente se construiu enquanto classe, pois assim se organiza e se reconhece, o que não torna possível identificar uma forma homogênea de ação política.

As dificuldades apresentadas na mudança de paradigma, de olhar sobre a docência enquanto vocação-sacerdócio para uma profissão reconhecida e valorizada socialmente, nos mesmos níveis de outras profissões de nível superior, tem sido objeto de reflexão e luta docente constante, ainda que não seja da totalidade de docentes, por meio da construção de uma política de remuneração que considere, dentre outros aspectos, docência como uma profissão valorizada, em se tratando de remuneração.