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Psicologia social na comunidade

No documento Apostila Psicologia Social II (páginas 87-94)

 A partir da regulamentação da psicologia no Brasil em 1962, a atividade pro- fissional do psicólogo foi marcada pela prática clínica individual, a avaliação psi- cológica, problemas de aprendizagem e na área organizacional.

Na Europa e nos Estados Unidos da América, o marco da psicologia comu- nitária ocorreu em meados da década de 1960, no contexto do movimento de renovação da psicologia social relacionado aos movimentos sociais comunitários, em especial os de saúde mental.

Em 1965 a Conferência de Swampscott, nos EUA, discutia os serviços de saúde mental de base comunitária e as crises na intervenção médica.

 A conferência de Swampscott, realizada nos EUA, em 1965, envolvida com a constituição dos serviços de saúde mental de base comunitária e com as críticas às intervenções exclusivamente médicas e hospitalocêntricas nos casos de doen- ça mental, tem sido apontada como um marco para a constituição da disciplina (GÓIS, 2005; ÁLVARO & GARRIDO, 2006). Inspirados nos pressupostos da psiquiatria preventiva, esses movimentos tinham como objetivo não somente tra- tar as doenças mentais, mas também as prevenir. As intervenções, antes limitadas aos indivíduos, foram ampliadas para seu entorno – também chamado comuni- dade – concebido como fonte dos problemas mentais e, ao mesmo tempo, como agente potencialmente terapêutico. (GÓIS, 2005; ÁLVARO & GARRIDO, 2006 apud GONÇALVES e PORTUGAL, 2012, p. 140)

 A psicologia comunitária chega ao Brasil na década de 1970 com os re- gistros que se referiam à participação de psicólogos em trabalhos preventivos em saúde mental, comunidades eclesiais e no campo da educação. Na saúde mental, relacionavam-se à psiquiatria social com o atendimento a integrantes de comunidades.

“O uso do conhecimento psicológico como instrumento de práticas em co- munidades teve seus primeiros registros formais na década de setenta [...]. Tais registros referiram-se à participação de psicólogos em trabalhos associados à esfera da educação e da saúde mental, especialmente no âmbito da prevenção. [...] As ações eram inspiradas na psiquiatria comunitária, um ramo da psiquiatria social voltado para o atendimento à saúde mental de integrantes de comunidades. Para tanto, predominavam propostas de intervenções cujo objetivo era a diminuição da prevalência de psicopatologias e a promoção processos de adaptação das pessoas ao ambiente, tendo em vista as influências que a cultura e a sociedade exercem sobre elas (...). Esta abordagem foi adotada como um dos modelos de trabalho no Brasil e orientou diferentes práticas psicológicas em comunidades das classes popula- res brasileiras.”. (FREITAS e SCARPARO, apud SCARPARO e GUARESCHI,

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No final da década de 1980, o cenário político social desenhado pelo processo de redemocratização brasileiro, a promulgação da Constituição de 1988, e um conjunto de políticas sociais, inclusive a organização do SUS (Sistema único de Saúde) conciliaram a psicologia com as camadas populares da sociedade, possibi- litando a inserção efetiva do psicólogo neste campo de trabalho.

Com o avanço da abertura política e dos movimentos sociais a ela associados, muitas práticas psicológicas se integraram às perspectivas de emancipação social. O movimento pelas eleições diretas, nos anos oitenta e a mobilização popular pelo “impeachment” presidencial no início da década de noventa, tornou mais intenso o sentimento e a importância do pertencimento ao coletivo. O movimento cons- tituinte e a promulgação da “Constituição Cidadã”, em 1988, fizeram com que as expressões inclusão, igualdade e cidadania fossem mais frequentes na produção de conhecimentos e nas práticas de psicólogos. (SCARPARO e GUARESCHI, 2007, p.102)

Na década de 1990 é consolidada a atuação do psicólogo nas instituições pú- blicas, principalmente em relação ao trabalho com as populações economicamen- te desfavorecidas.

Na contemporaneidade o trabalho do psicólogo na esfera comunitária abran- ge a dimensão da necessidade social.

“A perspectiva social das práticas psicológicas tem sido pauta de reflexões diversas o que tem ampliado a produção de pensamentos e os sentidos sociais atribuídos para as práticas psicológicas.”. A psicologia crítica, a psicologia sócio -histórica, psicologia da libertação, psicologia política e a psicologia social comu- nitária direcionam suas ações para as favelas e comunidades, desmistificando a ideia que a psicologia atua somente na área clínica, em “consultórios particulares”, ou na especificidade cognitiva e experimental. (SCARPARO e GUARESCHI 2007, p.102)

 As contribuições da Psicologia Social comunitária estão efetivamente asso- ciadas às transformações sociais, suas práticas de intervenção possibilitaram dar “ Voz” as populações excluídas.

“O surgimento da psicologia social comunitária pode ser considerado uma tentativa de responder às críticas e de propor mudanças para a psicologia social latino-americana. Assim, novas diretrizes da disciplina foram instituídas, a saber, ‘deselitizar’ a psicologia [...], aproximar-se da realidade concreta da população [...] e afastar-se dos lugares tradicionais de trabalho.”. (GONÇALVES e PORTUGAL, 2012, p. 140)

Dessa forma, cabe ao psicólogo social comunitário estar presente nas comu- nidades, em contato direto com as demandas do grupo, esta proximidade com a realidade da vida da comunidade é o que permite à ciência oferecer um serviço que atenda às reais necessidades do grupo, e não um serviço que supõe as necessidades dele, que ocorre quando não há uma investigação no campo que veja e escute a realidade objetiva da comunidade.

Cabe ainda sinalizar que este percurso histórico da psicologia social comunitá- ria contou com a Abrapso (Associação Brasileira de Psicologia Social), fundada em 1980, como resultado dos debates de pesquisadores latino-americanos sobre as par- ticularidades das circunstâncias econômicas, socioculturais, políticas e populacionais de seus países e o objetivo de participar do processo de construção de métodos e concepções conceituais “de uma perspectiva inovadora da psicologia no Brasil”. Nesse sentido, o sítio da associação enfatiza o “intercâmbio e posicionamento crítico

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frente a perspectivas naturalizantes e a-históricas de produção de conhecimento e intervenção política em nossa sociedade.”. (Abrapso, 2012)

Como foi descrito, o avanço na articulação entre os saberes e a prática da psi- cologia comunitária oportuniza a investigação e a aplicação de conceitos teóricos e uma ação efetiva da psicologia junto às pessoas. A comunidade é um espaço social dinâmico e multidimensional, em que as relações entre indivíduo e sociedade emer- gem de forma genuína, campo propício para a pesquisa sócio-histórica e sob o ponto de vista psicossocial a apropriação do “sujeito como protagonista de sua história”.

O trabalho do psicólogo neste contexto é muito mais amplo que as suas con- vicções teóricas e envolve a disponibilidade prática para a ação, a sensibilidade do exercício da empatia com a diversidade da existência humana.

“Afinal, ora é tarefa do profissional que atua em comunidades trabalhar com questões, digamos, mais concretas, objetivas, que dizem respeito ao saneamento, à alimentação, à infraestrutura, à criação de comissões para reivindicar transporte, água, luz, esgoto, escola; ora, ele precisa trabalhar com a afetividade, a identidade, a solidariedade, o bem-estar, a autoestima, com os problemas existenciais, ou seja, com as questões mais pessoais”. “[...] A expressão psicologia da comunidade

começou a ser usada nos anos 1990, com uma ampliação dos trabalhos dos profis- sionais de psicologia a diversos setores da população, adotando diferentes práticas e referenciais teóricos e traduziu uma inserção da psicologia em algumas institui- ções, com o objetivo de democratizar e de aumentar a oferta de serviços para a população em geral. Nessas instituições, o que aconteceu foi um atrelamento da profissão à área de saúde, já que os psicólogos deviam ser trabalhadores sociais dentro dessa área, muitas vezes respondendo aos problemas da saúde coletiva”. (GONÇALVES e PORTUGAL, 2012, p.144)

Por outro lado, as possibilidades de troca de saberes e aprendizagens com a diversidade e a convivência, entre o senso comum e a ciência são inúmeras, pro- duzem um legado que reaviva a crença no homem e nos sentimentos “comuns” naturais compartilhados pela coletividade. Isto é, a compreensão que a ciência existe a serviço do homem e a compreensão de que são as pessoas que constroem a sociedade e tudo que faz parte dela; no exercício do seu direito de recriá-la de forma mais solidária e menos excludente.

“As propostas de trabalho social comunitário têm como pressupostos as práticas interdisciplinares, reflexões teóricas sobre as experiências cotidianas, socialização de sa- beres, participação e exame crítico das implicações políticas de cada prática [...]. Nessa dimensão a formação precisa priorizar a construção de espaços para a constituição de

vínculos, de valorização de projetos coletivos nos quais os conhecimentos sejam ins- trumentos emancipatórios e, ao mesmo tempo, objetos de análise e produção de pen- samento. A efetivação desses movimentos problematiza a manutenção de hegemonias, duvida de códigos tidos como verdades inquestionáveis, reformula ideias e ressignifica práticas”. “[...] Como em qualquer conceito formulado, o de comunidade se confor- ma às dinâmicas sociais que se processam em cada espaço-tempo. Na perspectiva da psicologia social crítica, Bader Sawaia examinou algumas dessas formulações.

 A autora mostrou a relevância da dicotomia indivíduo-sociedade para o esta- belecimento das concepções de comunidade no decorrer dos processos históricos de produção de conhecimentos. Constatou que na medida do avanço das relações comunitárias se fortaleceram utopias individualistas e vice-versa. No contexto da globalização, a comunidade pode ser depositária da utopia de conversão do egoís- mo, da exclusão e da fluidez presentes nas relações humanas. Tal utopia atribui ao espaço das comunidades vivências de parceria e de solidariedade e reaviva a esperança de pertencimento a um grupo desprovido de interesses individualistas.” [...]. (SCARPARO e GUARESCHI 2007, p. 108)

Enfim, a psicologia social comunitária aponta possibilidades de novas direções e aplicações conceituais da psicologia, revendo a visão individualista e ampliando sua vocação social.

 A psicologia comunitária está presente no cotidiano das pessoas, propõe o de- bate com outras ciências e valoriza a coletividade, elementos que que contribuem para novas ações que buscam melhorar a qualidade de vida das pessoas.

Na figura 3.3, apresentamos uma charge bem-humorada, com a intenção de propor uma reflexão sobre qualidade de vida.

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Observamos ainda, que na atuação em psicologia comunitária, é importante a distinção entre os conceitos de comunidade e favela. Comunidade refere-se ao conjunto de ações tangíveis e intangíveis de pessoas que convivem e compartilham um mesmo espaço. Favela refere-se ao espaço territorial composto por habitações onde as pessoas são domiciliadas.

Para a constituição de uma comunidade, é necessário que o grupo viva em uma área geográfica comum e que se constitua uma trama de relações nas quais os membros tenham a mesma tradição e os mesmos interesses. A ideia de comunida- de deve sempre se diferenciar da ideia de sociedade, devido às suas particularida- des, pois esta implica a noção de um território delimitado, onde se possa ter vizi- nhança, intimidade, cotidianidade, proximidade e identificação. Entre os fatores que caracterizam uma comunidade, estão: “sentimento de pertença, participação na mesma cultura e vinculação a um território comum”, e ainda, “espaço de mo- radia e de convivência direta e duradoura, igual nível socioeconômico dos mora- dores, laço histórico comum, mesmas necessidades e mesmos problemas sociais e um sistema próprio de representações sociais” (GONÇALVES e PORTUGAL, 2012, p. 149).

Segundo a Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, Secretaria Municipal da casa Civil, Instituto municipal de Urbanismo Pereira passos, Conselho Estratégico de informações da cidade, (Atas de Reuniões, 2012, p. 8):

 A definição do IBGE de favela estabelece que o aglomerado subnormal seja “um conjunto constituído de, no mínimo, 51 unidades habitacionais (barracos, casas...) carentes, em sua maioria de serviços públicos essenciais, ocupando ou tendo ocu- pado, até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular) e estando dispostas, em geral, de forma desordenada e densa”. (IBGE, 2010)

 A definição utilizada pela Prefeitura para favela é a constante do Plano Diretor do Desenvolvimento Urbano Sustentável de 2011, a saber, “área predominan- temente habitacional, caracterizada por ocupação clandestina e de baixa renda, precariedade da infraestrutura urbana e de serviços públicos, vias estreitas e ali- nhamento irregular, ausência de parcelamento formal e vínculos de propriedade e construções não licenciadas, em desacordo com os padrões legais vigentes.”.

Exercite seu raciocínio crítico: considerando que comunidade e favela têm significados diferentes, qual sua interpretação das letras das músicas “Eu só quero é ser feliz” e “Meu nome é favela”? Avalie se há nestas canções perspectivas que induzem a equívocos sobre o trabalho profissional de psicologia comunitária.

No documento Apostila Psicologia Social II (páginas 87-94)