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A qualidade da relação mãe e filho: sua importância para o desenvolvimento infantil

2 A DESNUTRIÇÃO EM QUESTÃO

2.6 A qualidade da relação mãe e filho: sua importância para o desenvolvimento infantil

As potencialidades inerentes à criança pequena são aceleradas no desenvolvimento, ou retardadas, de acordo com o envolvimento da mãe ou a ausência deste.

(FREUD,1980, p. 30)

A criança é um ser dinâmico, complexo, em constante transformação, que apresenta uma sequência previsível e também regular de crescimento físico e de desenvolvimento neuropsicomotor. Tal desenvolvimento é influenciado continuamente pelos fatores intrínsecos (físicos, emocionais) e extrínsecos (ambientais), de forma isolada, cumulativa ou interativa, provocando variações de um indivíduo para outro, tornando único o desenvolvimento de cada criança. O impacto desses fatores varia de acordo com a faixa etária da criança, no entanto as pesquisas salientam que a influência do meio ambiente sobre o desenvolvimento infantil aumenta com o progredir da idade. Dentre os fatores socioeconômicos, destacam-se a pobreza e sua interação com o ambiente e entre os biológicos, a desnutrição intrauterina e pós-natal, a anemia ferropriva e o aleitamento materno (BRASIL, 2002; EICKMANN, 2003).

É inquestionável a importância, para o desenvolvimento do ser, da dotação genética, da integridade do sistema nervoso central, da maturação e demais estruturas biológicas saudáveis, da alimentação. Sem a interação com o outro, entretanto, a criança não tem a possibilidade de se tornar um ser humano capaz de desejar e querer viver (BRASIL, 2002).

Para Brazelton e Greenspan (2002, p.11-21), poucos tentaram identificar as exigências fundamentais de uma infância saudável, procurando compreender as necessidades essenciais e

os tipos de cuidado sem os quais as crianças não podem crescer, aprender e se desenvolver. Segundo os autores, se não pudermos satisfazer as necessidades das crianças, podemos comprometer as capacidades das futuras gerações de manter famílias e propiciar estabilidade econômica e política.

Amorim, Vitoria e Rossetti-Ferreira (2000) chamam a atenção para a enorme plasticidade do bebê humano, o qual é capaz, com base em interações com outros membros da espécie, de adaptar-se aos mais variados contextos, tornando-se representante de determinada cultura.

Para Winnicott (apud NASIO, 1995) a “mãe suficientemente boa”, identifica-se estreitamente com o filho durante os seus primeiros meses de vida, adaptando-se perfeitamente às suas necessidades físicas e psíquicas. Enquanto isso a “mãe insuficientemente boa” não tem a capacidade de se identificar com as necessidades do filho; em vez de responder aos gestos espontâneos e às necessidades do bebê, ela os substitui pelos seus. Segundo o autor, a pior das mães é a imprevisível, aquela que passa subitamente da adaptação perfeita para a falha, de tal modo que o bebê não pode confiar nela, nem prever nenhuma de suas respostas.

Para Brazelton e Greenspan (2002), a pior coisa para um bebê é não ter uma pessoa amorosa em sua vida ou estar em dúvida sobre essa pessoa. O maior medo de uma criança é, segundo os autores, a perda de um relacionamento primário. Ao falar de relacionamento sustentador, positivo, os autores acentuam não se referir a um paraíso sem sofrimento, raiva, aborrecimentos, desafios, pois, a partir de poucos meses, podem ser vistas todas essas emoções em um bebê. Os pais que apresentam uma noção realística sobre um relacionamento podem ser mais educadores, considerando tais emoções como parte da relação, podendo ajudar o filho a conviver com suas emoções e as dos outros, e a entender que pode ficar aborrecido ou ser desafiador, mas eles continuarão lá. Opostamente a esta situação, a mãe que superprotege o filho anula seu feedback interno. A criança se torna dependente dela para sinais e para controle, não aprendendo a confiar em si mesma.

No recém-nascido, o comportamento é fruto de uma interação de certas predisposições desenvolvidas pela espécie e os repertórios disponíveis naquela cultura. A criança, entretanto, em seus primeiros dois anos de vida, tem o desenvolvimento mediado de maneira mais concreta pelo outro, pela pessoa com quem estabelece maior vínculo afetivo e com quem se encontra, até certo ponto, fundida, assujeitada. Enquanto isso, a mãe, como pessoa capaz de desdobramento, de reflexão sobre si própria e sobre os outros e o mundo (e nisto, diferente do bebê), pode ter momentos de diferenciação desse “assujeitamento”, na busca da própria

identidade. À medida que a criança se torna capaz de desdobramento, espelhamento e diferenciação, ela também pode opor resistências de caráter diverso à capturação por parte do adulto, assumindo um papel mais ativo no processo de interação (AMORIM; VITORIA; ROSSETTI-FERREIRA, 2000).

A rede/malha de significações culturais que envolve o ser humano é constituída por meio de suas experiências anteriores, podendo inscrever-se no corpo, no gesto, na forma de sentir e agir. No caso do recém-nascido, cuja experiência de vida é restrita e recente, suas habilidades para exercer os próprios processos de significação ainda estão muito pouco desenvolvidas. O suporte pessoal básico é mais de caráter biológico. Mesmo esse, porém, é interpretado na malha de significações da cultura, particularmente pelas ações dos outros que com ele interagem com maior constância, frequência e mais investimento afetivo. Nessas interações vão se inscrevendo e se construindo novos significados, tanto por/para aquele bebê, como por/para seus parceiros. A característica humana básica é sua imersão em um mundo simbólico, nas e por meio das interações estabelecidas com diferentes parceiros, o que resulta em uma contínua elaboração de significados, conhecimentos, sentimentos e em sua constituição como sujeito (AMORIM, VITORIA; ROSSETTI-FERREIRA, 2000).

Bowlby (2006) assevera que as raízes de nossa vida emocional mergulham na infância e procuram explorar a ligação entre acontecimentos dos primeiros anos de vida e a estrutura e funcionamento da personalidade adulta.

Winnicott (2006, p.77) ensina que um bebê que está se tornando uma criança ou um adulto, na melhor das hipóteses, levará consigo a memória latente de “um desastre ocorrido com o seu eu”, e gastará muito tempo e energia em organizar a vida de tal forma que esta dor não volte a ser experimentada. A teoria de Winnicott (2006) realça a importância dos cuidados disponibilizados pelos pais aos seus bebês, como estruturantes da personalidade. E assegura que tal cuidado se estenda pela vida, mediante “círculos de cuidado”, funcionando como reestruturantes do self em situações de vulnerabilidade ou fragilidade vivida pelo indivíduo.

A capacidade para estabelecer relações próximas com pessoas significativas é um aspecto essencial para o desenvolvimento humano. Os primeiros laços afetivos da criança são estabelecidos com seus pais ou cuidadores, por meio do apego (BOWLBY, 2006). O apego é definido por Bowlby (2002) como a busca e a manutenção da proximidade de outro indivíduo, consistindo em um vínculo afetivo no qual os pais proporcionam a satisfação das necessidades da criança, de cuidados, conforto, carinho e proteção. A qualidade da interação

de pais e filhos, nutrida pela sensibilidade dos pais para responder às necessidades da criança, contribui para o desenvolvimento de um senso de confiança e segurança, que servirá como base para o conhecimento e a exploração do ambiente.

As experiências de apego desenvolvidas entre a criança e seus cuidadores servem como um modelo para os próximos relacionamentos. Bowlby (2002, 2006) denomina este processo de modelo interno de funcionamento, no qual a criança constitui uma imagem de si mesma e de seus pais, a qual comandará seus sentimentos na interação com eles e com o mundo. Este modelo evolui à medida que a criança cresce, transformando-se em uma representação mental da relação de apego, que persiste por toda a sua vida.

Ainda durante a gestação, os pais instituem uma representação mental das relações de apego, criando expectativas e padrões de relacionamento para eles e para o filho, baseados nas próprias experiências precoces de apego (BOWLBY, 2002; MALDONADO, 2005). Após o nascimento, os pais devem se adaptar às características e necessidades da criança, pois as expectativas dos pais em relação aos filhos influenciam no desenvolvimento do vínculo entre ambos, podendo acarretar distorções que repercutirão por toda a vida. Nos primeiros meses que seguem ao nascimento do bebê, a mãe entra numa fase em que “ela é o bebê, e o bebê é ela”; afinal, ela também já foi um bebê e guarda as lembranças de tê-lo sido (WINNICOTT, 2006, p. 4). As recordações da mãe de que alguém cuidou dela tanto podem ajudá-la quanto atrapalhá-la em sua experiência como mãe.

As características iniciais da criança podem influenciar a maneira como a mãe cuida dela, assim como as características da mãe podem influenciar o modo como a criança lhe responde. A participação da mãe nesta situação deriva de suas relações interpessoais em sua família de origem, como também da integração de valores e práticas de sua cultura (BOWLBY, 2002). A experiência, durante a gestação, de sentimentos positivos com relação à criança, bem como o apoio recebido do pai e dos familiares, auxiliam na adaptação ao papel da maternidade (MALDONADO, 2005).

Sampaio et al. (2007) enfatizam a noção de reciprocidade e interdependência, pressupondo que a relação da criança com a mãe (ou cuidador) se dá em um processo bidirecional, constituído por um conjunto de fenômenos dinâmicos ocorrentes ao longo do tempo entre mãe e criança. As autoras complementam, ressaltando que as interações envolvem não só características manifestas dos envolvidos, como também elementos representacionais imaginários e fantasmáticos, os quais compreendem os conteúdos psíquicos inconscientes, como idealizações, representações e valores transmitidos transgeracional e intergeracionalmente, manifestados por meio do corpo, da linguagem e dos afetos. A

interação, entendida pelas autoras como a ação recíproca entre dois fenômenos, está no fundamento da subjetivação; o sofrimento psíquico na primeira infância geralmente está associado a dificuldades no processo interativo, resultando em desarmonias funcionais nos registros de troca, ilustrados pela oralidade (incorporação pela via oral, como no caso da alimentação), invocação (relação com o outro mediante a comunicação) e especularidade (relação por via das trocas envolvendo o olhar).

A depressão materna, por exemplo, tem grave impacto adverso no desenvolvimento tanto mental como motor das crianças de ambos os sexos, e quanto mais grave e mais prolongada, maior o efeito deletério sobre o desenvolvimento. Para as meninas, a depressão materna crônica tem maior impacto sobre o desenvolvimento cognitivo (EICKMANN, 2003).

A desnutrição infantil, sendo um processo multicausal, envolve condicionantes biológicos, emocionais e sociais, incluindo o vínculo mãe-filho. Para o entendimento da situação nutricional da criança, a alimentação deve ser avaliada além das necessidades fisiológicas, uma vez que os primeiros conflitos interacionais encontram expressão na esfera da alimentação (SAMPAIO et al., 2007).