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4 PENSANDO A RELAÇÃO ENSINO DA FILOSOFIA E CIDADANIA NA

4.3 Oficinas de filosofia como espaço de construção da cidadania: o envolvimento

4.3.5 Quarto momento (práxis virtual)

Chegamos ao final das oficinas e consideramos que os momentos até aqui apresentados não estão dispostos de modo hierárquico, como se toda a prática tivesse como objetivo apenas este ponto final. Pelo contrário, todo o percurso da atividade teve sua importância em sua especificidade, sendo este último mais um momento de aprendizado e experiência significativa.

Acreditamos que a mediação do professor de filosofia nessa discussão contribuiu para mudar pelo menos um pouco o olhar dos estudantes em sua realidade, com um olhar mais

crítico e questionador, valendo-se da reflexão aprofundada e sistematizada. Convenhamos que isso não é muito comum nos espaços escolares, onde a sala de aula constitui uma atmosfera de liberdade de opiniões e questionamentos acerca de tudo, de falar e ser ouvido respeitosamente, estabelecer um diálogo com argumentos lógicos, momentos que favoreçam o desenvolvimento do pensamento autônomo, são alguns aspectos da perspectiva gramsciana que ao nosso ver pode muito ajudar na prática educativa em vista dessa cidadania que defendemos no decorrer do trabalho.

Se isso poderia ser feito por outra disciplina? No que toca a formação cidadã. Sim e não. A filosofia é apenas mais uma voz, mais uma ferramenta em vista da emancipação, dizemos isso pois a entendemos, enquanto saber que tem suas características próprias, possui noções e conceitos bem determinados, que não se encerram em si mesmos, podem ser questionados, repensados, por que não os atualizar? Isso só a filosofia pode fazer, nenhuma outra, valer-se da tradição filosófica, dos métodos rigorosos criados por filósofos para pensar os problemas de seus tempos. Isso deve fazer parte da formação dos estudantes para que se tornem “cidadãos governantes”, como falara Gramsci. Sobre isso, Lidia Maria Rodrigo salienta a importância da história da filosofia na formação dos estudantes:

Na conjuntura posta pelo atual ensino médio, cabe ao professor ser o mediador entre a filosofia e os alunos iniciantes, que não possuem ainda as qualificações requeridas para ter acesso a esse saber por conta própria, o que supõe que ele seja capaz de traduzir em termos simples um saber especializado. (RODRIGO, 2009, p. 71).

Isso não significa que as aulas de filosofia devem se tornar momento de exposição histórica da tradição, mas de serem um referencial necessário para a reflexão dos problemas atuais e que outros olhares possam se somar nessa discussão; o sociológico, o geográfico, o literário também são excelentes formas de estimular a criticidade, mas cada uma em sua singularidade.

Esse processo contínuo de construção da práxis proporcionado pela filosofia, que de pronto se mostra bem polêmico, pois visa um embate crítico contra os poderes hegemônicos, é essencial em nossa sociedade.

Diante disso, para encaminhar as discussões sobre a práxis virtual, motivamos os estudantes a refletirem sobre se o que pensam da sociedade, suas concepções de mundo e de sua própria realidade são concepções realmente suas ou são impostas pelo ambiente em que vivem e influenciadas pelos grupos sociais, tais como família, amigos, igreja e a própria escola. Surgiu uma discussão acalorada sobre esse ponto, inclusive muitos se reconheceram enquanto

sujeitos passivos e acríticos em relação as suas “próprias ideias”. Nesse viés, lançamos o questionamento a luz do pensamento de Gramsci:

[...] é preferível “pensar” sem disto ter consciência crítica, de uma maneira desagregada e ocasional, isto é, “participar” de uma concepção do mundo “imposta” mecanicamente pelo ambiente exterior, por um dos muitos grupos sociais nos quais todos estão automaticamente envolvidos desde sua entrada no mundo consciente [...], ou é preferível elaborar a própria concepção do mundo de uma maneira consciente e crítica e, portanto, em ligação com este trabalho do próprio cérebro, escolher a própria esfera de atividade, participar ativamente na produção da história do mundo, ser o guia de si mesmo e não mais aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da própria personalidade? (GRAMSCI, 2001, p. 93-94).

A expressão “aceitar passiva e servilmente” foi destacada como sendo àquilo que os estudantes não querem para si. Deste modo, resta a participação “ativa, guia de si mesmo, consciente e crítica na produção da história do mundo”, chegamos ao ponto alto da oficina quando os alunos por eles mesmos conseguiram perceber em Gramsci uma noção de cidadão próxima da que eles haviam vislumbrando.

Em contrapartida, foi lhes perguntado se seria possível uma cidadania que tivesse tais características apontadas por Gramsci no ambiente virtual, haja vista o atual cenário de isolamento social imposto pela pandemia do Coronavírus. Todos afirmaram que sim e a partir desse ponto buscamos coletivamente pensar em algumas práticas no ambiente virtual que pudessem serem exercidas esse tipo de cidadania, embora fosse destacado que não seria a única forma, nem a ideal.

Tal contexto nos impõe enquanto sociedade pensarmos o nosso papel como cidadãos. Uma cidadania requerida nesse momento que nos faça desenvolver a habilidade de tentar equilibrar os nossos direitos e deveres, se somos omissos ou zelosos em relação à pandemia, isso diz muito do tipo de cidadania que almejamos. Talvez o exercício da cidadania seja a melhor arma contra a ameaça do coronavírus.

Seguem as propostas dos estudantes:

 Postagens nas redes sociais sobre a valorização da ciência e das pesquisas na busca da vacina;

 Encaminhamento de demandas aos órgãos ou instituições públicas responsáveis; foi destacada a questão da coleta de lixo irregular onde residem;

 Discussão no ambiente familiar sobre o papel dos futuros cargos que serão escolhidos nas eleições de novembro 2020 (prefeito e vereador);

 Acompanhamento e fiscalização dos representantes políticos, comunicando-se com esses agentes por meio de websites, ouvidoria, ministério público e e-mails;

 Apoio às causas de interesse público assinando petições virtuais; foram citadas petições sobre a causa ambiental, dos animais, relacionadas ao transporte, emprego e segurança pública;

 Mobilização, organização e participação dos estudantes em plataformas online para discutir sobre a volta às aulas, a questão dos protocolos que serão tomados, os investimentos e adequação das escolas para esse retorno; salientaram que eles também precisam ser “ouvidos”;

 Identificação de fake news na Internet e sua consequente denúncia ou esclarecimentos das mesmas.

Cada vez mais essas reivindicações virtuais estão alcançando grande repercussão e servindo para fomentar muitas mudanças em nosso país. Não foi nosso intento fazer uma transposição da práxis “olho a olho” para esta atrás das telas dos computadores/celulares. Pelo contrário, entendemos que mudança de postura em vista da transformação perpassa também nesse ambiente e, notadamente, tornou-se uma ferramenta importante na luta contra a dominação e alienação. A filosofia se insere nesse contexto como potencialmente mediadora da formação teórico-cultural que critica a ideologia dominante e possa fazer com que recuperemos a condição humana de sujeitos históricos e protagonistas de nossas vidas.

Em suma, apresentamos a perspectiva gramsciana como um movimento ativo, que alia teoria e prática, uma práxis, capaz de analisar e estabelecer relações como possibilidade política de transformação da realidade. Isso só será possível se a filosofia estiver próxima dos mais excluídos e não àquela conformista e limitada a reprodução histórica, mas que vise a transformação.