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4 PENSANDO A RELAÇÃO ENSINO DA FILOSOFIA E CIDADANIA NA

4.3 Oficinas de filosofia como espaço de construção da cidadania: o envolvimento

4.3.4 Terceiro momento (debate e construção do conhecimento)

Esta etapa da oficina foi o momento no qual os estudantes debateram em vista de um entendimento coletivo acerca da cidadania e caminhar rumo a construção do conhecimento diferente, se distanciando do senso comum, bem como o posicionamento frente a realidade a qual refletiram, firmando compromissos e atitudes em vista da superação de problemas.

Avançando na direção da construção de um entendimento coletivo acerca da sua própria realidade, tal como proposto por Gramsci, partimos das percepções iniciais do senso comum que os estudantes tinham acerca de sua realidade. Para o filósofo italiano, a educação pode ser entendida como um processo de elevação do senso comum para o bom senso, ou uma nova concepção de mundo, menos superficial e mais crítica, onde os intelectuais, no caso o

professor/pesquisador exerce um papel de mediação. Essa concepção de mundo, segundo Gramsci, mais crítica e coerente está na consciência do que somos: Em suas palavras:

Conhece-te a ti mesmo, quer dizer, ser si próprio, quer dizer, ser patrão de si mesmo. Distingue-se, sair do caos, ser um elemento de ordem e de sua própria disciplina e não se pode obter isso se não se conhece também os outros, a sua história, a sucessão dos esforços que realizaram para serem aquilo que são, para criarem a civilização que criaram, e a qual queremos substituir à nossa (GRAMSCI, 1999, p. 94).

Como sair desse caos? Diante dos vários desafios que se mostram na sociedade, em especial a problemática educacional em tempos de pandemia, é necessário que sejam oportunizados momentos de reflexão crítica sobre o atual contexto, da função do Estado e da necessidade de uma reforma intelectual e moral conforme apresentado por Antonio Gramsci.

Foi discutido com os estudantes sobre a reflexão do senso comum reconhecendo a necessidade de superar essa visão, bem como a banalização frente os problemas da sociedade, tal intento não é algo exclusivo dos intelectuais e filósofos (GRAMSCI, 1999, p.93), pelo contrário, todos os homens são filósofos. Neste ponto, buscamos problematizar essa expressão de Gramsci, alertando sobre a que tipo de filosofia estamos nos referindo. Muito se propaga na sociedade uma ideia de filosofia simplória que qualquer um pode emitir sua opinião e ser considerado “filósofo”. Foi solicitado quais as características os estudantes elencariam como fundamentais para a filosofia. Surpreendentemente os participantes da pesquisa listaram características bem interessantes: “crítica”, “responsabilidade”, “refletir”, “engajamento”, “questionar”, “ação”, este último nos chamou mais atenção, quando veio dos próprios estudantes um entendimento de que filosofia pode se relacionar com a ação prática.

Nesse momento, indicamos o tipo de cidadania que se relaciona com a práxis, com a transformação da realidade. Aos poucos buscamos fazer com que os estudantes pudessem se posicionar, reconhecendo enquanto sujeitos históricos e críticos do senso comum, num processo contínuo.

Não se trata aqui de termos uma educação para formar “comunistas” ou qualquer outra coisa como dizem alguns, mas da construção de uma sociedade que esteja centrada nas pessoas e não apenas no capital, lucro e consumo. A questão central proposta por Gramsci é um projeto para as classes menos favorecidas, aqui se incluem os estudantes de escolas públicas, em vista de uma formação contra-hegemômica, sistemática, crítica e ordenada do mundo.

Nem sempre as pessoas reconhecem seu papel ativo na sociedade, mas também há aqueles que não tem consciência e reflexão teórico-crítica de suas ações. Pudemos debater sobre esse tipo de ação e relacionamos com um tipo de cidadania que não há criticidade como motivação, mas muitas vezes dogmatismo, extremismo e alienação. De todo modo, Gramsci

buscou concretizar a cultura por meio da superação do senso comum via filosofia da práxis, ou seja, um articulação teórico-prática, histórica, orgânica, concreta e atitudinal, no sentido de buscar respostas aos problemas que afligem as classes subalternas. Acerca disso, Gramsci fala que:

a elaboração de uma visão organizada de mundo não se faz arbitrariamente, em torno de uma ideologia qualquer, vontade de alguma personalidade, ou grupos fanáticos filosóficos ou religiosos. A não adesão ou adesão da massa a uma ideologia demonstra a crítica da racionalidade histórica dos modos de pensar. (GRAMSCI, 1999, p. 111)

Na busca dessa racionalidade histórica e crítica, procuramos identificar momentos atuais no Brasil em que a suposta ação cidadã teve uma motivação diferente daquela que almejamos em nosso trabalho e refletimos nas oficinas. Foi citada a questão da falsa ideia de “liberdade de expressão” associada a opiniões que visam destruir reputações e propagar ideais conservadores em uma sociedade desigual, preconceituosa, racista e misógina. A defesa de uma “pseudodemocracia”, quando os ditos cidadãos vão às ruas pedindo a volta da ditadura.

Foi salientado que essa concepção de mundo e de cidadania se distancia da análise filosófica que nasce de um momento histórico e da atividade crítica, sendo possível diagnosticar os problemas e contribuir para solucioná-los, saindo da neutralidade que vem se apregoando. O trabalho não se encontra apenas na análise sócio-histórica da realidade, mas na ação que o mesmo pensa a partir dela, na criação de soluções, que apetece sua transformação e participação dessa história.

A fim de dinamizar o momento foi utilizado a ferramenta Kahoot!35, onde por meio

de um quiz (verdadeiro ou falso) com afirmações acerca do tema abordado e situações problema ajudaram a ampliar o conhecimento na reflexão da realidade. Lembrando que o intento não foi de trazer conceitos objetivos e estanques sobre o entendimento de cidadania, mas servir como inspiração para obter elementos significativos para uma criação coletiva. Segue as afirmações:

- O conceito de cidadania é único, não havendo mudança desde quando surgiu lá na Grécia; -É necessário construirmos juntos um conceito de cidadania no atual contexto que vivemos; - O ensino de filosofia nos ajuda a sermos alienados e seguirmos as ideias dos filósofos; -O ensino de filosofia pode contribuir no desenvolvimento da visão crítica, autônoma e agir na transformação da realidade;

35 O Kahoot! é uma plataforma gratuita, com uma forte componente lúdica, que permite construir e aplicar questionários (Quiz ou Survey) e colocar questões para iniciar um debate (Discussion).

- Um cidadão consciente é neutro e não gosta de participar nem ouvir sobre os problemas da sociedade;

- Ser cidadão é saber de sua responsabilidade em transformar a sociedade e ser protagonista na ação social;

- Práxis tem a ver com teoria-prática, autonomia, emancipação, pensamento crítico, atitude; - Em relação a violência urbana, o principal responsável é o prefeito, devo cobrar dele!

- Para denunciar a lotação nos ônibus, sua demora e baixa qualidade devo reclamar ao governador;

-Ser cidadão é saber apenas dos direitos e deveres;

- As aulas remotas está acessível para todos, só não participa quem realmente não quer;

Fonte: produzida pelo autor da pesquisa

O jogo foi considerado pelos estudantes o ponto alto da oficina, onde puderam de modo dinâmico aprender mais sobre o assunto, sentiram-se inclusive mais animados para discutir. Através da potencialização interacionista proporcionada pelo jogo, notou-se uma mudança significativa no envolvimento dos alunos. Resumidamente vamos elencar algumas das mudanças que esse método desencadeou nos estudantes:

 O feedback dos estudantes do momento, de ter proporcionado maior contato com os conhecimentos que estavam sendo construídos. Sentiram-se mais “confortáveis” em participar, pelo fato de estarem acostumados com a linguagem dos games: “play”, “winner”, “enter”, “player”, dentre outros;

 A experiência foi parecida com a de estarem interagindo com o game e estarem imersos no mundo virtual, que em geral faz parte do cotidiano dos estudantes;

 A pontuação final do jogo resultou da quantidade de pontos acumulados com as respostas oferecidas pelos estudantes/jogadores. Assim, o foco não estava numa resposta vista de modo isolado, mas incorporou todo o percurso das respostas dos estudantes, através do acúmulo de pontos, o que era conseguido por meio da discussão crítica;

 Em relação aos “erros” foi dado um tratamento diferenciado. Nos jogos sempre há uma nova tentativa para tentar superar os problemas apresentados sendo abordados de uma forma diferente da anterior para obter sucesso. Dessa forma, por meio a discussão mais aprofundada ofereceu mais elementos

A analisar a escolha da metodologia dos jogos aplicada a aprendizagem sobre o tema da cidadania, avaliamos ter sido exitosa por ter potencializado as interações e a forma como os estudantes passaram a participar da discussão. Não que queiramos criar uma expectativa grande em torno do método, mas pode ser visto como mais um caminho em busca de soluções para a desafios da educação na contemporaneidade, já que o uso dessas ferramentas pode proporcionar experiências significativas educacionais, uma maior interação entre os estudantes e professor, tanto no ambiente escolar como em outros ambientes de aprendizagem, bem como a potencialização da participação naquilo que lhes dizem respeito. Ainda sobre isso, Marcelo Luis Fardo, uma das referências no Brasil no estudo dos jogos aplicados aos ambientes de aprendizagem, fala sobre as vantagens dessa experiência:

Talvez uma de suas grandes vantagens seja a de proporcionar um sistema em que os estudantes consigam visualizar o efeito de suas ações e aprendizagens, na medida em que fica mais fácil compreender a relação das partes com o todo, como acontece nos games. Da mesma forma, um dos objetivos principais de introduzirmos uma experiência assim é para que os indivíduos sintam que seus objetivos contribuem para algo maior e mais importante, que suas ações fazem sentido dentro de uma causa maior, que é o que os elementos dos games podem proporcionar se utilizados de forma cuidadosa, da mesma forma que conseguem dentro dos mundos virtuais. (FARDO, 2013, p.7)

Por fim, foi solicitado aos estudantes que fizessem uma síntese por meio de uma fala sobre seus compromissos enquanto cidadãos e estudantes, a responsabilidade que possuem com as pessoas que os cercam, o respeito que devem ter para consigo e com os outros, a preocupação com o local onde vivem.

A participação dos estudantes nessa fase foi muito boa, muitos fizeram apontamentos inclusive de cunho pessoal, deixando surpresos os demais colegas, pois muitos nunca haviam falado sobre as mazelas da sociedade e de sua realidade.