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2 – Que autonomia na escolha dos processos?

Antes de aprofundarmos qualquer explanação acerca da possibilidade da escolha dos processos, impõe-se a conveniente definição de autonomia. De seguida abordaremos o tipo de autonomia atribuída à escola portuguesa ao longo das últimas décadas.

Desde logo, a palavra “autonomia” é algo que, etimologicamente, remete para si próprio: ter autonomia é ser-se pelo que se é, independentemente dos outros; é ter independência relativamente a condições ou influências do exterior.

Trata-se de uma palavra polissémica, como tantas outras, mas contrariamente a algumas outras, polissémica também pela abrangência de áreas de aplicação, até dentro da teoria educacional. Não vamos aqui categorizar ou explanar aprofundadamente os tipos, campos ou concepções que os diferentes autores nos propõem (Tyler, Sarmento, Formosinho, ...). Vamos tentar alargar o espectro conceptual, de modo a que se abram hipóteses de interpretação tão englobantes quanto possível, no campo lexical de escola, claro.

A autonomia deve, ela própria e em si mesma, assumir perspectivas de abertura que permitam o desenvolvimento de outras autonomias, desde a sua faceta mais legalista ou administrativa até à mais humanizada e relacional. Esta autonomia de escola implica, obviamente, uma anterior descentralização do poder central, à luz de um ordenamento jurídico que a deverá pressupor. Assim sendo, é necessário que seja previamente definida a concepção de escola que se pretende implementar e que subjaz ao que se quer ordenar juridicamente: se uma “escola serviço-local-de-Estado” ou uma “escola-comunidade-educativa” (Formosinho, cit. in Sarmento, 1992:9).

Mais, o conceito de autonomia escolar contem ainda predominantemente dois tipos de abordagem: um que diz respeito ao modo como ele se operacionaliza de facto no terreno e outro que concerne os diversos condicionalismos em que essas operacionalizações se efectuam. Não nos deteremos neste tópico teórico de análise, que nos obrigaria à inventariação dos vários modelos de organização escolar e respectivas características, embora seja de notar que o grau e nível de autonomia dependem, mais ou menos directamente, do tipo de modelo de organização que se dinamiza. Acrescentaríamos aqui uma questão que consideramos muito pertinente no desenvolvimento da autonomia escolar: aquilo a que Sarmento (1992:30) chama “cultura de autonomia”, que diz ser sinónimo de “cultura de colaboração”. Ou seja, uma autonomia assente na motivação dos actores e dependente de um contexto político/administrativo central que seja favorável e estimulante. É a motivação/satisfação de todos, especialmente do corpo docente, que em algumas escolas tem potenciado práticas de autonomia, que por sua vez desencadeiam vontades e participação.

Sumariamente diríamos que “o quadro legal da autonomia estabelece as possibilidades para o exercício da autonomia, mas não garante a realização de uma escola assente no princípio da autonomia” (Ibidem:35). Verificamos, então, que a “autonomia não é, afinal, uma política, mas a substância de um novo tipo de escola” (Ibidem:6); que parece difícil de implementar na realidade portuguesa, talvez pela curta experiência de democracia e por uma tradição demasiadamente centralizadora a todos os níveis.

Independência e descentralização tornam-se obrigatoriamente palavras-chave de autonomia; quer diga respeito à autonomia política-administrativa, à financeira, à científica ou à pedagógica. Hoje, e de acordo com Sousa Fernandes (cit. in Ibidem:9-10), cremos que esta perspectiva se enquadra numa dimensão apenas de descentralização, visto continuarem a exercer-se formas de domínio e ordenamento directos do Estado e, portanto, registando-se ainda acentuadas relações de dependência e de subordinação hierárquica.

Recordando, acrescentaríamos que a História do nosso país é de facto escassa em exemplos de poder autónomo da escola pública. Durante quase cinco décadas e face ao regime político vivido em Portugal antes da Revolução de Abril, não é correcta sequer a referência a algum tipo de autonomia, escolar ou outra. No entanto, nas últimas décadas tem-se assistido a uma tendência para a moderação do habitual controlo que a administração central exerce sobre todo o sistema educativo (especialmente a partir dos anos 80) e, consequentemente, regista-se a transferência de competências e responsabilidades para as esferas regionais e locais.

Para essa situação têm contribuído não só os estudos das Ciências da Educação, como também a unanimidade, entre os países ditos desenvolvidos, de responsabilizar socialmente todos os intervenientes directos no sistema educativo, com vista a uma maior adequação, apropriação e rentabilização de recursos disponíveis. Saliente-se, porém, que em Portugal “o reforço da autonomia das escolas surge associado a projectos de reforma do Estado, e (...) não se trata de «criar» ou «dar» autonomia pois (...) na escola existe sempre e necessariamente poder de decisão. O que está em causa nestas políticas é o diferente teor deste poder de decisão localizado na escola” (Afonso, 1999:48).

E o acréscimo de autonomia só poderá ser sinónimo da capacidade de iniciativa de cada escola, da sua capacidade para se conseguir desenvolver no sentido de deixar de ser entendida como instituição seguidora de instruções superiores; passando a considerar-se uma comunidade inserida numa outra envolvente e em função da qual resolve os

problemas que se lhe deparam quotidianamente. Geram-se assim responsabilidades e obrigações para com aqueles que serve e, portanto, que a irão directamente ou indirectamente avaliar.

O sucesso e a diferença entre as escolas surgirá, desta forma, originário de um conjunto de factores que, na sua globalidade constituirão a singularidade de cada escola. A sua ponderação e avaliação será considerada no seu todo, assim como o desempenho da:

 tipologia de liderança

 qualidade das relações humanas  existência de trabalho de equipa

 qualidade da organização pedagógica (distribuição dos serviços entre os professores, horários, coerência de objectivos e métodos, apoio aos alunos,...)

 utilização dos recursos disponíveis (espaços, equipamentos, orçamento, ...)

Assim, urge um outro tipo de entendimento cultural/semântico de escola: “parafraseando Dewey - aquele que se constitui para educar os alunos na autonomia, pela autonomia e para a autonomia, dentro das comunidades em que se inserem” (Sarmento, 1992:41).

Saliente-se ainda que este entendimento de escola implica também o entendimento do aluno como sujeito activo, empreendedor da sua própria aprendizagem, numa perspectiva de autonomia do aprendiz, conducente a outras aprendizagens, noutros contextos, com outras finalidades. A tendência é, hoje e especialmente no futuro, o desenvolvimento de uma educação ao longo da vida. O aprender será um processo contínuo. Este alargamento educativo em termos temporais será cada vez mais abrangente, na medida em que pretende atingir, idealmente, a totalidade da população mundial e revestir-se da mais significativa taxa de sucesso.

Aliás, a Constituição Portuguesa, no seu art.13º, prevê já o princípio da igualdade e atribuir ao “sistema educativo a importante tarefa de contribuir para a diminuição das desigualdades económicas, sociais e culturais (art. 74º,nº2)” (Pedro, 2002:205). Nesse sentido tem vindo a ser publicada alguma legislação, visando a promoção da possibilidade de aprendizagem ao longo da vida, a par daquela que foi já publicada,

visando cobrir a interculturalidade que começou a registar-se nas escolas portuguesas depois da Revolução dos Cravos; altura em que a diversidade de população escolar a nível cultural, étnico, linguístico e social se acentuou de modo muito marcante. A observação do contexto actual escolar provoca imediatamente a necessidade de uma intervenção no sentido da prevenção e resolução dos chamados comportamentos disruptivos.

Se atentarmos na realidade de gestão das escolas portuguesas, verificamos que, havendo vontade, há de facto possibilidades de implementação de outras práticas de resolução dos conflitos. A autonomia de que as escolas dispõem actualmente permite inovação educacional, nomeadamente no que diz respeito à forma como se gerem esses conflitos. Intervenção que, sendo possível com a autonomia existente, é tarefa que se reveste de grande urgência, face à crescente onda de violência física e verbal que as assola. Os conflitos emergem em qualquer local e a maioria das escolas não dispõe de resposta satisfatoriamente eficaz para os gerir convenientemente.

Analisemos cada situação, para depois podermos intervir, no sentido do alcance de soluções adequadas, ou seja, para que consigamos escolas de sucesso. É que lidar com o conflito de forma construtiva, levando ao seu entendimento, à comunicação efectiva, à compreensão das razões da diferença, ... saber lidar com tudo isso poderá significar encontrar uma outra forma de gestão de conflitos, uma que produza efeitos mais duradouros e que a sua aplicação seja mais viável num contexto tão complexo como o escolar.

Vejamos então que autonomia terá hoje a escola para gerir os conflitos aí surgidos? Que possibilidades terá para o desenvolvimento de processos alternativos de gestão de conflitos?

Estas serão algumas perguntas com respostas que variam de escola para escola, dependendo da cultura e do clima aí vividos e também, claramente, do grau de autonomia que seja capaz de implementar (ou que lhe seja permitido) nas suas práticas educativas. Podemos, no entanto, afirmar desde já que a escola dispõe de oportunidades que lhe permitem o desenvolvimento de processos alternativos de gestão de conflitos, pois existe viabilidade legal para desencadear tal; dependendo a sua prática somente da vontade de cada escola e da motivação de toda a comunidade educativa.

A escola experimenta hoje desafios desmesurados, especialmente quando confrontada com outras ofertas de transmissão de saberes, mais informais e por isso mais apelativos; como são por exemplo os meios de comunicação social e a Internet, aquilo que comummente se apelida de escola paralela. A par disso, a organização escolar não se tem adequado convenientemente às mudanças que a sociedade tem registado, a todos os níveis. A falta de flexibilidade e a organização compartimentada da escola (cf. teorias neotayloristas) produzem efeitos directos no ensino e na aprendizagem que ocorrem dentro dessa estrutura ainda muito rígida e acentuadamente burocrática.

Se por um lado nos deparamos com determinados procedimentos de carácter mais ou menos controlador (por exemplo a figura do professor tutor, prevista no artigo 10º do Decreto Regulamentar nº10/99, de 21 de Julho), mais ou menos desmotivador/inibidor (por exemplo o Programa Escola Segura, em colaboração com a GNR e a PSP). Por outro, verificamos que as respostas legais aos comportamentos/atitudes irregulares/disruptivos no âmbito escolar português prevêem, como procedimento a seguir nos casos mais graves, a instauração de processos disciplinares (cf. Decreto-Lei nº 270/98, a Lei nº 30/2002 e o “Procedimento Disciplinar dos Discentes – Formulários Anotados”, do Gabinete Jurídico da DREL). Facto que nos leva a observar que a resposta tem tido alicerces pouco formativos e mais punitivos, descurando-se a perspectiva preventiva. Em situação paralela situa-se também a possibilidade de abertura à operacionalização de outras respostas de resolução deste tipo de problemas educacionais. De qualquer forma, para que seja viável uma resposta adequada a cada caso, para que ela se torne real e exequível (para que surja e não constitua mera utopia) deve cada escola, para além do respeito da escola para todos, ponderar um pouco também no princípio da escola para a vida (desenvolvido quase puramente nas experiências levadas a cabo na Bélgica); deve considerar a pedagogia de projecto ou as técnicas pedagógicas do Método Natural de Freinet (com algumas limitações e/ou adaptações), ou modelo da Escola Moderna (implementado com muito sucesso num número reduzido de escolas portuguesas). Poderíamos enumerar aqui muitas outras práticas (ainda que, em Portugal, restringidas a casos ainda muito isolados).

Não nos alongando mais, adiantaríamos apenas que provavelmente bastaria que a escola reflectisse um pouco nas seguintes questões, tão actuais e emergentes, do prólogo de Adolphe Ferrière, no livro Transformemos a Escola:

“A criança adora a natureza: encerraram-na por isso dentro de casas. A criança gosta de brincar: obrigaram-na a ‘trabalhar’. Pretende saber se a sua actividade serve para qualquer coisa: fez-se com que a sua actividade não tivesse nenhum fim. Gosta de mexer-se: condenam-na à imobilidade. Gosta de palpar objectos: ei-la em contacto com ideias. Quer servir-se das mãos: é o cérebro que lhe põem em jogo. Gosta de falar: impõem-lhe o silêncio. Quer esmiuçar as coisas: constrangem-na a exercícios de memória. Pretende buscar a ciência de modo próprio: é-lhe servida já feita. Desejaria seguir a sua fantasia: fazem-na vergar sob o jugo do adulto. Quereria entusiasmar-se: inventaram-se os castigos. Quereria servir livremente: ensinou-se-lhe a obedecer passivamente(...).”

(cit. in Sarmento, 1992:17-18)

A mudança que supostamente se pretende deverá ser orientada para o incentivo de uma dinâmica que vá para além da própria escola, de modo a ser capaz de envolver a comunidade e de promover a diversidade. Esta mudança não terá uma receita igual para todas as escolas, como é evidente, uma vez que cada caso é um caso diferente, pelas suas características interiores e pela sua realidade exterior. Essa receita só poderá ser semelhante nos fins, nos princípios que a orientam e no grau de envolvimento de todos os elementos do sistema. Ultrapassar e vencer este desafio é uma meta de todos os responsáveis educativos, principalmente porque “este desafio ainda é mais urgente agora do que antes porque as políticas de inclusão, a realidade multicultural exigem uma escola mais autónoma (...)” (Formosinho, in Costa, 2002:76).

Atribuir-se à escola um carácter mais social e comunitário, levando-a à integração na sociedade envolvente e a uma maior formalização desse relacionamento conduzirá, certamente, ao desenvolvimento dos princípios do aprender a aprender, do aprender a ser e da educação permanente; constituindo-se, assim, para a possibilidade de nascimento de uma escola singular, na pluralidade do universo educativo; uma escola nova, diferente da outra e das outras; uma escola comunidade educativa, sinónimo de inclusividade, de positivismo e de pluralidade.

O Ministério da Educação afirma pretender investir significativamente na educação, com vista a atingir uma maior qualidade na formação dos portugueses. Essa mudança passará pelo respeito de cinco valores:

1. “uma escola assente no respeito por valores (…) na busca da excelência 2. recentrar as políticas educativas na resposta objectiva às necessidades de

cada aluno (…)

3. valorizar (…) o estatuto do docente, (…) criar condições de estabilidade, motivação e de formação necessárias para os desafios de uma sociedade em constante mutação

4. (…) introduzir, a todos os níveis, uma cultura de avaliação (…) no desenvolvimento organizacional, profissional e humano

5. (…) determinação de enfrentar com rigor os problemas”

(site do Ministério da Educação, consultado em 16/06/05)

Deste modo, pretende-se uma educação “com sentido de modernidade (…), de responsabilidade (…), aberta ao mundo (…) e mais solidária (…)” (Ibidem). Estes serão objectivos concretizáveis por um conjunto de medidas, a saber:

 “a avaliação do desempenho das escolas (…)

 o desenvolvimento de um conjunto de iniciativas sistematizadas de combate ao abandono durante a escolaridade obrigatória (…)

 o reforço da autoridade dos professores e simplificação dos procedimentos em sede de inquérito disciplinar

 a criação de condições para a modernização e profissionalização da gestão dos estabelecimentos de ensino, simplificando processos, clarificando responsabilidades e prestigiando a figura do Director de Escola

 o forte investimento em programas de formação contínua de professores (…) ”

(Ibidem)

Se pretendermos a efectividade das alterações necessárias, destas e de outras, um dos primeiros passos poderá, como se pretende, partir da necessidade de formação

especializada em gestão pedagógica e administração escolar, por parte das direcções executivas das escolas. Os poderes geridos pelos seus elementos deverão fundar-se num princípio de autonomia, relativamente ao poder central/regional, com vista à edificação de uma escola menos burocrática, mais participativa, mais democrática, mais respeitadora e formadora de identidades pessoais e sociais de todos quantos nela coabitam.

Finalizando e sintetizando, diríamos que temos de estar conscientes de que a escola ideal de hoje já o não é amanhã, porque, tal como a sociedade de que faz parte muda, mudam os sujeitos, mudam os contextos, mudam as relações, ... muda tudo ou quase tudo. Por outro lado, a escola, tradicionalmente entendida como o local de transmissão de conhecimentos, deverá transformar-se no local onde se aprende democracia, através da sua prática. Essa prática trará consigo implícita a resolução de possíveis conflitos escolares pessoais ou inter-relacionais e, portanto, a aprendizagem de estratégias, contributivas para a formação e educação integral dos jovens da instituição escolar.

Se a Lei de Bases de 86 introduziu a possibilidade legal de existência de novos modelos nas escolas portuguesas, mais participativos, acompanhada pela devida formação no domínio da Administração Escolar (embora não se tenha generalizado essa prática), não chegámos, porém, à autonomia ao nível da gestão dos recursos humanos e financeiros. Ponto que se revela basilar, por exemplo na estabilização docente, cujo efeito imediato seria a desejada continuidade pedagógica e o necessário desenvolvimento eficaz de projectos educacionais, mais ou menos motivadores de práticas alternativas de aprendizagem, mais ou menos indiciadores de consideração de outra cultura de escola. Por exemplo, através da substituição dos sistemáticos processos disciplinares pela implementação de estratégias alternativas, mais formativas e simultaneamente preventivas, incentivando-se o êxito das relações entre todos na escola e criando um clima de bem-estar que fomente a aprendizagem.

Neste âmbito, pensar na implementação de estratégias de mediação será, com certeza, uma oportunidade excelente; até porque se trata de uma estratégia com efeitos tão abrangentes que vão para além de todo o processo educativo formal, pela extrapolação e aplicação em muitos outros contextos.

CAPÍTULO V