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Quem são os Kiriri do Rio Verde?

CAPÍTULO I: CHEGAR NO RIO VERDE

1.1. Quem são os Kiriri do Rio Verde?

O povo Kiriri, assim como a maioria dos povos indígenas que viveram e ainda vivem no Nordeste brasileiro, tem sua história marcada pela chegada dos colonizadores, pelas missões jesuíticas, pelo crescimento da pecuária no Sertão e pelas ações indigenistas do Estado (BRASILEIRO, 1996; POMPA, 2001; MACEDO, 2009; DANTAS, SAMPAIO & CARVALHO, 1992). Como mostram Dantas, Sampaio & Carvalho (1992), na primeira metade do século XVI, com seus bons portos e cidadelas, o litoral da região serviu como base para “as duas mais sólidas cabeças-de-ponte da colonização lusitana no continente na capitania de Pernambuco e na sede do governo geral, na Bahia de Todos os Santos (DANTAS, SAMPAIO & CARVALHO, 1992:431). Já no século XVII, o interior da região foi rapidamente penetrado pela frente pecuária. Acrescenta-se que a imensidão do Sertão, região que até a metade do século XVI era desconhecida pelos

portugueses, foi o lugar escolhido, segundo Macedo (2009), para abrigar os mais diversos sonhos de prosperidade e riqueza dos desbravadores coloniais. Com isso, o “preenchimento” do suposto vazio, na verdade povoado por diversas etnias, custou a morte de inúmeros indígenas (POMPA, 2001), que foram massacrados “ou subjugados pelos obstinados, via de regra cruéis, colonizadores” (MACEDO, 2009:25).

Para Dantas, Sampaio & Carvalho (1992), a possibilidade de compreender os povos indígenas no Nordeste enquanto unidade se deve ao fato de terem todos eles compartilhados momentos históricos semelhantes. Nesse sentido, a categoria antropológica índios do Nordeste ganha corpo para além de uma classificação etnológica a partir da localização geográfica desses povos. Apontando para historicidades semelhantes, a categoria diz sobre um fazer antropológico. Dessa forma, argumentam os autores que os povos indígenas do Nordeste configuraram

o que parece ser o conjunto étnico e histórico mais diretamente identificado ao Nordeste: o dos diversos povos adaptativamente relacionados à caatinga e historicamente associados às frentes pastoris e ao padrão missionário dos séculos XVII e XVIII. (DANTAS, SAMPAIO & CARVALHO, 1992:433).

Em uma perspectiva histórico-política, Oliveira (1998) argumenta que a presença colonial no Nordeste brasileiro fez com que os povos indígenas nessa região vivessem a instauração de uma nova relação com o território “deflagrando transformações em múltiplos níveis de sua existência sociocultural” (OLIVEIRA, 1998:54). Segundo o autor, para dar visibilidade a amplitude e profundidade desta mudança é necessário que pensemos em termos da noção de territorialização que é apresentada como

um processo de reorganização social que implica: 1) a criação de uma nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica diferenciadora; 2) a constituição de mecanismos políticos especializados; 3) a redefinição do controle social sobre os recursos ambientais; 4) a reelaboração da cultura e da relação com o passado (OLIVEIRA, 1998:55).

Para Oliveira (1998) as populações indígenas do Nordeste viveram dois momentos claros e distintos de processos de territorialização, sendo o primeiro na segunda metade do século XVII e nas primeiras décadas do XVIII, associado às missões religiosas, e o segundo ocorrido neste século a partir das ações indigenistas dos órgãos oficiais. Em busca por uma sociogênese de “remanescentes indígenas” Pankararu, Arruti (1999) acrescenta à análise de Oliveira (1998) que os processos de territorialização vividos pelos

indígenas na região Nordeste através de ações do Estado foram subvertidos pelos coletivos indígenas seja pela circulação de pessoas, e do próprio ritual do Toré, entre os territórios ou pela multiplicação étnica de um mesmo povo “que assim escapa às fronteiras estabelecidas e força o Estado a realizar novas territorializações, contradizendo a sua lógica inicial” (ARRUTI, 1999:35).

Documentos históricos confirmam a presença dos Kiriri no Sertão nordestino desde o final do século XVII (BRASILEIRO, 1996). Brasileiro (1996) mostra que segundo o capuchinho francês que viveu junto aos Kiriri, Bernardo de Nantes, este povo da família kariri, que habitava desde o Ceará e Paraíba até a porção setentrional do Sertão baiano (DANTAS, SAMPAIO & CARVALHO, 1992), era falante do ramo Kipeá20. A

aldeia mãe21, onde se encontra a maior parte das famílias Kiriri, antiga Saco dos

Morcegos e atual Mirandela, está localizada em Banzaê/BA e foi fundada no século XVII pelo jesuíta português João de Barros, juntamente com outras três aldeias22. O objetivo

deste trabalho missionário era reunir os Kipeá-Kiriri em uma área específica para catequizá-los. Assim como as demais aldeias, Saco dos Morcegos também sofreu fortes pressões e disputas ocasionadas pelo acelerado processo de expansão da pecuária, comandado pelos senhores da Casa da Torre no Nordeste do país (BRASILEIRO, 1996). Na tentativa de por fim ao conflito entre os senhores de terra e os religiosos que administravam as aldeias, o rei de Portugal, através do Alvará Régio de 23 de novembro de 1700 assegurou aos índios da região a posse da terra compreendida em uma légua em quadra (BANDEIRA, 1972; BRASILEIRO, 1996). Sheila Brasileiro (1996) ainda acrescenta que, segundo o costume da época, a demarcação partiu da igreja missionária aos oito pontos cardeais e colaterais, formando um octógono regular de 12.320 ha, delimitando a aldeia Saco dos Morcegos.

20 Há, entre os Kiriri do Rio Verde, uma preocupação constante em recuperar a língua kiriri. Algumas vezes

me pediram para que eu procurasse na internet materiais que pudessem ajudá-los na empreitada. De minha parte, encontrei e disponibilizei para eles as obras “Arte de Gramática da Língua Brasílica da Nação Kiriri” e “Catecismo da Doutrina Cristã na Língua Brasílica da Nação Kiriri ((1942[1698]) ambas do padre Luiz Vicencio Mamiami. Disponibilizei ainda a obra de Arion Dall'igna Rodrigues (1942) “O artigo definido e os numerais na língua Kiriri”.

21 A categoria utilizada para referenciar a Aldeia Kiriri de Mirandela não pôde ser aprofundada neste

trabalho. Apesar disso, compreendo que aqui utilizar a categoria aldeia mãe para dizer de onde saíram parece indicar uma pista de um problema de pesquisa futuro.

22 São elas: Canabrava, atual município de Ribeira do Pombal/BA; Natuba, atual Nova Soure/BA e Jeru,

Após a saída forçada23 dos jesuítas do Brasil no ano de 1758, a aldeia Kiriri de

Saco dos Morcegos, que contava com cerca de 960 índios, foi transformada à categoria de Vila, levando o nome de Mirandela. Para Bandeira (1972) e Brasileiro (1996), a saída dos jesuítas e a consequente dissoluções das aldeias, bem como a substituição por uma administração civil em todas as quatro aldeias Kipeá-Kiriri, contribuíram de forma significativa para a invasão das terras indígenas. Brasileiro (1996) também nos informa que, devido à baixa qualidade das terras da região, ao contrário de seu entorno ocupado por grandes fazendas, Mirandela foi ocupada por segmentos camponeses repelidos das áreas mais férteis do agreste.

Em 21 de março de 1837, com a Lei Provincial nº 5, Mirandela foi extinta e anexada ao município de Pombal (BANDEIRA, 1972). O século XIX contou com intensas perseguições de pecuaristas da região e desmandos administrativos comprometidos, geralmente, com interesses locais. Tais ações, via de regra dos Diretores de Índio24, agravou-se, porém, com a extinção dessa Diretoria, o que implicou a retirada

dos Kiriri de qualquer legitimação étnica e contribuiu para agravar ainda mais as invasões de fazendeiros e posseiros nas terras indígenas (BRASILEIRO, 1996). Durante este período, estima-se que boa parte das terras da antiga aldeia Saco dos Morcegos tenha sido negociada pelos próprios Kiriri que, então, dispersaram-se do núcleo central de morada, passando a ocupar localidades pouco atrativas em seu entorno (id., 1999).

No final do conturbado século XIX, um expressivo número de famílias aderiu à Antônio Conselheiro, conhecido por suas andanças na região e por seus conselhos dados, e, como consequência, boa parte dos Kiriri se mudaram para Canudos25. A ida para

Canudos implicou, para além das perdas territoriais, a morte de importantes líderes religiosos e dos poucos falantes da língua, enfraquecendo, assim, as práticas rituais e, sobretudo, prejudicando a comunicação com os mestres encantados, seres centrais da

23 Pelo decreto de expulsão assinado pelo Marquês de Pombal.

24 O Diretório dos Índios ou Diretório Pombalino foi promulgado em 1757, em um momento em que o

Estado Português enfrentava sérias dificuldades econômicas e políticas.

25 Para Edwin Reesink, “pelo que se depreende da sua tradição oral, os Kiriri se empenharam e se engajaram

em Canudos por causa do deslocamento do centro sagrado do mundo: o seu santo padroeiro se mudou para Canudos apesar de continuar em aparência (a imagem em si) na igreja em Mirandela (povoado centro do território e do mundo Kiriri)”. (REESINK, 1999:155). Para saber mais sobre a presença Kiriri em Canudos e os possíveis motivos que os levaram à expressiva adesão à Antônio Conselheiro, ler Mascarenhas (1993; 1995); Reesink (1999; 2012); Vander Velden (2003).

cosmologia Kiriri26 (id.,1996). Após o agravamento da Guerra em Canudos, os Kiriri

sobreviventes retornaram à Mirandela.

Como consequência de todo esse processo histórico, perdurou a resistência ao reconhecimento dos Kiriri enquanto povo indígena até meados do século XX. No ano de 1968, quando esteve em Mirandela para realização de trabalho etnográfico, Maria de Lourdes Bandeira observou que, devido à coabitação, seria esta a localidade referência como “ponto de convergência e de contato mais efetivo entre caboclos e portugueses” (BANDEIRA, 1972)27. Como consequência da expulsão de suas terras ao longo dos

séculos, a maior parte dos Kiriri começou a ocupar pequenos nichos no entorno de Mirandela.

Em 1941, pressionados pelas constantes invasões em seu território, os Kiriri reivindicaram ao Serviço de Proteção ao Índio, o SPI, o reconhecimento do direito da légua em quadra doada pelo rei de Portugal. Com a insistência dos indígenas, o interventor estadual, Landulfo Alves, solicitou que o SPI apurasse os fatos. Contudo, a única constatação do engenheiro do Ministério da Agricultura enviado ao local foi de que boa parte da área reivindicada pelos índios realmente estava ocupada por regionais. Com isso, foi só em 1947, por iniciativa de um pároco da região, que os Kiriri puderam traçar, em uma nova inspeção realizada pelo SPI, a precisão do “formato octogonal do “chapéu do sol” que constitui seu território, assim como os marcos naturais convencionados por eles para sua orientação física” (MACEDO, 2009:25), o que teria causado profunda impressão no sertanista enviado à região para análise dos fatos. Assim, em 1949, o Posto Indígena de Tratamento Góes Calmon foi instalado, mas, pouco mudou a situação territorial dos Kiriri que passaram a receber amparo legal na condição de povo etnicamente diferenciado.

26 Os mestres encantados serão melhor empreendidos no capítulo II desta dissertação de mestrado. 27 Bandeira utiliza a categoria caboclo para fazer referência a esta antiga nomeação para indígenas. Para ler

Figura 4: Mapa do Território Indígena Kiriri desenhado pelos próprios índios e que possui os oito marcos do território de origem, chamado pela comunidade de Chapéu do Sol.

Fonte: Índios na visão dos índios Kiriri. Disponível em <http://www.thydewa.org/downloads/kiri>. Último acesso 02/12/18.

Nos anos que se seguiram, o desmantelamento do SPI pôde ser percebido no Posto Indígena de Mirandela que esteve desaparelhado e “envolvido no jogo clientelista regional” (BRASILEIRO, 1996:93) durante o período. Ao final dos anos de 1960, a situação dos Kiriri ainda era grave. Foi apenas no ano de 1972 que os Kiriri iniciaram um intenso processo de recuperação de certa “tradicionalidade indígena” quando Lázaro Gonzaga de Souza, escolhido cacique, assumiu a liderança do grupo na região de Mirandela e vislumbrou a busca por uma identidade Kiriri, o que gerou diversos conflitos internos, estimulados por uma não concordância com determinadas exigências impostas pelo cacique28.

Atualmente, grande parte do povo Kiriri está distribuído em onze núcleos aos arredores do núcleo central de Mirandela, sendo estes: Baixa da Cangalha, Baixa do Juá, Araçá, Canta Galo, Cajazeira, Segredo, Pau Ferro, Marcação, Baixa Nova, Mirandela, Gado Velhaco e Lagoa Grande. Até meados dos anos oitenta, os Kiriri que atualmente vivem em Muquém de São Francisco e, agora, em Caldas, no Sul de Minas, estavam localizados no núcleo Lagoa Grande. É com muita satisfação que alguns de meus

interlocutores no Sul de Minas costumam se lembrar da localidade. Como contam, havia uma extensa e bonita lagoa na localidade e é na Lagoa Grande que, uma conhecida liderança Kiriri, sr. Domingos, pai do atual cacique dos Kiriri do Rio Verde, fazia suas ferramentas de ferro, tinha um pequeno bar e criava gado.

O cacique do povo Kiriri do Rio Verde me contou em algumas ocasiões sobre suas lembranças em Mirandela. Apesar de ter nascido e vivido somente até os quatro anos de idade na Lagoa Grande, o cacique, de aproximadamente quarenta anos, se refere à Mirandela como aldeia mãe. Reesink (2012), em suas pesquisas junto aos Kiriri de Mirandela, aponta que a localidade, que está no centro do território indígena como podemos atestar na figura 4, é considerada o centro do mundo para este povo. Ainda, a igreja católica construída pelos missionários do século XVII está localizada no centro da aldeia e, para isso, Reesink (2012) argumenta que, de fato, deve-se observar que “a medição original da terra da aldeia procedia a partir da porta da igreja, medindo uma distância igual para todos os lados (uma légua para cada lado)” (REESINK, 2012:253). Lembremos também que Bandeira (1972) verificou que os encantados, estes seres que também habitam o cosmos kiriri, “escolheram Mirandela para ponto de concentração” (BANDEIRA, 1972:79), o que possibilita a reflexão de que a aldeia mãe também pode ser compreendida como referencial cosmológico para os Kiriri. Nesse sentido, a aldeia mãe parece dizer da importância desta localidade para este povo.