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Voltar para o Rio Verde: Nós não temos papel, nós só temos coragem

CAPÍTULO III: FAZER AMIGOS, CONSTRUIR ALIANÇAS

3.2. Voltar para o Rio Verde: Nós não temos papel, nós só temos coragem

Os Kiriri permaneceram em Patos de Minas durante pouco mais de dois meses. Neste período, a família de sr. Paulo se articulava com outras famílias do Rio Verde para que pudessem trazer os Kiriri de volta às terras do Sul de Minas. Na terra ocupada no Triângulo mineiro, as moradias das pessoas do MST ficavam a poucos metros dos barracos. Um pouco mais distante, se encontravam as moradias da família Xucuru-Kariri que ali estava. Apesar da proximidade com as moradas das pessoas do MST, não havia uma relação próxima entre eles e os Kiriri. Assim, apesar de fazerem amizade onde chegam, ao contrário do que aconteceu no Rio Verde, onde os Kiriri se esforçaram para fazer e manter a amizade com os locais, em Patos de Minas, preferiram não correr atrás de amizade, afinal, como afirmou Carliusa, não vou correr atrás de amizade no lugar que não vamos ficar. Em contrapartida, fizeram questão de mencionar que algumas pessoas do Rio Verde, sobretudo a família de sr. Paulo, ligavam para as famílias kiriri em Patos de Minas todos os dias para dar boa noite e saber como estavam. Disseram-me, em sequência, que o povo do Rio Verde não os esqueceu e que povo como este do Rio Verde não encontrariam em lugar algum. Nesse sentido, as relações de amizade e apoio referenciadas pelos Kiriri são, ainda, relações que envolvem afeto e cuidado.

Em Patos de Minas, os Kiriri chamavam atenção para a cancela que permanecia constantemente fechada. Para o cacique e sua esposa, o cadeado, colocado por pessoas do MST e que mantinha a porteira trancada, impediria que eles recebessem visitas surpresas de amigos que quisessem ajudar e faria com que estes amigos esperassem muito até que alguém pudesse liberar o caminho até os barracos em que estavam, assim como aconteceu comigo quando os visitei. Além do afeto e cuidado, importam aos Kiriri as visitas nas áreas ocupadas e, deixar a cancela da terra aberta, significa possibilitar que pessoas que queriam construir alianças e oferecer ajuda possam entrar. As relações de amizade são, portanto, possibilidades que, de partida, se mostram como positivas.

Receber os que querem ajudar é também o motivo pelo qual o cacique Adenilson diz não poder sair da aldeia para trabalhar nas roças da região, como fazem os outros homens adultos. O cacique argumenta que sua presença na aldeia em tempo integral é muito importante para quando chegarem pessoas da região, muitas delas com a intenção de ajudar as famílias. Dessa forma, é possível compreender como as atividades da semana santa foram importantes para fazer amizade aos moldes kiriri do Rio Verde: as visitas das pessoas à aldeia, o compartilhamento de comida e os sentimentos de pertencimento e cuidado selados nos eventos realizados naquela semana. Nesse sentido, as pessoas devem caminhar e visitar umas às outras, já que com elas também caminham amizade, apoio, ajudas e cuidados.

A família de sr. Paulo, vizinha à aldeia, é uma das responsáveis por cuidar da pequena igreja do Rio Verde. Foram eles uma das primeiras famílias com quem os Kiriri fizeram amizade no bairro. As visitas da família na aldeia aconteciam vez ou outra. Logo que sr. Paulo, srª Maria e Sandra souberam que havia algumas pessoas morando naquelas terras em situação improvisada, levaram cobertores para que pudessem suportar o frio do Sul mineiro e ajudaram como puderam com roupas e alguns alimentos. Um ano após a entrada dos Kiriri na área e um mês antes dos eventos da semana santa, em março de 2018, srª Maria e a filha Sandra compraram um bolo e alguns refrigerantes para Carliusa e chegaram à aldeia de surpresa para comemorar o aniversário da esposa do cacique.

A família vizinha à aldeia também se tornou uma mediadora entre os Kiriri e a igreja local, o que resultou na participação dos indígenas nas atividades da semana santa explicitadas ao longo do capítulo II. Mediados pela família de sr. Paulo, o cacique Kiriri e sua esposa foram convidados para participarem de uma reunião realizada pelos dois padres responsáveis pelas Igrejas católicas do município. A reunião, que aconteceu na sede municipal de Caldas, contou com a presença de representantes de outras comunidades rurais, bem como outros dois representantes do Rio Verde, sendo um deles sr. Paulo, também representantes da Polícia Militar e de outros municípios da região. O objetivo do encontro seria refletir sobre a campanha da fraternidade empreendida pela Igreja no ano de 2018, que tinha como tema “fraternidade e superação da violência”.

Na reunião o padre apresentou vários vídeos sobre violência. Em um deles, a Igreja apresentava o tema da violência sofrida pelos povos indígenas no Brasil diante de conflitos territoriais. Após a exibição dos filmes, formaram-se alguns grupos de trabalho com eixos temáticos que deveriam oferecer propostas e soluções para as questões de

violência no Brasil, sendo um desses eixos a violência contra os povos indígenas. Apesar de não estarem no GT que debatia o tema, os Kiriri se sentiram bem representados pela proposta apresentada. Diante da eminência do cumprimento da liminar de reintegração de posse nas terras do Rio Verde, o GT decidiu que, ao contrário de propor formas de acabar com a violência dos povos indígenas de maneira generalizada, deveriam pedir que a comunidade e a Igreja se reunissem e escrevessem um documento que seria enviado à reitoria da UEMG, exigindo a doação da terra ocupada no Rio Verde para os Kiriri, definitivamente. Adenilson e Carliusa, conforme contam, ficaram surpresos com a reação das pessoas, que vieram até eles para saber mais sobre sua chegada em Caldas e sobre sua situação.

Antes do convite para participar desta reunião, os Kiriri já haviam me dito sobre a falta de apoio da Igreja católica local, bem como da prefeitura e dos moradores do município à comunidade. Contaram que o prefeito do município àquela época64 dissera

publicamente, durante a primeira “Mesa de Diálogo e Negociação” em que estiveram presentes, que não gostaria que outro povo indígena vivesse em Caldas, se referindo aos já residentes Xucuru-Kariri, já que, como disse, índio é muito pidão. Com a falta de redes de alianças no município, havia uma preocupação constante entre os Kiriri sobre sua permanência naquelas terras. Sem apoio do poder público local e de seus antigos aliados Xucuru-Kariri, os Kiriri se apoiavam em seus encantados e, vez ou outra, diziam que na situação em que estão, deviam fazer e manter a amizade com os locais e que, sem o apoio das pessoas não conseguiriam ficar ali. Assim, a necessidade de fazer e manter amizades, de forma que conseguissem apoio para permanecer na terra do Rio Verde, estava clara. Como mostrei no capítulo II, a amizade entre os Kiriri e o povo do Rio Verde se consolidou durante os eventos da semana santa e desde lá os kiriri não se sentem mais sozinhos. Dessa forma, a rede de amizade entre Kiriri e povo do Rio Verde foi consolidada sobretudo com a mediação da família de sr. Paulo que, pressionando a Igreja local, que também já teria sido pressionada pelo CIMI em uma visita à aldeia em fevereiro de 201765, conseguiu com que a instituição fosse a mediadora entre os Kiriri e as outras

famílias do Rio Verde nos eventos da semana santa.

64 O prefeito de Caldas naquele momento, Ulisses Guimarães (PTB), deixou o cargo em 2018 para concorrer

enquanto deputado estadual de Minas Gerais.

65 Segundo os Kiriri, a representante estadual do Conselho Indigenista Missionário, o CIMI, havia

conversado com o padre local, lembrando da responsabilidade que a Igreja possui com relação à ajudar os

Enquanto os Kiriri estiveram em Patos de Minas, fui convidada por Sandra, filha de sr. Paulo, para que fosse em uma reunião entre ela, o padre da Igreja local e o promotor estadual de Caldas. Na reunião, o promotor se mostrou surpreso ao saber que Sandra havia levado um abaixo assinado e uma carta assinada por moradores do Rio Verde em que pediam a intervenção do Ministério Público Estadual para trazer as famílias indígenas de volta ao Sul mineiro. A mim, coube dizer da situação de meus amigos em Patos de Minas, já que eu havia estado na área ocupada por eles e visto de perto a situação em que se encontravam.

Foi através desta rede de amizade que os Kiriri voltaram para Caldas. Mesmo não tendo o papel [referente à escritura das terras do Rio Verde] e só tendo coragem, os Kiriri decidiram voltar ao Sul mineiro quando as famílias do Rio Verde se organizaram, novamente mediados pela família de sr. Paulo, e juntaram uma quantia financeira suficiente para trazê-los de volta de Patos de Minas e mesmo de Muquém de São Francisco. Um dos moradores do Rio Verde disponibilizou o caminhão e aceitou fazer o trajeto entre Caldas e Patos de Minas para buscar os pertences que haviam levado para o Triângulo mineiro.

Assim, em meados de julho, apoiados pelas amizades que fizeram, os Kiriri voltaram ao Rio Verde encontrando suas moradias nos mesmos lugares, com seus sofás, armários e camas deixados para trás. A cancela do Rio Verde, fechada durante a permanência dos Kiriri em Patos de Minas, agora voltaria a permanecer aberta e os indígenas iniciariam uma empreitada na busca de aliados no Sul de Minas Gerais, na capital do estado e dentro da Universidade Estadual de Minas Gerais, como mostrarei a seguir.