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Uma terra prenhe de significados

CAPÍTULO II: TERRA VERDE

2.5. Uma terra prenhe de significados

Para finalizar este capítulo, gostaria de retomar de maneira mais organizada alguns pontos. Quando os Kiriri dizem do Sul de Minas Gerais e do motivo de sua ida para a localidade, eles se referem ao trabalho oferecido na região como uma das principais razões. Mas, para além disso, se voltarmos um pouco neste trabalho, veremos que um espaço para plantar, para morar e para sonhar, no sentido do desejo vivo, do anseio, é de fato o que os Kiriri almejam. Ainda, é importante lembrar que de maneira muito improvável os Kiriri chegariam até a terra verde sem o conhecimento prévio de Caldas/MG enquanto viveram entre os Xucuru-Kariri. A terra no Sul de Minas Gerais possibilita, portanto, que os Kiriri vivam uma vida como julgam que devem viver, tomando a amizade, a negociação, o afeto e o apoio como traços da sociabilidade, sustentada pelo alimento que pode ser produzido dentro de sua própria terra, sem agrotóxicos, apenas com o tempo e a dedicação de prepará-lo da forma correta. É aqui que a terra para os Kiriri adquire um sentido de terra sagrada. Assim, o cacique Adenilson esclarece que

aqui [nas terras do Rio Verde], eu falo pra um bocado de gente, você chegou de Belo Horizonte pra cá você já vê um cheiro diferente... Pra lá é muita sequidão. Você anda horas e mais horas na estrada retinha, igual uma linha, retinha. Mas de um lado e de outro é seco, não vê uma folha em cima. Então você fica desesperado, eu mesmo fico desesperado em um lugar daquele. Quando você chega de Belo Horizonte pra cá, você já vê

os pastos tudo bonito... Muita plantação de café linda, rapaz. Você chega

aqui, tu vê olho d’agua... Essas nascentes. Em todo lugar que você vê,

imagina, tem água correndo dentro... Isso é uma coisa da natureza que

ficou e que o bicho homem tá destruindo, mas hoje pra gente ter um lugar

desse aí, igual nós temos aqui, é tipo um lugar sagrado. Tem que cuidar

daquele lugar pro resto da vida. Então é muita diferença. Eu mesmo quando eu cheguei aqui eu me agradei demais... eu falei, ih, vou arrumar um lugar desse aqui pra eu morar, vai ser por aqui mesmo... Só que meu pensamento era chegar aqui e comprar uma casa na cidade [na sede municipal de Caldas], aí eu ia morar mais ela [Carliusa], nossos filhos, eu só tenho o Tuntum [filho mais novo do cacique] tudo criado... um dia eles vão se casando, vão saindo e aí vai ficar só eu mais ela, vamos ficar dois variado. Então a gente compra uma casinha e vamos... Só que é uma coisa que puxa, eu não sei, parece que é um destino que a gente tem que fazer

mesmo. Se eu tô na roça catando batatinha, eu tô lembrando das coisas

que a gente faz, cantando nossos cantos, eu não esqueço, não tem jeito,

até dirigindo eu vou cantando umas cantigas de Toré. Então, bate aquela saudade na gente né?! (CACIQUE ADENILSON, 2018. Grifos meus). Este modo de descrever a terra me afetou desde o primeiro dia que minha escuta etnográfica foi tomada por estas palavras. Entrecruzando os sentidos e as sensações provocadas no próprio corpo como, por exemplo, o medo, o desespero, a memória marcada pelos cantos do Toré, a não-violência encontrada no Rio Verde e a tranquilidade que podem sentir na localidade, os Kiriri me diziam sobre aquela terra e o desejo de nela permanecer. Lembramos ainda que a mata, toda pintada de cor verde pelo cacique no desenho da terra (figura 8) tem um lugar central para os Kiriri, já que é em meio à mata que a Ciência deve ser realizada e é na Ciência que a pessoa kiriri se realiza plenamente.

Para Antonádia Borges (2014), “terra é um conceito que, a despeito de sua suposta transparência de significado, evoca conflitos de ordem tanto interpretativa quanto política” (BORGES, 2014:432). Marcela Coelho de Souza (2017) argumenta, tomando como base a ideia de “nossa terra” para os Kisêdjê, que a emergência desta noção de terra, apesar de trazer consigo a expressão de posse, representa mais uma terra tomada com envolvimento mútuo entre pessoas humanas e não-humanas. Assim, a terra pensada enquanto bem imóvel ou substrato físico é muito pobre, nas palavras da autora, para descrever a “nossa terra” Kisêdjê. Para Coelho de Souza (2017),

Se precisamos de analogias para que o diálogo, a tradução ou o “reconhecimento” sejam possíveis, pode bem ser que riqueza intangível seja uma escolha melhor — ao menos apontaria para a terra como potência criativa, evidenciada nas relações entre pessoas (humanas ou não). (COELHO DE SOUZA, 2017:123)

Seguindo este argumento nos deparamos com o que aponta Marilyn Strathern (2009) no contexto Melanésio, em que a terra é tomada como um modelo criativo, e não meramente produtivo. Segundo Strathern (2009), pensar a terra apenas como um tipo específico de recurso é reduzi-la a uma de suas capacidades. A autora ainda afirma que, em seu contexto de pesquisa as pessoas estão mais interessadas em apreender a noção de terra como um recurso que produz recursos. Por isso, sugere que a terra deve ser pensada antes como criatividade, e não produtividade, sendo os produtos as criações. Strathern (2009) advoga que, em alguns contextos, observamos a coexistência de uma terra de capacidades tangíveis e intangíveis. É o caso, por exemplo, da terra kiriri no Rio Verde. A terra é tangível quando é capaz de gerar alimentos como o milho plantado e colhido

nas terras Sul-mineiras, mas também se apresenta na qualidade de terra intangível quando é expressa enquanto terra de relações: as redes de aliança firmadas por relações de amizade e as redes de parentes, ambas nutridas pelo ato de comer junto em determinados momentos com os seres humanos e não-humanos que habitam o cosmos kiriri.

Até a primeira visita de membros da FUNAI na área ocupada em abril de 2017, os Kiriri não sabiam que a dimensão da terra ocupada era de 39 hectares. Ainda nos dias de hoje, usam o número de forma estratégica em reuniões com o estado de Minas Gerais ou com algum representante público como, por exemplo, promotores do Ministério Público Estadual ou Federal. Para os aliados que de alguma forma se sensibilizam com a situação em que estão, os Kiriri descrevem a terra ocupada de forma diferente. Dizem do rio que passa dentro da área e que leva o nome de Rio Verde, do milho, do feijão, das abobrinhas, dos pimentões e dos inhames que já plantaram na área, das casas que já construíram e do que já realizaram na terra. Aos amigos, e aqui incluo a mim, os Kiriri ressaltam suas sensações: o desespero que a falta d’água causava no Oeste da Bahia, a proximidade dos lugares com o Rio, o desejo de construir uma lagoa na localidade ou de produzir alimentos sem agrotóxicos, os olhos d’água encontrados nas terras do Rio Verde, a coloração verde da terra verde, o sobe e desce dos morros e a possibilidade de estar perto de seus encantados, lembrando deles para que eles também se lembrem dos Kiriri.

Tomando como dado etnográfico a descrição dos lugares a partir de suas qualidades sensíveis provocadas no corpo kiriri, o segundo capítulo desta dissertação buscou refletir sobre as implicações da terra ocupada pelo grupo no Sul de Minas Gerais. Dessa forma, exploramos o que é a terra do Rio Verde para os Kiriri que lá vivem e como essa terra, em uma relação recíproca, alimenta a vida kiriri. Nesse sentido, a terra verde parece ser, por excelência, o lugar onde as relações de compromisso e cuidado entre os humanos e não-humanos são possíveis. Mas, mais ainda, a vida kiriri só é possível a partir da criação de redes de apoio e aliança entre seres de múltiplas agências, o que possibilita o modo de fazer política deste Povo.

Na situação em que estão, em um movimento de territorialização no Sul de Minas Gerais, os Kiriri contam com a ajuda e amizade de seus encantados e dos amigos que têm feito no Rio Verde. Assim, cabe-nos acrescentar que a terra do Rio Verde tem revelado uma trama de relações de afeto, apoio político e, sobretudo, negociações. A terra kiriri no Sul-mineiro aponta para uma “criatividade política indígena”, para usar os termos de Sztutman (2013), acionando os moradores do bairro rural do Rio Verde, encantados e

aliados que queiram ajudar na luta pela terra. Sztutman (2005) aponta, a partir da relação entre xamanismo e ação política em contexto amazônico, que a noção da política indígena nesses contextos deveria ser compreendida dentro da ideia de “política cósmica” ou cosmopolítica. Este termo tomado emprestado por Bruno Latour da filósofa da ciência Isabelle Stengers adquire sentido, segundo a autora, nas situações concretas e, assim, cosmos designa o desconhecido que constitui esses mundos múltiplos e divergentes. Dessa forma, caminhar em dois momentos diferentes para a terra verde, a saber quando saíram do Oeste da Bahia e do Triângulo-mineiro, passa a ser, para além de buscar uma terra boa e fértil para plantações, a busca por um lugar fértil de afeto, apoio, trabalho, significação e sacralidade, já que gente como a do Rio Verde os Kiriri afirmam não encontrar em nenhum outro lugar do mundo.

Marisol de la Cadena e Mario Blaser (2018) propõem diante do tema da comospolítica que devemos compreender o pluriverso como a união de mundos heterogêneos para uma política das práticas, negociando sua união na heterogeneidade. Dessa forma, estes autores argumentam que a ideia de uma ontologia política se faz possível no reconhecimento de mundos divergentes, constantemente surgindo através de negociações. Assim, a ontologia política sugere uma política entre mundos heterogêneos, englobando uma noção de que o cosmos é sempre uma condição emergente, resultante de discordâncias entre práticas de mundos divergentes. As relações diplomáticas regadas à negociação de mundos heterogêneos, a manutenção da cordialidade e a consolidação de alianças entre os seres humanos ou não-humanos é o que os Kiriri têm buscado realizar no Sul de Minas Gerais.

Ao afirmarem que cuidariam da terra do antigo Tapuia como ninguém cuidara até então e, só por este motivo o índio concordara que os Kiriri ficassem no Rio Verde, aquelas famílias propõem trazer a terra “de volta à vida”, para usar a expressão de Ingold (2012). No artigo “Trazendo as coisas de volta à vida”, Ingold (2012) desafia a noção estabelecida de objeto e argumenta que retomemos a noção de coisa, tendo esta como um “agregado de fios vitais” um “lugar onde vários aconteceres se entrelaçam” (INGOLD:2012:29). Nesse sentido, advogo aqui que a terra kiriri no Rio Verde não é em medida alguma apenas um objeto a ser manipulado pelo sujeito kiriri é, sobretudo, uma coisa, repleta de fios vitais onde vários aconteceres estão em ação e que, em um movimento retórico, tem transformado os Kiriri do Rio Verde em sujeitos políticos de luta pela terra que desejam habitar, como veremos no próximo capítulo.