• Nenhum resultado encontrado

A questão do (direito fundamental ao) mínimo existencial e sua vinculação com a probidade administrativa

3. A probidade administrativa como um direito fundamental: contornos normativos (dinamismo constitucional)

3.6 A questão do (direito fundamental ao) mínimo existencial e sua vinculação com a probidade administrativa

Viu-se que os direitos fundamentais podem ser retirados expressamente do título II do texto constitucional, além de em outros locais da Constituição Federal, neste caso, desde que vinculados à dignidade humana. Viu-se, também, que a cláusula de abertura do art. 5°, § 2° da Constituição Federal permite que se pincem outros “direitos e garantias” que sejam “[...] decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte [...]”, “[...] verdadeira cláusula de abertura para se criar novos direitos fundamentais.” (SILVA, P., 2010, p. 34).No mais, viu-se que há normas de direito fundamental adstritas em que há “[...] uma concretização mais sofisticada dos dispositivos interpretados [...]”, conforme Pereira (2006, p. 81). E também em todos estes

casos viu-se ainda que é absolutamente possível a configuração da probidade administrativa como um direito fundamental.

Contudo, há ainda outros debates teóricos que dizem respeito à probidade administrativa e o seu reconhecimento como um direito fundamental e que precisam ser ventilados. E um destes debates é a (defendida) existência de um direito (fundamental) ao mínimo existencial266.

Nesse contexto, Sarlet (2008, p. 106) defende a existência de direitos fundamentais autônomos:

Para além de servir de critério de justificação da fundamentalidade material de direitos positivados ao longo do texto constitucional e de reconhecimento de direitos implícitos (no sentido de subentendidos nos já expressamente consagrados), resta a indagação se do princípio da dignidade da pessoa – sem qualquer outro referencial adicional – poderão ser deduzidos (no sentido de desenvolvidos hermeneuticamente) direitos fundamentais autônomos. A nós parece que sim, na esteira, aliás, do que já deixamos antever em outra oportunidade.

266 No âmbito jurisprudencial, podemos citar a manifestação do Min. Celso de Mello, no julgamento da ADPF n°

45: “EMENTA: ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA ‘RESERVA DO POSSÍVEL’. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO ‘MÍNIMO EXISTENCIAL’. VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO).” Observe que o Min. Celso de Mello deixou assim consignado, reconhecendo expressamente o mínimo existencial: “CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA ‘RESERVA DO POSSÍVEL’. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO ‘MÍNIMO EXISTENCIAL’.”

De se ver, tais direitos (fundamentais) seriam deduzidos “[...] do princípio da dignidade da pessoa – sem qualquer outro referencial adicional [...]” Esta construção doutrinária parte da dignidade humana, e apenas dela, para justificar a existência de outros direitos fundamentais, não expressamente escritos, não decorrentes etc. É proposta, assim, a possibilidade de serem “[...] deduzidos (no sentido de desenvolvidos hermeneuticamente) direitos fundamentais autônomos.” Enfim, o vínculo estreito com a dignidade humana sugeriria e justificaria a criação de outros direitos fundamentais (autônomos).

No mais, poder-se-ia defender, assim, que o direito ao mínimo existencial267 seria fundamental por sua ligação direta com a dignidade humana, de tal forma que ele seria um direito fundamental autônomo. Veja que Marmelstein (2011, p. 19) enumera os atributos da dignidade humana e entre eles noticia o mínimo existencial: “(a) respeito à autonomia da vontade, (b) respeito à integridade física e moral, (c) não coisificação do ser humano e (d) garantia do mínimo existencial.”

Contudo, o (direito fundamental ao) mínimo existencial, na verdade, não é deduzido, “[...] sem qualquer outro referencial adicional [...]”, usando as palavras de Sarlet (2008, p. 106), apenas da dignidade humana. Silva, P. (2010, p. 64 e 65), a partir das lições de Ricardo Lobo Torres, ensina que o mínimo existencial268 pode ser considerado um direito fundamental, “[...] sem dicção constitucional própria, i.e., sem enumeração expressa no texto constitucional, mas que pode ser extraído da ideia de liberdade, dos princípios constitucionais da dignidade humana, da igualdade, do devido processo legal e da livre iniciativa [...]”, não obstante ter sido tratado como “[...] um direito fundamental autônomo, o que não seria de todo inadmissível, tendo em vista o disposto na norma do artigo 5°, § 2°, da Constituição [...]” (SILVA, P., 2010, p. 65).

267 Segundo Torres (2009, p. 08), “Há um direito às condições mínimas de existência humana digna que não

pode ser objeto de intervenção do Estado e que ainda exige prestações estatais positivas.”

Vejamos, contudo, que o autor trata o direito fundamental autônomo não no sentido apresentado por Sarlet (deduzido exclusivamente a partir da dignidade humana), mas sim no de um direito não enumerado. Observe-se que o próprio Silva, P. (2010, p. 34, grifou-se), em outra passagem de seu livro, assim afirma:

[...] há a possibilidade, nessa sistematização, de se incluir mais um direito fundamental não enumerado e, ao que parece das argumentações em favor de seu reconhecimento, de caráter implícito e dedutível dos princípios adotados pela Constituição: o direito fundamental ao mínimo existencial [...]

Isso porque, nesse caso, como se viu, o direito (fundamental) ao mínimo existencial não é deduzido, desenvolvido hermeneuticamente, exclusivamente a partir da dignidade humana, sem qualquer outro referencial adicional, uma vez que ele é deduzido, também, da liberdade, da igualdade, do devido processo legal, da livre iniciativa, entre outros. Veja que Torres (2009, p. 13) também fala em ética, liberdade, felicidade, direitos humanos, igualdade, além da dignidade humana.

Dessa forma, considerando-se o mínimo existencial um direito fundamental, com base no art. 5°, § 2°, da Constituição Federal, tratar-se-ia de direito fundamental decorrente de princípios constitucionais que não só o da dignidade humana269, e não simplesmente um direito fundamental autônomo, na linguagem de Sarlet.

Consigne-se, em tempo, que para Torres (2009, p. 83) “O mínimo existencial não é um valor nem um princípio jurídico, mas o conteúdo essencial dos direitos fundamentais.”270

O

269 Bitencourt Neto (2012, p. 170), sobre o tema, assim se manifesta: “[...] o direito ao mínimo é direito

fundamental adstrito aos princípios da dignidade da pessoa humana, da solidariedade social e da igualdade material, próprios do Estado de Direito democrático e social.”

270 Segundo Torres (2009, p. 08), “O direito ao mínimo existencial não tem dicção constitucional própria. A

Constituição de 1988 não o proclama em cláusula genérica e aberta, senão que se limita a estabelecer que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil ´erradicar a pobreza e a marginalização e

autor trata o mínimo existencial como um “[...] direito sem dicção constitucional própria.”, inserto na “[...] idéia de liberdade, nos princípios constitucionais da dignidade humana, da igualdade, do devido processo legal e da livre iniciativa [...]”(TORRES, 2008, p. 314).

O que importa, contudo, é que o reconhecimento da fundamentalidade do mínimo existencial271, seja como um direito fundamental (autônomo, na expressão de Sarlet) deduzido exclusivamente da dignidade humana, seja deduzido de outros princípios constitucionais também, seja concebido como “[...] conteúdo essencial dos direitos fundamentais.” (como ensina Torres). Neste contexto, ele (o mínimo existencial) fundamenta, no plano constitucional, ainda mais o direito (fundamental) à probidade administrativa, na medida em que ao se reconhecer a fundamentalidade do mínimo existencial, este conteúdo272, por mais vago e impreciso que seja, só será efetivamente preenchido por uma administração pública efetivamente proba.

Não obstante tais considerações, é válida a lição de Dimoulis e Martins (2011, p 53), para quem “Um direito só existe juridicamente a partir de sua positivação, que estabelece seu exato alcance. Sem este reconhecimento, tem-se simplesmente uma reivindicação política.” De mesma forma, como visto anteriormente, Marmelstein (2011, p. 19) entende que “[...] somente são direitos fundamentais aqueles valores que o povo (leia-se: o poder constituinte) formalmente reconheceu como merecedores de uma proteção normativa especial, ainda que reduzir as desigualdades sociais e regionais’ (art. 3°, III), além de imunizá-lo em alguns casos contra a incidência de tributos (art. 5°, itens XXXIV, LXXII, LXIII, LXXIV, art. 153, § 4° etc.).” Silva, V. (2010, p. 23), sobre o conteúdo mínimo dos direitos, assim se manifesta: “Que direitos, em geral, contenham um conteúdo mínimo pode ser algo intuitivo, que decorre da própria noção de que, sem a garantia desse mínimo, a garantia do próprio direito seria de pouca valia.”

271

Leivas (2008, p. 302) trata o direito fundamental à alimentação como um direito integrante do mínimo existencial.

272 Quanto ao conteúdo do mínimo existencial, Bitencourt Neto (2012, p. 163) ensina que “[...] envolve, como

todos os direitos fundamentais, uma dimensão de defesa e ima dimensão de prestações.” Segundo o autor, “São exemplos de projeção da dimensão e defesa do direito ao mínimo existencial: as imunidades que compreendam parcelas da renda ou do patrimônio que se considerem indispensáveis à existência digna; a vedação de execução de créditos públicos sobre bens que se integrem em um mínimo para a existência digna; as imunidades ou isenções referentes às taxas ou tarifas de serviços públicos essenciais à existência digna.”

implicitamente.”273

E estas considerações são válidas na medida em que aspirações políticas, por mais nobres que sejam, vagueiam pelo campo da possibilidade, até que, efetivamente, se consolidem ou não no texto constitucional274. Observe-se que, em uma visão crítica e construtiva, “Tal tipo de abordagem só produz discursos políticos repetitivos e, afinal de contas, estéreis, sem indicar, de forma juridicamente fundamentada, quais direitos e porque prevalecem em cada caso concreto e quais formas de sua implementação.” (DIMOULIS e MARTINS, 2011, p. 16 e 17)

Não só. A formatação de novos direitos fundamentais, como o do mínimo existencial, sem reconhecimento expresso pelo legislador constitucional, deve seguir padrões teóricos rígidos, a fim de evitar um fenômeno que contribui para o próprio desprestígio de tais direitos (fundamentais), que é a sua banalização275.

De qualquer forma, o reconhecimento da fundamentalidade do mínimo existencial acaba, sistematicamente (um direito completando e sendo complementado por outro),

273 Não obstante, Dimoulis e Martins (2011, p. 15) ensinam que “Os direitos fundamentais mantêm uma grande

proximidade com a Política.”

274

“Assim, não é possível concordar com uma definição ampla adotada por parte da doutrina, segundo a qual a fundamentalidade de certos direitos não dependeria da força formal constitucional e sim de seu conteúdo. Com efeito, não pode ser considerado como fundamental um direito criado pelo legislador ordinário, mas passível de revogação na primeira mudança da maioria parlamentar, por mais relevante e ‘fundamental’ que seja seu conteúdo. Os direitos fundamentais são definidos com base em sua força formal, decorrente da maneira de sua positivação, deixando de lado considerações sobre o maior ou menor valor moral de certos direitos.” (DIMOULIS e MARTINS, 2011, p. 49).

275

Alguns autores falam em trivialização: “Essa problematização vai desembocar no tema do conceito de direitos fundamentais, que vai variar como grandeza diretamente proporcional à corrente a qual se filie o estudioso: se formal ou material. Ambas razões possuem suas razões, contudo, na concepção formal, segundo a qual o direito formal é apenas aquele positivado de forma expressa na Constituição, corre-se o risco, por um lado, de negar vigência ao disposto mesmo na norma do artigo 5°, § 2°, da Constituição, norma essa que existe e por isso é um dado do plano normativo: é, para dizer o mínimo, uma concepção reducionista das possibilidades de significação da própria ideia de direitos fundamentais. Por outro lado, a concepção formal tende a preservar os direitos fundamentais do fenômeno da trivialização, isto é, todo e qualquer direito pode vir a ser considerado fundamental por se relacionar, por exemplo, ao valor da dignidade da pessoa humana, fenômeno esse que pode produzir efeito inverso e perverso representado pelo excesso de fundamentalização dos direitos e, consequentemente, a perda de seu status privilegiado exatamente em função do enfraquecimento da característica a ele atribuída e que fazia dele um direito diferente ou, na linguagem inglesa, um preferred right, com qualidades próprias e especialíssimas.”

fomentando ainda mais o entendimento de que também a probidade administrativa é um direito fundamental.

3.7 A limitação do poder estatal como requisito dos direitos fundamentais: a questão da

Outline

Documentos relacionados