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4 O PRINCÍPIO DO ESTADO DE INOCÊNCIA DO CIDADÃO

4.4 A questão terminológica

Em tempo, ainda merece confrontação a própria denominação da garantia em estudo. Muito mais que uma simples questão semântica, a escolha desta ou daquela denominação acarreta efeitos diametralmente oposto, como se verá adiante.

A denominação mais frequentemente utilizada é a da presunção de inocência. Como suscitamos mais cedo, presumir é tomar por verdadeiro aquilo que

não se sabe, ou que não se prova. Em outras palavras, parte-se de um fato conhecido e, por uma operação lógico-dedutiva, chega-se a uma conclusão não conhecida, porém, pressuposta.

Sobre esta denominação, a doutrina tece, quase em uníssono, severas críticas, apoiadas em diversos argumentos. O primeiro, e mais objetivo, é aquele que atesta que nossa Constituição, na tendência mundial, em nenhum momento usa a expressão presunção. Houve, sim, uma declaração de inocência, na negativa da culpa (“ninguém será considerado culpado”, logo, todos são inocentes); não deve o intérprete, destarte, concluir por natureza jurídica diversa desta.

De se aproveitar as lições de AROCA apud BONFIM (2012, p. 138):

Pese sua denominação pela jurisprudência como ‘presunção’ juris tantum, ‘verdade interina de inculpabilidade’, trata-se de maneira pouco adequada de afirmar que o acusado é inocente enquanto não se demonstre o contrário. A presunção exige um fato base ou indício, do que se desprende a existência do segundo, o fato presumido, com o nexo lógico entre eles que é a presunção. O denominado ‘direito à presunção de inocência’, escreve Andrés Oliva Santos, “muito duvidosamente pode se entender, a nosso juízo, como um verdadeiro direito subjetivo e, sem gênero de dúvida, não se refere a nenhuma verdadeira presunção (...) não é uma verdadeira presunção porque esta supõe dois fatos (o indício ou base e o presumido) que na presunção de inocência não se dão”.

A lição acima ataca, ainda, outro ponto: a operação lógica-dedutiva necessária ao estabelecimento de uma presunção, conforme expusemos anteriormente, não pode ser realizada nestas circunstâncias, vez que não se conhece, ou então não há prova, da inocência do cidadão. Assim, partir-se-ia de um fato não conhecido, a fim de derivar-se um fato também não conhecido, o que, pelas regras da lógica, é impossível.

Outro importante argumento é aquele que atesta que, escolhida esta denominação, promove-se verdadeiro estado de dúvida: toma-se o cidadão por inocente, sem saber se o é. Dessarte, antes do início do processo, não se conhece da inocência dos indivíduos, apenas se pressupõe. Nesta linha, assim como se presume a inocência, poder-se-ia presumir a culpa, vez que tal dúvida possibilita escolher qualquer uma destas posições.

A expressão é imprecisa, incoerente, incorreta; não deve mais ser admitida, mas continua perpetuando-se nas academias, na jurisprudência e, sobretudo, na literatura.

Outra corrente, perquirindo os efeitos jurídicos do comando, vão afirmar, como forte apoio na teoria processual, mormente nas consequências quanto ao ônus da prova, que o princípio deve ser denominado, simplesmente, de princípio da não-culpabilidade.

Os argumentos acima utilizados para refutar a escolha da expressão presunção foram elaborados por estes adeptos. A fim de afirmar sua opção, atestam, primeiramente, que esta seria a nomenclatura mais adequado a própria redação constitucional (“ninguém será considerado culpado...”). Num outro argumento, que a expressão lembra, na negativa, não ser possível tratar o réu como culpado, até o trânsito em julgado da sentença condenatória.

Data maxima venia, o embate aqui é puramente semântico, dois lados de uma mesma moeda que, sem embargos, produzem, na prática, o mesmo efeito. E no terceiro posicionamento que encontramos maior fundamento jurídico-axiológico, conforme passamos a expor.

Desde já declarando nossa aderência a esta visão, finalmente há aqueles que afirmam, sob diversos e robustos argumentos, estarmos sob a vigência de um Estado de Inocência ou da Situação Jurídica de Inocência.

Primeiramente, num argumento puramente formal, como já anotamos, não há, em nenhum momento, o estabelecimento de presunção alguma. Nossa Carta Política preferiu (felizmente) atribuir caráter afirmativo a esta proteção. Desta arte, o cidadão não é presumido inocente; muito antes, o cidadão é inocente, não recaindo, sob seu status, qualquer dúvida que suporte o estabelecimento de uma presunção.

No magistério de PACELLI (2011, p. 497):

O princípio da inocência, ou da não-culpabilidade, cuja origem mais significativa pode ser referida à Revolução Francesa e à queda do Absolutismo, sob a rubrica da presunção de inocência, recebeu tratamento distinto por parte de nosso constituinte de 1988. A nossa

Constituição, com efeito, não fala em nenhuma presunção de inocência, mas da afirmação dela, como valor normativo a ser considerado em todas as fases do processo penal ou da persecução penal, abrangendo, assim, tanto a fase investigatória (fase pré- processual) quanto a fase processual propriamente dita. (...) A Constituição da República, portanto, promoveu (...) a instituição de um princípio afirmativo da situação de inocência de todo aquele que estiver submetido à persecução penal.

Em segunda instância, trata-se do reconhecimento do status libertatis do indivíduo, como já abordamos anteriormente, ao se declarar (na expressão estado de inocência ou situação jurídica de inocência) que o cidadão é inocente, afastando qualquer tipo de dúvida até que termine o processo e seja formada a convicção de sua culpabilidade, pois que a posição jurídica da inocência, como a da liberdade ou a da vida digna, é intrínseca a própria natureza do cidadão.

Terceiro, muito mais adequada a moderna tendência de máxima eficácia dos direitos fundamentais, que determina válida a interpretação constitucional que mais promova seu reconhecimento e efetividade.

Logo, como fizemos durante toda a exposição, preferiremos esta denominação, por todos os argumentos aqui esposados.

Findando-se mais essa seção, na qual foram analisados todos os aspectos da proteção do indivíduo quanto a sua inocência, suportando nossas argumentações nas mais fundamentais lições da teoria do direito e da hermenêutica constitucional, finalmente construímos todo o arcabouço teórico-doutrinário necessário ao enfrentamento do ponto nevrálgico de nosso debate, qual seja a aplicação do referido princípio no processo administrativo sancionador brasileiro.

III –

O PRINCÍPIO DO ESTADO DE INOCÊNCIA COMO GARANTIA

FUNDAMENTAL APLICÁVEL AO PROCESSO ADMINISTRATIVO

SANCIONADOR BRASILEIRO

1 Devido processo legal, hermenêutica constitucional e a necessidade de