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Racionalismo, empirismo e intelectualismo na construção do conhecimento

1.4.1 Racionalismo

No século XVII, o racionalismo45 se firma como grande paradigma na construção do conhecimento. Descartes lança as bases para a modernidade consolidar-se, mais adiante, como sendo a grande detentora do modelo para se chegar a um conhecimento verdadeiro46. Na doutrina das idéias inatas, já iniciada por Cícero, na última fase do estoicismo, encontramos os fundamentos do conhecimento, trazendo a perspectiva de um certo número de conceitos inatos em nós, que são os mais importantes e tornam-se fundamentadores do conhecimento. Originam-se na nossa razão, porém não provêm da experiência. Leibniz é o grande continuador da obra de Descartes. Para ele, os conceitos inatos existem em nós apenas em germe, potencialmente, enquanto que, para Descartes, eles estariam mais ou menos prontos em nós. Apesar dessa diferença em suas concepções, há um ponto de convergência na concepção de ambos os autores de que é evidente à razão de que os conceitos inatos estão em nós. Ainda se destacam Malebranche, Espinosa, Wolff e podemos, inclusive, acrescentar também Hegel.

45 Para o racionalismo, a verdadeira fonte do conhecimento é o pensamento, a razão. “O vocábulo ‘racionalismo’ pode ser entendido de três modos: 1) Como designação da teoria segundo a qual a razão, equiparada ao pensar ou à faculdade pensante, é superior à emoção e à vontade; temos então um ‘racionalismo psicológico’. 2) Como nome da doutrina para a qual o único órgão adequado ou completo de conhecimento é a razão, de modo que todo conhecimento (verdadeiro) tem origem racional; fala-se neste caso de ‘racionalismo epistemológico’ ou ‘racionalismo gnosiológico’. 3) Como expressão da teoria que afirma que a realidade é, em última análise, de caráter racional, o que nos leva assim ao ‘racionalismo metafísico’” (Mora, 2001, p. 2442).

46 A filosofia moderna foi identificada com o racionalismo por diversos historiadores, principalmente devido à grande influência exercida pelo cartesianismo.

1.4.2 Empirismo

O empirismo47, contrapondo-se ao racionalismo, afirma como sendo a única fonte do conhecimento humano a experiência. Portanto, para o empirista não há nada a priori em termos de conhecimento. Quando nascemos, o nosso espírito está vazio de conteúdos, é uma tabula rasa, em linguagem contemporânea poderíamos dizer, um disquete formatado que está vazio de conteúdo, totalmente “em branco”. Como todos nossos conceitos têm sua procedência da experiência, a consciência cognoscente não retira o seu conteúdo da razão, porém, provém da experiência, que é, para o empirismo, condição sine qua non para o conhecimento.

Desse modo, o conhecimento vai sendo como que “gravado em nosso espírito”, à base das experiências que vamos tendo, sendo estas que dão à consciência cognoscente o conteúdo, conforme já foi exposto em nota acima.

1.4.3 Intelectualismo

O intelectualismo48 surge como uma espécie de mediação entre o racionalismo e o empirismo, que são opostos, considerando que o racionalismo e o empirismo participam na formação do conhecimento. “Como o racionalismo, ele sustenta a existência de juízos necessários ao pensamento e com validade universal, concernentes não apenas aos objetos ideais, mas também aos objetos reais”49. Para o intelectualismo, além das representações intuitivas sensíveis, há ainda os conceitos, que, enquanto conteúdos não-intuitivos da consciência, são essencialmente distintos das representações sensíveis, embora mantenham

47 De empeiría, experiência. Do grego έ πειρία (empeiria), experiência. Apesar de ter muitos sentidos, destacam-se dois: como informação proporcionada pelos órgãos dos sentidos e como aquilo que foi chamado de “vivências”, isto é, o conjunto de sentimentos, afeições, emoções etc., experimentados por um sujeito humano e se acumulam em nossa memória, de modo que o sujeito que dispõe de um bom aprovisionamento desses sentimentos, emoções, etc., é considerado “uma pessoa com experiência”. Freqüentemente se restringiu o empirismo ao se contrastar o intitulado “empirismo inglês” (Bacon, Hobbes, Locke, Berkeley, Hume) com o denominado “racionalismo continental” (Descartes, Malebranche, Espinoza, Leibniz, Wolff). Foram dados muitos sentidos ao empirismo, de modo que é necessário precisar de que empirismo se trata em cada caso. Destaque-se o empirismo “sensível”, o “inteligível”, o “crítico”, o “radical”, o “total”, o “integral”, o “dialético” e o “lógico” (cf. Mora, 2001, p. 821 – 822).

48 “Freqüentemente se chama de ‘intelectualismo’ toda doutrina segundo a qual o experimentar se reduz a um conhecer. Com base nessa idéia, pode-se caracterizar o intelectualismo como uma doutrina segundo a qual a relação sujeito-objeto é fundamentalmente de caráter cognoscitivo (ou ao menos importa filosoficamente somente na medida em que é de caráter cognoscitivo). Nesse sentido, muitas das filosofias contemporâneas

não são intelectualistas. Não o são especificamente as filosofias contemporâneas que fazem do conhecer

apenas uma das possíveis relações entre o sujeito e o mundo” (Ibidem, p. 1532). 49 Ibidem, p. 59.

com elas uma relação genética50, na medida em que são obtidos pela experiência. Desse modo, experiência e pensamento constituem, em conjunto, o fundamento do conhecimento51.

Outra corrente que concorda com essa perspectiva é o apriorismo, mantendo, no entanto, uma direção diametralmente oposta à do intelectualismo. Por a priori entende-se que o conhecimento apresenta elementos independentes da experiência, não enquanto conteúdos do conhecimento, mas formas do conhecimento, portanto formais. As formas recebem seu conteúdo da experiência, no entanto, o fator a priori não provém da experiência, mas do pensamento, da razão. “Os fatores apriorísticos assemelham-se, num certo sentido, a recipientes vazios que a experiência vai enchendo com conteúdos concretos”52.

Kant foi o grande fundador do apriorismo, buscando a mediação entre o empirismo de Locke e Hume e o racionalismo de Leibniz e Wolff.

E ele o fez afirmando que o material do conhecimento provém da experiência, enquanto a forma provém do pensamento. Com o material, tem-se em vista as sensações. Elas são completamente desprovidas de determinação e de ordem, apresentam-se como um puro caos. Nosso pensamento produz ordem nesse caos na medida em que conecta os conteúdos sensíveis uns aos outros e faz com que eles se relacionem. Isso ocorre por meio das formas da intuição e do pensamento. Espaço e tempo são as formas da intuição. A consciência cognoscente introduz ordem no tumulto das sensações na medida em que as ordena espacial e temporalmente na simultaneidade ou na sucessão. Em seguida, com a ajuda das formas do pensamento (doze, segundo Kant), introduz uma outra conexão entre os conteúdos perceptivos. [...] Desse modo, a consciência cognoscente constrói seu mundo de objetos53.

Há em Kant uma espécie de legitimação que se dá inerente ao pensamento, através das formas e funções a priori da consciência, atribuindo à razão o fator racional enquanto tal. Porém, enquanto os racionalistas provêm, em sua maioria, da matemática, os empiristas provem da natureza, ou seja, os primeiros de uma ciência ideal, os outros de uma ciência real.

50 Como exploração dos atos constitutivos da consciência transcendental. 51 Cf. Ibidem, p. 60.

52 Ibidem, p. 62. 53 Ibidem, p. 63.

1. 5 Sobre a relação sujeito e objeto

A concepção de teoria do conhecimento tem sustentado o princípio de que conhecimento é uma conseqüência de uma relação entre sujeito e objeto. Daí surge a problemática central de compreender corretamente como se dá essa relação entre sujeito e objeto. Onde mesmo está o centro de gravidade, no sujeito ou no objeto? Como se estabelece essa relação? É possível ela dar-se, sem que um determine o outro? Enfim, questões como essas já foram o centro das preocupações de muitos estudiosos, mas há algumas teorias clássicas que gostaríamos de analisar a seguir.

Uma primeira corrente é a do objetivismo, que considera o objeto como elemento decisivo na relação de conhecimento. Portanto, o objeto determina o sujeito, sendo que este deve ajustar-se ao objeto, de modo que há uma espécie de cópia das determinações do objeto. Um grande clássico dessa teoria é Platão, pois, para ele, as idéias são realidades objetivamente dadas. Resulta que as idéias objetivamente dadas “formam uma ordem fatual, um reino objetivo. O mundo sensível está defronte ao mundo supra-sensível”54.

Uma segunda corrente é a denominada subjetivista. Ao contrário do objetivismo, o sujeito é ator principal, sendo que a verdade do conhecimento humano está nele suspensa. Trata-se de um sujeito transcendente, onde “o característico do conhecimento já não consiste mais numa focalização do mundo objetivo, mas num voltar-se para aquele sujeito supremo. Não é do objeto, mas desse sujeito supremo que a consciência cognoscente recebe seus conteúdos”55. Com isso se afirma que os objetos são produções da consciência; logo, não são independentes dela, ou, em outras palavras, são enquanto produtos do pensamento.

Há ainda uma outra possibilidade de pensarmos a relação sujeito e objeto, onde ela ainda não surgiu tão claramente. Trata-se do realismo ingênuo, que não distingue a percepção, enquanto conteúdo de consciência, e o objeto percebido. Desse modo, acaba atribuindo aos objetos todas as propriedades que estão presentes nos conteúdos, uma vez que identifica os conteúdos de consciência aos objetos, resultando que, para quem trabalha dentro desse paradigma, as coisas são exatamente como as percebemos. É por isso que permanece nele uma ingenuidade intrínseca, por lhe faltar criticidade.

54 Ibidem, p. 70. 55 Ibidem, p. 72.

Há também uma segunda forma de realismo, que sustenta a tese de que os objetos correspondem exatamente aos conteúdos perceptivos. Trata-se do realismo natural, que também não consegue escapar a um grau significativo de ingenuidade em sua perspectiva de construção do conhecimento.

O realismo crítico sustenta que nem todas as propriedades presentes nos conteúdos perceptivos convêm às coisas. É em nossa consciência que as propriedades ou qualidades da coisa apreendida por nós, por meio de um sentido, existem. Porém, necessitam de certos estímulos externos que atuam em nossos órgãos sensíveis56.

Assim sendo, pode-se afirmar:

Para o realismo crítico, o fundamento de maior peso é a independência dos

objetos de percepção com respeito às nossas percepções. [...] Desse modo, o

realismo crítico busca salvaguardar a realidade por vias racionais. Esse tipo de fundamentação, porém, parece inadequado a outros representantes do realismo. Segundo eles, a realidade não pode ser provada, mas apenas experienciada e

vivenciada. [...] As coisas opõem resistência à nossa vontade e ao nosso esforço

e é nessa resistência que vivenciamos a realidade das coisas57.

Em se contrapondo a essa perspectiva, surge o idealismo subjetivo, sustentando que toda realidade provém da consciência do sujeito. O ser das coisas consiste em serem percebidas por mim, enquanto conteúdo de minha consciência. Logo, assim que deixam de ser percebidas por mim, também deixam de existir enquanto conteúdo. Há uma dependência direta das coisas, enquanto conteúdos, da consciência que os percebe.

As diferentes concepções de conhecimento formam a base sobre a qual o paradigma de alguém, que opera com elas, se consolida. Hessen (2003) tenta expor de modo claro como operam essas concepções, através de um exemplo. Ele descreve:

Procuremos elucidar com um exemplo a diferença dessas concepções. Tomo na mão um pedaço de giz. Para o realista, o giz existe exteriormente à minha consciência e independentemente dela. Para o idealista subjetivo, o giz existe apenas em minha consciência. Todo o seu ser consiste em ser percebido por mim. Para o idealista lógico, o giz não está nem em mim nem fora de mim; ele não está disponível de antemão, mas deve ser construído. Isso acontece por meio de meu pensamento. Na medida em que formo o conceito giz, meu pensamento constrói o objeto giz. Para o idealista lógico, portanto, o giz não é nem uma coisa real, nem um conteúdo de consciência, mas um conceito. O ser do giz não é nem um ser real, nem um ser de consciência, mas um ser lógico-ideal58.

56 Cf. Ibidem, p. 74 – 75. 57 Ibidem, p. 79 – 80. 58 Ibidem, p. 83.

Podemos perceber que estão em jogo duas formas principais sobre as quais surge o idealismo: o subjetivo e o objetivo. Apesar de haver uma diferença essencial entre ambos, há também uma espécie de intuição fundamental comum, a saber, a tese idealista de que o objeto do conhecimento não é algo real, mas ideal. O grande desafio está em provar tal tese, uma vez que argumenta ser contraditório pensar num objeto independente da consciência, visto que, enquanto penso num objeto, faço dele um conteúdo da minha consciência. Ao afirmar, simultaneamente, que o objeto existe fora de minha consciência, eu me contradigo. “Conseqüentemente, não existem objetos reais fora da consciência, mas, ao contrário, toda a realidade está encerrada na consciência”59.