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6 ARTE, HISTÓRIA E LINGUAGEM: TEMAS CENTRAIS DE VERDADE E

6.3 Um olhar atento sobre a história

6.3.2 Sobre a historicidade a partir do olhar gadameriano

Conforme já víamos anteriormete, a questão central do historicismo consiste em ver o pensamento do autor como uma tarefa redutora, onde a virtude da cientificidade é “considerar a compreensão como uma espécie de reconstrução que reproduziria de algum modo a gênese do texto mesmo”495. Em contrapartida, a historicidade é compreendida muito mais como um modo de ser do mundo histórico. Significa dizer que “não há nenhuma consciência, em cuja presença a história seria suspensa e concebida”496. Em Heidegger, a historicidade se liga, sobretudo, à questão da estrutura do ser e se constitui enraizada na temporalidade, que é a condição de possibilidade da historicidade497. Por isso o Dasein não é temporal por estar na história, mas existe historicamente, por ser temporal498. Essa questão é fundamental para que possamos compreender o horizonte dentro do qual se dá o debate.

A historicidade não resulta da história, mas é a história que é resultado da historicidade, ou, então, dito de outra maneira, enquanto capacidade de construir uma história, ela é um modo que tem o Dasein de assumir seu próprio futuro, é possibilidade de construir a história. A pergunda fundamental de Gadamer não é como interpretar, mas o

que é interpretado. Em princípio, por isso, não se pode ler Gadamer diretamente, a partir de

Dilthey e Schleiermacher, como se fosse um novo teórico das ciências do espírito499. Enquanto Dilthey vai buscar fundamentar um método científico, tomando a hermenêutica na mesma direção em que segue o romantismo, acreditando sempre poder construir uma teoria do conhecimento das ciências do espírito500, Gadamer se pergunta pelas condições de possibilidade, isto é, como é possível a compreensão. A questão da compreensão se dirige ao modo como compreender a compreensão, se sabemos que somos já desde sempre carregados pela história501. Portanto, a compreensão deveria ser pensada a partir da historicidade.

495Gadamer, op. cit, p. 451. 496 Gadamer, 2007, p. 141.

497Ver a esse respeito, os §§72 – 77 de Ser e Tempo, onde Heidegger aborda sobretudo a questão da temporalidade.

498Cf. Heidegger, op. cit., §72.

499 “O ideal da compreensão histórica universal é uma falsa abstração que esquece a historicidade” (Gadamer, 2007, p. 143).

500Cf. Gadamer, op. cit., p. 254.

501Nessa linha de reflexão, veja Verdad y Método, p. 258, onde Gadamer também aborda a questão do sentido em si mesmo da história.

Para Gadamer, o ideal moderno de um saber plenamente transparente em si mesmo está sendo colocado em xeque pelo conceito de horizonte de sentido. Segundo ele, toda compreensão, em princípio, parte de um horizonte de sentido, compreende algo, que pode tornar-se elemento desse horizonte originário. Então, o círculo não é um círculo vicioso, é um círculo interpretável502. A reflexão hermenêutica é, portanto, uma reflexão sobre a influência da historicidade no nosso conhecer. Ela descobre a história agindo em nós, em qualquer compreensão, em qualquer conhecimento do mundo. Nesse sentido, a tarefa fundamental da hermenêutica seria tematizar a história do sentido que age sobre nós, numa espécie de mediação. Nas palavras de Gadamer,

o horizonte do presente não se forma, pois, à margem do passado. Nem existe um horizonte do presente em si mesmo, nem há horizontes históricos que houvera que ganhar. Compreender é sempre o processo de fusão destes horizontes para si mesmo503.

A pretensão da universalidade hermenêutica nasce precisamente dessa tendência integradora, desvelando a historicidade. Implícito a tal perspectiva, permanece sempre o risco da perda da autocerteza subjetiva. Flickinger o precisa ao refletir sobre a dificuldade da aceitabilidade da razão humana: “Como no jogo, ao qual se entregam os jogadores, abrindo-se uns aos outros, o compreender desdobra-se no interior de contextos intransponíveis por parte dos sujeitos envolvidos”. E complementa: “Dentro destes contextos, os indivíduos tomam parte ativa na produção de sentidos possíveis, denominados por Gadamer horizontes; horizontes estes que não podem ser objetificados”504.

Não há como negar a história e a linguagem como espaços dentro dos quais sempre nos movimentamos. Compreendemos o mundo a partir da capacidade de nos aproximarmos da história e da linguagem, pois já desde sempre nos movimentamos dentro de tal espaço. “Tudo o que se compreende está na história e se desdobra na linguagem”505. Entretanto, apesar de nossa compreensão do mundo se dar a partir da história e da linguagem, nossa subjetividade não consegue dominar tal espaço, pois “a razão histórica não é a faculdade de ‘suspender’ o próprio passado histórico na presença absoluta do saber.

502Nas palavras de Gadamer: "Na realidade, o horizonte do presente está num processo de constante formação, na medida em que estamos obrigados a pôr em prova, constantemente, todos os nossos pré-juízos" (Verdad y Método, p. 376).

503Ibid.., p. 376.

504 Flickinger, op. cit., p. 55. 505 Ibidem, p. 55.

A consciência histórica é ela mesma histórica”506. Na concepção gadameriana, história e linguagem assumem o papel de meios primordiais, aos quais o homem está entregue inevitavelmente. Nesse sentido Gadamer pode conceber o Iluminismo moderno como profundamente não-crítico. “Pois existe realmente um ‘pré-juízo’ do Iluminismo que é aquele que suporta e determina sua essência: este ‘pré-juízo’ básico do Iluminismo é o ‘pré-juízo’ contra os ‘pré-juízos’, enquanto tais, e, com isso, a despotencialização da tradição”507. O não reconhecimento do peso da história e da linguagem implicaria a negação do fato de que estamos inevitavelmente entregues desde sempre a tal espaço, o que é insustentável. Trata-se, pois, de um processo onde os envolvidos se descobrem inseridos “em uma ordem do acontecer não-manejável por eles”508. Aproximamo-nos de uma situação tal como a de um jogar sem ter o domínio, o que é profundamente irritante para quem se movimenta dentro de uma tradição do saber constituído à base do impulso dominador da razão, que aposta na perspectiva calculante para dar conta da verdade.