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Do exposto anteriormente, resulta que o tratamento de primeira linha para a SBH, os antimuscarínicos, está longe de ser ideal e as terapêuticas alternativas têm inconvenientes significativos. Neste contexto, a dessensibi- lização vesical surge como linha a explorar.

3.1- Receptor vanilóide e agonistas

A capsaicina e a resiniferatoxina (RTX), as duas moléculas mais conheci- das da família dos compostos vanilóides, são substâncias neurotóxicas que bloqueiam especificamente o afluxo sensitivo conduzido pelas fibras aferen- tes do tipo C. Estas fibras expressam o receptor TRPV1 (receptor de potencial temporário de tipo vanilóide, tipo 1), o único alvo conhecido da capsaicina e do RTX (Szallasi e Blumberg, 1999). Este receptor foi identificado em 1994 por autorradiografia (Szallasi et al., 1994) e posteriormente clonado no rato (Caterina et al., 1997) e no Homem (Hayes et al., 2000). A ligação dos vanilói- des a este receptor inicia uma cadeia de reacções no neurónio, inicialmente uma excitação provocada pelo influxo de cálcio e posteriormente a dessen- sibilização, em que a fibra nervosa se torna refractária a novos estímulos (Cruz et al., 1996; Szallazi e Blumberg, 1999). Embora os mecanismos não sejam completamente conhecidos, esta incapacidade da fibra nervosa para responder a novos estímulos, durante longos períodos, pode ser explicada em parte por um conjunto de alterações como as concentrações elevadas de cálcio intracelular, a desfosforilação da proteína TRPV1 pela calcineurina,

uma fosfatase dependente de cálcio e calmodulina (Novakova-Tousova et

al., 2007), as alterações funcionais induzidas nos organelos intracelulares

(retículo endoplasmático e mitocôndrias) e no núcleo (Olah et al., 2001), a alteração das propriedades eléctricas da membrana neuronal (Caudle et al., 2003), a diminuição da expressão do receptor TRPV1 na superfície neuronal (Avelino et al., 2002), o bloqueio do transporte intra-axonal de NGF e a con- sequente deplecção de neuropeptídeos (Szallazi e Blumberg, 1999).

O primeiro impulso para o interesse clínico da dessensibilização na hipe- ractividade vesical, através da aplicação intravesical de agonistas do recep- tor vanilóide TRPV1, proveio da descoberta de um reflexo miccional espinal, mediado pelas fibras C e sensível aos vanilóides. A primeira demonstração ocorreu no gato (de Groat et al., 1990; de Groat, 1997). Nos gatos normais, as contracções reflexas do detrusor não eram alteradas pela capsaicina indi- cando que o reflexo miccional mediado pelas fibras C não estava envolvido. Pelo contrário, em gatos cronicamente espinalizados, aquelas contracções eram completamente suprimidas pelo vanilóide (de Groat et al., 1990; de Groat, 1997), demonstrando a emergência do reflexo espinal mediado pelas fibras C.

Outros estudos clínicos e experimentais sugeriram que aquele reflexo espinal poderia ter um papel importante na hiperactividade não neurogénica do detrusor. É o caso de estudos em modelos animais de obstrução infrave- sical crónica, nos quais a estimulação do nervo pélvico provoca uma respos- ta parassimpática precoce, que precede a resposta parassimpática normal (Steers e de Groat, 1988). Esta diferença no tempo de latência na resposta à estimulação do nervo pélvico confirma a existência de dois reflexos mic- cionais: um reflexo miccional espinal curto e um reflexo miccional supra-es- pinal longo (Steers e de Groat, 1988). Estes dados vieram a ser observados

também no Homem. Em doentes com hiperactividade vesical associada a hiperplasia benigna da próstata (HBP), verificou-se, após anestesia local da uretra prostática com lidocaína, que bloqueia preferencialmente as fibras C, um aumento do volume vesical que desperta a primeira sensação de micção e da capacidade cistométrica máxima (Yokoyama et al., 1994). No mesmo tipo de doentes, Chai et alii (Chai et al., 1998) avaliaram o teste de água gela- da. Como se sabe, as contracções do detrusor induzidas pelo frio dependem de vias neuronais espinais, iniciadas pelas fibras C, e este teste é geralmente negativo em adultos sem patologia neurológica (Geirsson et al.,1993). Em 71% dos doentes, avaliados por Chai et alii, este teste era positivo. O papel das fibras C nos sintomas do tracto urinário inferior associados a HBP foi ainda corroborado num estudo clínico recente com 12 doentes submetidos a dessensibilização intravesical com RTX que induziu uma melhoria clínica significativa dos sintomas urinários de armazenamento (Dinis et al., 2004). A participação das fibras C na hiperactividade do detrusor é ainda sugerida pelo aumento de fibras sensitivas peptidérgicas (Smet et al., 1997) e imu- norreactivas para o TRPV1 (Apostolidis et al., 2005a) na mucosa vesical de doentes com hiperactividade idiopática e neurogénica do detrusor.

3.2 - Experiência prévia com capsaicina

A capsaicina foi a primeira neurotoxina a ser usada clinicamente para dessensibilizar as fibras sensitivas vesicais. O contacto do homem com a capsaicina não se iniciou com a sua aplicação intravesical. A capsaicina é extraída de plantas do género Capsicum (malaguetas) e condimenta diaria- mente a dieta de milhões de pessoas, sendo responsável pela típica sensa- ção de ardor associada à sua utilização (Szallasi e Blumberg, 1999). Várias alusões históricas referem que foi usada com fins terapêuticos, embora de

um modo empírico, como por exemplo no tratamento de odontalgias (Szalla- si e Blumberg, 1999).

Mais de uma centena de doentes com o síndrome da bexiga hiperactiva de causa neurogénica foram tratados com capsaicina intravesical, em sete ensaios clínicos não controlados (Fowler et al., 1992, 1994; Geirsson et al., 1995; Das et al., 1996; Igawa et al., 1996; Cruz et al., 1997a; De Ridder et al., 1997) e num controlado com placebo (de Séze et al., 1998). A metodologia usada foi semelhante em todos os estudos, consistindo numa instilação in- travesical, durante 30 minutos, de uma solução alcoólica a 30%, contendo 1-2 mM de capsaicina. O volume da solução era de 100 a 125 ml (ou metade da capacidade vesical, se menor que esse valor). Os melhores resultados foram obtidos em doentes com lesões medulares incompletas causadas por esclerose múltipla, traumatismos ou doenças infecciosas medulares, que ainda mantinham algum grau de sensibilidade vesical e que mantinham micções voluntárias. Após um período inicial de agravamento dos sintomas, com a duração de duas semanas, 70 a 90% dos doentes referiram continên- cia total ou uma melhoria significativa (Fowler et al., 1994; Cruz et al., 1997a; De Ridder et al., 1997). Além disso, a capsaicina também reduziu o número de micções e o número de episódios de imperiosidade (Fowler et al., 1994; Cruz et al., 1997a; De Ridder et al., 1997). Os estudos urodinâmicos demons- traram que a capsaicina intravesical aumentava a capacidade da bexiga em 70 a 90% dos doentes, sendo esse aumento de 47 a 156% em relação aos valores pré-tratamento. Os efeitos da capsaicina intravesical permaneciam por longos períodos de tempo, excedendo 6 a 9 meses em muitos casos (Fowler et al., 1994; Cruz et al., 1997a; De Ridder et al., 1997).

A dor suprapúbica associada à instilação de capsaicina foi frequente- mente referida pelos doentes com sensibilidade vesical preservada. Esta dor

iniciava-se imediatamente após a instilação da capsaicina e frequentemente exigia a administração de medicação analgésica. Nalguns casos foi mesmo necessário interromper o tratamento. A capsaicina despertou, ainda, episó- dios de disreflexia autonómica em doentes com lesões espinais altas (Geirs- son et al., 1995; Cruz et al., 1997a).

Do exposto, rapidamente se concluiu que a capsaicina, apesar da efi- cácia, estava longe de ser o fármaco ideal para induzir a dessensibilização vesical.

3.3 - Resiniferatoxina como agente dessensibilizante

O RTX é extraído do cacto Euphorbia resinifera frequente no Norte de África (Szallazi e Blumberg, 1999). Avelino et alii demonstraram em estudos experimentais que a aplicação tópica de RTX, em doses extremamente bai- xas, dessensibilizava os aferentes vesicais sem induzir a excitação nóxica inicial característica da capsaicina (Avelino et al.,1999). Para isso, contribuem as diferentes correntes eléctricas induzidas nos neurónios aferentes primá- rios pela capsaicina e pelo RTX. Ao abrir lentamente o canal do receptor, o RTX induz correntes lentas e prolongadas. Pelo contrário, a capsaicina abre rapidamente o canal, o que leva a uma maior entrada de cálcio para o neu- rónio, gerando potenciais de acção rápidos e de curta duração (Liu e Simon 1996; Szallasi e Blumberg, 1999). Estas diferenças electrofisiológicas podem explicar, em parte, a menor irritabilidade e a maior potência dessensibilizante do RTX em relação à capsaicina. Tal como a capsaicina, o RTX reduzia a imunorreactividade vesical para SP, CGRP e TRPV1 e aumentava o volu- me vesical que despertava uma micção reflexa em animais (Avelino e Cruz,

2000; Avelino et al., 2002). Estes efeitos eram prolongados, mas reversíveis (Avelino e Cruz, 2000; Avelino et al., 2002).

A resiniferatoxina é um análogo mais potente da capsaicina e compar- tilha com esta um anel aromático homovanílico, facto que induziu à desig- nação genérica destas substâncias como vanilóides (Szallasi e Blumberg, 1996). É uma molécula altamente lipofílica, sendo difícil manter-se numa solução aquosa, o que dificulta o armazenamento de uma solução estável (Szallasi e Blumberg, 1992).

O facto da resiniferatoxina dessensibilizar os neurónios sensitivos sem causar excitação neuronal inicial significativa (Avelino et al., 1999) tornou o RTX no fármaco apropriado para a dessensibilização de aferentes primários vesicais no Homem. A administração tópica do látex da Euphorbia fora usa- da empiricamente durante séculos para tratamento de dores articulares, sem efeitos tóxicos conhecidos (Appendino e Szallasi, 1997). Mais recentemente, estudos de toxicidade sugeriram que o RTX era inócuo para o Homem quan- do aplicado por via intravesical (Afferon Corporation, USA; Icos Lilly, USA; dados não publicados).

Da revisão acabada de efectuar, torna-se evidente que o desenvolvi- mento de novos fármacos para o tratamento da SBH é uma necessidade premente. Tendo em conta os vários indícios de que as fibras aferentes pri- márias de tipo C poderão estar implicadas na génese da SBH, a dessensibi- lização das fibras C surge como um paradigma terapêutico a necessitar de exploração.

No presente trabalho, propusemo-nos esclarecer os seguintes aspec- tos:

a) avaliar o potencial terapêutico da dessensibilização vesical na hipe- ractividade do detrusor neurogénica;

b) avaliar o potencial terapêutico da dessensibilização vesical na hipe- ractividade do detrusor não neurogénica;

c) avaliar os efeitos da terapêutica dessensibilizante no sintoma princi- pal do SBH, a imperiosidade;

d) esclarecer o papel das fibras sensitivas C na fisiopatologia do SBH;

e) avaliar o perfil de segurança das substâncias dessensibilizantes.

Os trabalhos efectuados deram origem a cinco publicações integradas na presente dissertação. As publicações estão organizadas de acordo com os objectivos propostos e não necessariamente por ordem cronológica.

Utilizámos, como ferramenta farmacológica de investigação, a resinife- ratoxina, tendo em conta os conhecimentos acumulados acerca dos meca- nismos de acção deste vanilóide em diversos estudos experimentais (Ishi- suka et al., 1995; Avelino et al., 1999) e clínicos prévios (Cruz et al., 1997b).

Na primeira publicação, investigámos os resultados clínicos e urodinâ- micos, num estudo clínico aberto, da instilação intravesical da resiniferato- xina em doentes com hiperactividade neurogénica do detrusor. Avaliou-se também o grau de desconforto ou dor associado à instilação intravesical da substância.

Na segunda publicação, avaliámos os efeitos urodinâmicos e clínicos da resiniferatoxina em doentes com hiperactividade neurogénica do detrusor, num estudo controlado com placebo, randomizado, paralelo e com oculta- ção dupla.

Na terceira publicação, investigámos o papel das fibras C na hiperac- tividade idiopática do detrusor. Num estudo clínico aberto, avaliámos ainda a eficácia da terapêutica intravesical com resiniferatoxina nesta disfunção miccional.

Na quarta publicação, e perante a hipótese de as fibras C estarem en- volvidas no afluxo sensitivo anormal proveniente da bexiga ou no proces- samento anómalo da informação sensitiva, estudámos o papel das fibras C na génese da imperiosidade. Num estudo clínico controlado com placebo, comparámos, ainda, as alterações induzidas pela resiniferatoxina na qualida- de de vida dos doentes com SBH.

Na quinta publicação, decidimos avaliar o perfil de segurança do uso de resiniferatoxina com fins terapêuticos no Homem, apesar de não haver rela- tos de toxicidade em trabalhos experimentais e haver alguma experiência de uso humano em patologia não urológica. Para este trabalho, recorremos ao estudo por microscopia óptica e electrónica da mucosa vesical em doentes previamente submetidos a instilação de resiniferatoxina.

PUBLICAÇÃO I

Desensitization of bladder sensory fibers by intravesical resinife- ratoxin, a capsaicin analog: long-term results for the treatment of detrusor hyperreflexia

Introduction

Detrusor hyperreflexia is a major cause for urinary fre- quency, urgency and incontinence in patients with spinal cord lesions disconnecting sacral spinal cord segments from

Eur Urol 2000;38:444–452 Accepted after revision: October 19, 1999

Desensitization of Bladder Sensory Fibers by

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