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Capítulo 2 Diversidade linguística: tempos e espaços de renovação

3. Educar para a diversidade linguística desde os primeiros anos de escolaridade

3.2. Razões e finalidades

Na sequência do que temos vindo a afirmar, podemos dizer que, com a SDL,

“começa-se por uma disponibilização para as línguas, por uma sensibilização e uma consciencialização de aspectos linguísticos tanto da língua materna como de outras línguas” (Ferrão-Tavares, 2001: 195), passando-se pela descoberta da pluralidade das

línguas e culturas dos outros, como forma de evitar atitudes etnocêntricas. Trata-se, desta forma, de acreditar e de investir no poder da consciencialização, despertando os sujeitos para as línguas (Candelier, 2000; Dabène, 1991, Gadotti, 2003). Por outras palavras, sensibilizar para a diversidade linguística significa sobretudo consciencializar os aprendentes para esse tipo de diversidade, através do contacto com diferentes línguas, para que reconheçam a importância de aprender línguas e de as respeitar, desenvolvendo uma competência plurilingue e intercultural, se possível, desde tenra idade (Conselho da Europa, 2001a).

Neste contexto, as atividades de SDL desenvolvem competências a três níveis: ao nível das capacidades/habilidades (aptitudes), ao nível das atitudes (attitudes) e ao nível dos saberes (Candelier, 2000). Na nossa opinião, o desenvolvimento destes diferentes níveis de competências pressupõe um conjunto de implicações didáticas que podemos sintetizar em três pontos:

i) uma visão sócio-construtivista da educação em línguas que defende um professor e um aluno autónomos cuja aprendizagem assenta num processo de investigação e de reflexão para a construção de conhecimento;

ii) a defesa do caráter social da aprendizagem uma vez que esta resulta de processos e de esforços individuais, mas se desenvolve sobretudo na base de um trabalho colaborativo, de partilha de saberes e de experiências na interação com os outros;

iii) uma perspetiva da educação em línguas inscrita numa didática de desvio, porque diferente, aberta a outras línguas (que não privilegia as línguas dominantes em detrimento das línguas minoritárias) e que pretende sobretudo (re)construir representações a favor do plurilinguismo (Goumoëns et al., 2003: 43-45).

Globalmente, podemos dizer que a SDL pretende sobretudo: i) consciencializar o aprendente para a importância da diversidade linguística; ii) desenvolver uma cultura linguística sobre as línguas do mundo, a partir do contacto com diferentes línguas; iii) despertar a curiosidade, o gosto, o espírito de abertura e o interesse relativamente às outras línguas e culturas; e, finalmente, iv) desenvolver competências variadas que proporcionem uma reflexão sobre a linguagem, a língua e a cultura do Outro, no sentido de favorecer o desenvolvimento de representações e atitudes positivas face ao diferente e de contribuir para uma educação para os valores, para a paz e para a cidadania (Andrade, Martins & Leite, 2002; Candelier, 2000 e 2003; Conselho da Europa, 2001a; Dabène, 2000; Sá, 2007, 2012, entre outros).

Neste contexto, parece-nos que as finalidades da SDL vão ao encontro de uma das funções principais da escola, isto é, contribuir para formar os aprendentes no sentido de os tornar

“cidadãos lúcidos e activos, capazes de dominar o progresso técnico, de dar sentido à vida individual e colectiva, de respeitar o equilíbrio ecológico do planeta, de reduzir a violência, de desenvolver a tolerância, em suma, de forjar um verdadeiro projeto de sociedade” (Michel, 1999: 90).

É nesta linha que, nos primeiros anos de escolaridade, preferimos falar de “sensibilização às línguas" ao invés de “ensino de línguas”.

Face ao exposto, podemos afirmar que a revisão da literatura que temos vindo a fazer acerca de uma educação para a diversidade linguística nos permitiu dar conta de que existem argumentos de diferente natureza a favor da mesma. Nesta linha, e admitindo que os mesmos emergem de campos disciplinares diversos, procurámos agrupá-los em quatro

tipos (ver figura 1): cognitivos e linguísticos, sociais e humanos, políticos e económicos e, finalmente, ambientais.

Figura 1. Argumentos a favor da educação para a diversidade

- Argumentos cognitivos e linguísticos

Neste trabalho, partimos do princípio de que a SDL,

“antes da aprendizagem formal de uma língua estrangeira, assume-se como estratégia de desenvolvimento da consciência/educação linguística da criança, de aptidões cognitivas, estéticas, sensorio-motoras e de representações e atitudes positivas relativamente à pluralidade linguística” (Martins, 2008: 160).

Assim, assumimos que esta abordagem plural encerra em si um conjunto diversificado de competências, promovendo no aprendente a autoconfiança, a capacidade de observar, de perspetivar e de compreender as diferentes línguas e culturas quer pela semelhança, quer pelo contraste (Andrade & Martins, 2004; Dabène, 1997; Ferrão-Tavares, 2002). A este propósito, vários estudos, mais centrados no bilinguismo, mostram que o contacto com outras línguas (em articulação com a língua materna) estimula o cérebro, aumentando a flexibilidade e a complexidade do pensamento cognitivo e desenvolvendo nos sujeitos capacidades que facilitam não só a aprendizagem das línguas como a aprendizagem em geral (Adesope, Lavin, Thompson & Ungerleider, 2010; Cummins, 2004; Hagège, 1996; Oliveira, 2002).

Na sequência do que dissemos anteriormente, sabemos que as crianças que estabelecem contacto com várias línguas desde cedo desenvolvem um leque mais diversificado de competências mentais, nomeadamente, ao nível das capacidades de observação, de análise, de raciocínio e de reflexão sobre a(s) língua(s), incluindo da língua

materna e da(s) língua(s) de escolarização (Andrade, Martins & Leite, 2002; Barbeiro, 1994; Martins, Andrade & Bartolomeu, 2003; Sá, 2012, Sá & Andrade, 2007a, 2007b). Neste contexto, esta abordagem plural apresenta-se como uma forma de rentabilizar as línguas em presença para desenvolver a competência “meta” (Auger & Sauvage, 2007), isto é, para além das competências plurilingue e intercultural, inter e intra-linguística, procura-se que o sujeito desenvolva uma competência metalinguística, metacognitiva e metacomunicativa, vendo a língua como objeto que se pode observar e analisar (Conselho da Europa, 2001a; Hagège, 1996; Oliveira, 2002)

Neste contexto, a SDL é passível de desenvolver efeitos positivos ao nível das representações, das atitudes e das capacidades, que tornam os aprendentes mais abertos à diferença e mais dispostos a aprender línguas, resultando esse interesse pelas línguas numa maior capacidade para obter melhores resultados escolares (Andrade & Araújo Sá, 2001; Calvet, 2000; Candelier, 1998, 2000 e 2003; Dabène, 2000; Marinho, 2004; Moore & Castellotti, 2001; Sá, 2007). A este propósito, lembramos que a SDL tem sido apresentada como favorável ao desenvolvimento de uma cultura linguística, nas suas várias dimensões (Simões, 2006). Na dimensão cognitiva, concernente ao conhecimento sobre as línguas; na dimensão representacional ou imagética, referente às representações e atitudes face às línguas e culturas que terá influência nas práticas linguísticas e, consequentemente, na gestão da interação comunicativa onde coexistem diferentes línguas (Andrade & Araújo e Sá et al., 2003). Nesta perspetiva, a cultura linguística, porque facilitadora da compreensão do mundo diverso do qual fazemos parte, potencia a competência de aprendizagem, ajudando os aprendentes a aprender a aprender (Delors, 1996; Kervran, 2005a, entre outros) e a terem mais criatividade e flexibilidade cognitivas (Skutnabb-Kangas, 2002) que contribuem para o seu desenvolvimento global.

- Argumentos sociais e humanos

Partindo do princípio de que as línguas não servem apenas para comunicar, mas transportam consigo identidades, culturas, valores e visões do mundo, podemos afirmar que uma educação em línguas que envolva abordagens plurais como a SDL promove a compreensão e o respeito pela diferença, favorecendo a interação com o Outro, ou seja, a relação intercultural e a intercompreensão.

“l’interculturel ici est, si l’on peut dire, comme poisson dans l’eau. Il trouve son sens dans une dynamique sociale et pédagogique qui s’inscrit dans les pluralités multiples qui composent la population scolaire, ses savoirs et ses façons d’apprendre et les objets de connaissance" (1998: 102).

Neste contexto, enquanto alavanca para uma educação em línguas promotora do diálogo intercultural e da intercompreensão, a SDL convoca não só os direitos linguísticos (Unesco 1996), mas igualmente os direitos humanos (Unesco, 2009). Como temos vindo a dizer, SDL, ao alertar para a importância de respeitar e valorizar as diferentes línguas e culturas, contribui para uma educação que procura comprometer-se com o bem da humanidade e a paz planetária.

Neste contexto, julgamos que esta abordagem está ao serviço de uma didática que se preocupa em aproximar as pessoas (Gonçalves, 2011) através de um respeito mútuo, de uma convivialidade saudável e da possibilidade da intercompreensão. Nesta medida, parece-nos que educar em línguas, começando por uma sensibilização às mesmas, é desenvolver nos aprendentes repertórios linguístico-comunicativos que, não se limitando a servir a comunicação, podem ajudar a resolver problemas do mundo, tornando-o mais justo e contribuindo para o bem-estar social daqueles que o habitam.

- Argumentos políticos e económicos

Como já foi referido anteriormente, as línguas são vistas como meio de circulação de ideias e de acesso ao conhecimento. Assim, a aprendizagem das línguas é um poderoso instrumento de acesso aos mercados de trabalho, cada vez mais marcados pela competitividade. Embora se considere que a língua inglesa continua a ter um papel essencial na formação e na qualificação profissional dos sujeitos, cada vez mais se procura que os indivíduos adquiram competências noutras línguas para que possam aceder a esses mercados de trabalho que, numa era caracterizada pela globalização, impõem, muitas vezes, uma forte mobilidade e o contacto com outros países, outras línguas e culturas.

Neste contexto, e tendo em conta as as políticas linguísticas vigentes, tem-se reforçado a ideia de que aprender línguas desenvolve nos sujeitos competências essenciais ao exercício da cidadania, nomeadamente, de reflexão crítica e de intervenção, permitindo que os mesmos participem de forma ativa e consciente na vida social e política (Castellotti, Coste & Duverger, 2008; Comission des Communautés Européennes, 2003, entre outros). Assim, e tendo em conta as finalidades da SDL apresentadas anteriormente, consideramos

que esta abordagem plural é um primeiro passo para que os sujeitos comecem, em contexto escolar, a compreender verdadeiramente a importância de valorizar as línguas e a interessar-se pela sua aprendizagem, compreendendo o papel que as mesmas podem ter na sua vida futura.

- Argumentos ambientais

Conforme referimos no ponto um do presente capítulo, tem havido uma grande preocupação face ao rápido desaparecimento de línguas, sendo que, sobretudo nas últimas décadas se tem apelado ao respeito e à preservação da diversidade linguística. Nomeadamente a partir da última década do século XX, esta preservação das línguas (e das culturas) começa a associar-se à própria preservação do ambiente e, consequentemente, da diversidade das espécies, incluindo, a espécie humana (Maffi, 2005; Sá, 2007, 2012; Sá & Andrade, 2008; Skutnabb-Kangas, 2000, 2002). É sobretudo a partir de 1996, com as iniciativas da “Terralingua: Partnerships for Linguistic and Biological Diversity”, uma organização internacional não-governamental, que se assume verdadeiramente essa ligação, acreditando-se que a sustentabilidade ambiental/biológica e das comunidades humanas caminham lado a lado (www.terralingua.org). Como esclarece Luisa Maffi (2005), “The diversity of life is made up not only of the diversity of plants and animal

species, habitats, and ecosystems found on the planet, but also of the diversity of human cultures and languages” (p. 269).

Na mesma linha de pensamento, Skutnabb-Kangas (2002) defende igualmente que é tão importante preservar as línguas como as espécies. A autora estabelece uma correlação direta entre a diversidade linguística e a biodiversidade, afirmando que, quando a primeira é elevada, a segunda também o será e vice-versa. À luz desta ideia, acredita-se que os ecossistemas mais fortes e estáveis são os mais diversos, tal como as sociedades mais diversas são mais fortes, flexíveis, inovadoras e criativas: “plurilinguals as a group think

in more flexible and divergent ways than monolinguals as a group; they innovate more, create more new knowledges and dreams – and have more exchangeable linguistic capital” (Skutnabb-Kangas, 2002:17). Nesta perspetiva, para a espécie humana, é de

extrema importância que as línguas sejam preservadas, uma vez que intregram a cultura e a identidade dos sujeitos e que constituem uma faculdade que distingue o Homem das outras

espécies e cuja apropriação distingue cada um do outro numa sociedade que é de todos (Mendes, 2005; Starkey, 2002).

Partindo destas ideias, alguns autores defendem que a SDL, passando pela consciencialização dos aprendentes de pertença ao mundo, poderá contribuir para que os mesmos se tornem cidadãos capazes de, como afirmam alguns autores, atingir uma tripla harmonia nas relações que estabelecem: harmonia consigo mesmos, com os outros e com a natureza (Gadotti, 2003; Rojo, 1995).

Tendo em conta os argumentos que fomos apresentando, importa esclarecer que a SDL - no quadro de uma didática do plurilinguismo e de um paradigma em que a pluralidade e a heterogeneidade são aceites e valorizados – se assume como um conceito em construção (Candelier, 1998, 2000, 2001, 200 3, 2008; Perregaux, 1998, entre outros). Trata-se de uma abordagem que procura novos rumos e novas dimensões, sendo a sua integração curricular uma das prioridades da educação em línguas atual. Defende-se, assim, que

“(…) including linguistic diversity in curricular practice enhances to face two major educational concerns, namely the growing human mobility and the need for a real preparation towards global communication and understanding” (Gonçalves

& Andrade, 2006:1).

Estando conscientes de que não existem receitas para o desenvolvimento desta abordagem, no ponto seguinte, procuramos refletir sobre algumas das possibilidades de a integrar e de a gerir curricularmente nos primeiros anos de escolaridade.