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Reações são períodos de inflamação aguda no curso de uma doença crônica – no caso da hanseníase – reações hansênicas – afetam a pele e os nervos, podendo também afetar os gânglios. As reações hansênicas são desenvolvidas a partir de fatores desencadeantes como: infecção intercorrente, vacinação, gravidez, puerpério, medicamento iodado, estresse físico e mental (ARAÚJO, 2003; SAUNDERSON, 2005).

Os tipos de reações hansênicas mais importantes são: reação tipo I ou reversa e tipo II ou eritema nodoso hansênico – ENH. A reação tipo I é causada pelo aumento da atividade do sistema imunológico contra o bacilo da hanseníase, ou mesmo contra os restos de bacilos mortos, conduzindo a um processo inflamatório agudo em qualquer área do corpo que ainda tenha bacilos (Figura 08). As características mais comuns são: lesões de pele, geralmente não dolorosas, mas desconfortáveis, edema de membros e de face, eritema, calor e hipersensibilidade dos nervos – neurites. As neurites são comprometimentos neurais que evoluem com dor (espontânea ou a palpação) e alteração da função neural autônoma, sensitiva e/ou motora, acompanhada ou não de espessamento dos nervos. Sem tratamento seus efeitos

sobre os nervos podem levar a danos permanentes da função neural. Os músculos das pálpebras podem ser afetados, determinando dificuldade no fechamento dos olhos. A reação tipo II ocorre quando um grande número de bacilos é morto e gradualmente decomposto, as proteínas destes bacilos provocam uma reação imunológica em todos os tecidos do organismo – reação sistêmica, com exceção do sistema nervoso central – SNC. As características mais comuns deste tipo de reação são: nódulos subcutâneos que podem inflamar e evoluir dolorosos e vermelhos, mal – estar geral, febre e artralgia (Figura 09). Nesta reação pode ocorrer inflamação da íris – irite (SAUNDERSON, 2002).

Figura 08: Reação Tipo I ou Reversa (OPROMOLLA; URA, 2002).

Figura 09: Reação Tipo II ou Eritema Nodoso Hansênico – ENH (HANSENÍASE, 2001).

4 A HANSENÍASE E SUAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

“Por mais de vinte anos um duque de Alba permaneceu deitado em sua cama. Entre a imundície de seus detritos e a lepra de um amor desgraçado, via o sol sair e se pôr, via, como uma tumba a mais, a noite. O ar fétido que respirava vinha misturado com a fragrância da flor de cidra de sua amada. Nobremente invejamos este duque de Alba, tão feliz, nós, em idade assolada pela tecnocracia e pela desconfiança. Este duque de Alba tinha um só pensamento, uma idéia, mas era sua. Ele ia dissipando o pensamento, e ao mesmo tempo enriquecia. Mas nós, em várias camas, com imundície e milhões de lepras, entre planos e simulações, já não sofremos nada. O que nos permitem é tomar comprimidos e calar”.

(Um Duque de Alba, Virgilio Piñera).

As representações sociais traduzem sempre juízos de valor. Elas envolvem concepções sobre o real, possuindo, ainda, uma dinâmica própria. Elas definem a visão de mundo de um individuo ou de um grupo acerca de um fato, de um evento, de um fenômeno. Trata-se, pois, de figurações mentais apreendidas pela via da socialização, ou seja, da convivência social. Cada sociedade seleciona os elementos que servirão de base para o julgamento e o enquadramento de situações, fatos, realidades, segundo a noção de “normalidade” ou “anormalidade”. Com isso, são introduzidos valores e regras de conduta que orientarão as formas de ação e interação dos indivíduos no espaço social. Estes parâmetros servem da mesma forma, como critério de medida para julgar o que se afigura adequado ou danoso à vida social. Assim “qualquer elemento que não coincida com as definições culturalmente postuladas, se converte em um perigo” (ROMERO – SALAZAR et al., 1995, p. 535, tradução nossa). Nesse sentido, a representação tanto pode servir de elemento que congrega e une os indivíduos em torno de visões comuns, como também pode se revelar como um instrumento que desagrega ou cria estranheza e preconceito entre os membros de uma sociedade.

Convém, pois, reconhecer que a representação é um fenômeno complexo cujos contornos se revelam de múltiplas formas no espaço social. Não obstante suas múltiplas dimensões, o que parece certo, é fato de que as representações sociais implicam crenças, valores, comportamentos, cujas repercussões determinam o modus vivendi de inúmeros indivíduos, servindo assim de critério de orientação para as crenças que se formam e também de “força motriz” que engendra comportamentos nos sujeitos. A representação se manifesta

geralmente focalizando um aspecto positivo ou negativo de uma realidade, razão pela qual ela é um dado fundamental para a compreensão de certos aspectos ou fenômeno da realidade. No caso da hanseníase, há de se destacar que o principal foco da representação é o corpo, ou seja, o corpo aparece como morada da imperfeição, da deformação, da anomalia.

O corpo é o lócus primordial da hanseníase. Eis por que é sobre ele que a maior parte das representações ligadas à doença recai. O problema é que, como sabemos, nossa cultura baseia-se, dentre outros fatores, na valorização acerbada do corpo belo, harmônico, saudável. O culto ao corpo e às suas formas perfeitas fomenta a consciência narcisista do nosso tempo. A valorização do corpo perfeito – e se possível imaculado – contribui ainda mais para ampliar a representação negativa que o corpo do portador de hanseníase assume atualmente. O fato é que a imagem do corpo e sua representação têm infelizmente se constituído como fator de exclusão social.

Alem da incapacidade ao trabalho causada pelas deformidades, acontece também a exclusão social derivada da representação social assumida pela doença. Tal representação, aliás, gerou práticas confinatórias muito correntes até épocas recentes. Isso porque “os elementos constitutivos desta representação geraram um marco em que se reproduzem também o processo geral de inabilitação social das pessoas que portam tal enfermidade” (ROMERO – SALAZAR et al., 1995, p. 535, tradução nossa). O fato é que a representação negativa assumida pela doença ainda hoje condiciona e mobiliza comportamentos de refratários da parte de quem entra em contato com o doente. A atitude do outro em face da enfermidade muitas vezes define as condições de possibilidade de seu tratamento e cura, na medida em que o olhar do outro pode facilitar ou obstacular as iniciativas do enfermo em relação ao enfrentamento do problema.

A representação social da hanseníase molda, pois, a própria concepção que o doente tem do referido mal. Nesse sentido, as crenças estão na origem das atitudes, visto que a compreensão do problema engendra as iniciativas visando o seu combate ou então a fuga de enfrentamento do problema. Historicamente, como sabemos, a doença e a representação que ela assumiu acabou por marginalizar a pessoa afetada dificultando sobremaneira o processo de tratamento e cura. Além disso, a carga negativa que acompanha o doente determinou não apenas seu modo de ser no mundo, mas também a maneira como ele se apresenta face aos demais. Ou seja, o individuo muitas vezes tenta ocultar os sinais, manchas e deformidades do seu corpo com a ajuda de roupas ou outras indumentárias com o fim de esconder suas mazelas. As condutas encobridoras revelam que o individuo tem a “necessidade de manejar a tensão resultante de seu encontro com os outros” (ROMERO – SALAZAR et al, 1995, p. 536,

tradução nossa). O papel social do individuo é, portanto, restringido e decorre muitas vezes de uma segregação compulsiva. Reduzido a uma categoria não-humana (ou a algo que se lhe assemelha). O individuo muitas vezes se sente culpado por sua enfermidade. Aqui a vítima carrega consigo a culpa pela doença, situação que revela um duplo sofrimento imposto à pessoa acometida.

A pessoa afetada reproduz a imagem negativa da doença, sendo ao mesmo tempo sujeito – disseminador da representação que ela assumiu. O estereotipo é assim reproduzido por aqueles que se afiguram vítimas dele. Como resultado, têm-se indivíduos desconfiados, deprimidos, receosos, hostis, ansiosos. A representação negativa da doença gera, ademais, inúmeros problemas reputados psicológicos o que, tão somente, contribui para tornar o tratamento ainda mais difícil e o doente debilitado. O temor de ser rechaçado por outras pessoas ou por membros da família gera no indivíduo uma conduta de auto – exclusão, comprometendo não apenas sua vida social, mas, também, em muitos casos, a sua atividade produtiva.

Há de se destacar que o peso assumido pelas crenças é também fomentado pela antiguidade da enfermidade e o estereotipo de impureza que a acompanha. O confinamento a que foi submetido os enfermos até uma época recente ajudou também a forjar a imagem aterradora que, em muitos casos, ainda acompanha a doença. O medo de ser rechaçado e a autopunição se congregam para tornar a hanseníase uma enfermidade que não apenas atinge o indivíduo em seu aspecto corporal, mas também o afeta em sua dimensão psicológica.

A representação se afigura também como um obstáculo ao tratamento. Isso se configura como um grande problema às iniciativas terapêuticas - “o problema da aderência ao tratamento da hanseníase está intimamente ligado ao controle da endemia, visto que o individuo infectado contagiante representa a fonte de transmissão do bacilo que é o agente

etiológico da enfermidade”(BAKIRTZIEF, 1996, p. 497).

A representação social interfere no tratamento o que contribui para aumentar a cadeia de infecção. Nesse sentido, o peso assumido pelas crenças e valores ligados à representação gera efeitos práticos extremamente importantes à avaliação do grau de endemicidade assumido pela doença no interior de determinadas sociedades. Apesar de ser avaliada em sua dimensão comumente negativa, a representação social pode, em contrapartida, fornecer informações acerca de como o individuo deve orientar a sua ação de modo a aderir ao tratamento prescrito. Em outras palavras, ela pode servir de guia de conduta e induzir no individuo o desejo de superar o mal que o acomete. A imagem da doença, por mais deletéria que possa ser e se

revelar no meio social, é ainda capaz de encorajar o sujeito a fugir do espectro negativo que paira sobre a doença.

A escassez de informações e o baixo nível educacional ainda vividos por cidadãos de paises em desenvolvimento contribuem também para fortalecer tais representações. As condições sociais e econômicas em que vivem a maior parte dos seus portadores dificultam o combate ao mal e a imagem perniciosa que o acompanha.

Segundo Oliveira; Romanelli (1998, p. 54),

o impacto provocado pela doença, sem duvida, interfere no cotidiano dos indivíduos que representam a hanseníase como uma ameaça constante da incerteza do sucesso do tratamento, pois a condição do doente já é, por ‘pré-conceito’, marcada por sofrimento, abandono, deformidade e problemas psicossociais que inevitavelmente acabam por ocorrer, agora por preconceito de ordem social.

Todos esses elementos revelam a amplitude das repercussões causadas por tal enfermidade e, sobretudo, as dificuldades em se conduzir uma terapêutica eficaz.

Convém também destacar os desconfortos gerados pela alteração da aparência decorrente da doença e do tratamento que lhe é aplicado. Com efeito, a aparecia anômala – segundo os padrões socialmente instituídos – gera especulações, curiosidade e juízos de caráter preconceituoso em quem julga. Essa reação também afeta a adesão do individuo ao tratamento, visto que eles passam a evitar situações que possam gerar olhares curiosos ou suscitar explicações sobre seus sinais corporais. Deve-se ainda salientar que a preocupação com a aparência atinge ambos os sexos, porém esse sentimento foi mais acentuado entre as mulheres (OLIVEIRA; ROMANELLI, 1998). As mulheres demonstram preocupação quanto à estética e medo de deformidades, sentindo-se feias e com vergonha de sua transformação, preferindo ocultar seu problema com desculpas, ou simplesmente se escondendo (OLIVEIRA; ROMANELLI, 1998).

Tal fenômeno é ainda justificado pelo fato de que na nossa cultura há uma tendência a interligar os padrões de beleza aos padrões morais, de modo que o feio ou deformado é comumente associado ao mau, enquanto o belo suscita a idéia do bom. Além das repercussões sociais tangíveis, a hanseníase cria inúmeros problemas de relacionamento afetivo, interferindo ainda na vida sexual dos enfermos. Assim, “a instabilidade emocional dos pacientes desencadeia um estado de crise, provocando tensões e, consequentemente, modificações físicas, psicológicas e sociais, resultando na desestabilização dos relacionamentos familiar e social” (OLIVEIRA; ROMANELLI, 1998, p. 56). A imagem perniciosa da doença pode não apenas gerar rejeição das mulheres por parte de seus companheiros, como arrefecer o ímpeto sexual destas em virtude da auto-rejeicão e do medo

de suscitar aversão no parceiro. O medo de contagio dos parceiros ou a rejeição pela aparência estética que acompanham a enfermidade tendem a provocar ainda mais uma diminuição da auto-estima da mulher e aumento do medo de serem abandonadas. Para tais autores, os efeitos biológicos provocados pela doença são diferentes, de acordo com o gênero, ainda que em ambos os casos o sofrimento esteja comumente presente. Porém, no caso masculino há um elemento a ser considerado no que concerne aos cuidados recebidos, isso porque “os homens contam com a ajuda das esposas ou das mães, já que, conforme as representações acerca do gênero feminino, cabem às mulheres a capacidade e habilidade para

cuidar dos doentes” (OLIVEIRA; ROMANELLI, 1998, p. 57)13.

As representações sociais da hanseníase se constituem, pois, como uma das vias essências para se entender suas formas de aparição e disseminação, na medida em que ela também nos permite avaliar o grau de informação, instrução e condição socioeconômica dos indivíduos que integram uma determinada sociedade. A historia social da doença, ademais revela, como bem indicam Helene; Salum (2002), que os portadores reproduzem-se em situações precárias de trabalho e vida ou então sob a égide da exclusão social. Com efeito, a hanseníase é uma doença que traz consigo inúmeros significados simbólicos que traduzem não apenas situações de exclusão, vergonha, estigma, mas também revelam algo sobre as condições de vida dos seus portadores.

A hanseníase passa também a ser associada a uma vida marcada por vícios e maus hábitos. Além disso, ela pode revelar, como demonstram Queiroz; Puntel (1997, p. 77), a consciência culpada do individuo. Isso porque, dizem os autores:

atribui-se ao individuo em questão uma negligência de ordem moral e, por isso, o fator envolve alguma culpa individual pela doença. O destino, a vontade de Deus ou simplesmente as condições herdadas geneticamente também aparecem com este sentido de culpa, uma vez que no passado o próprio indivíduo ou algum antepassado seu concorreram para causar o problema.

Tais idéias revelam que o modo como a doença se faz representar transcendo a dimensão puramente biológica, para se transformar num fenômeno que tem implicações psicológicas, morais, filosóficas e até religiosas, já que o mal é por muitos associado a impureza e ao pecado. É evidente que tais representações têm efeitos diferentes segundo o

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Para os autores, apesar de a doença impedir que as pessoas vivam situações comuns, “a hanseníase mobiliza representações diferentes entre os gêneros masculino e feminino e nos diferentes grupos sociais em que estão inseridos os portadores da moléstia” (OLIVEIRA; ROMANELLI, 1998, p. 58). As mulheres estudadas, segundo os mesmos, mostraram-se mais preocupadas com a aparência física e incorporam ao seu sofrimento culpas e autopunições, revelando ainda medo de perderem o seu espaço dentro da família, alem de serem rejeitadas e abandonadas pelos parceiros. Ainda que isso não deixe de ocorrer no caso dos indivíduos enfermos do sexo masculino, essa tendência ficou bem mais evidente no comportamento das mulheres atingidas pela enfermidade

nível socioeconômico ou educacional do indivíduo. Os poucos indivíduos portadores que pertencer às camadas mais instruídas e economicamente favorecidas da população tendem a adotar uma postura diferente em relação à noção de culpa, bem como no que concerne à concepção da doença (QUEIROZ; PUNTEL, 1997). O fato é que a representação negativa tende a influenciar de forma mais radical e nociva às pessoas desfavorecidas, pois as mesmas geralmente possuem menos acesso a informação e, conseqüentemente, tendem a ser mais influenciadas pelas representações negativas que a doença assumiu ao longo do tempo.

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