• Nenhum resultado encontrado

reconhecimento do corpo próprio Marta Pedó

No documento CORPO: ficção, saber, verdade (páginas 49-58)

N

os anos de 1975 e 1976, Lacan trabalhava em seu seminário sobre a importância do sinthoma para a subjetividade, usando elementos da bio- grafia do escritor irlandês James Joyce, a respeito de quem chama a atenção para o modo de usar a linguagem escrita, com ela criando o que parece con- stituir corporeidade. É neste contexto que Lacan interroga sobre a consistên- cia do corpo para o sujeito e diz que ela não está garantida desde o princípio, e é preciso lembrar que se trata de um efeito do significante. É assim que ele escreve, por exemplo:

O falasser adora seu corpo, porque crê que o tem. Na realidade, ele não o tem, mas seu corpo é sua única consistência, consistên- cia mental, é claro, pois seu corpo sai fora a todo o instante… O corpo decerto não se evapora e, nesse sentido, ele é consistente. É precisamente o que é antipático para a mentalidade, porque ela crê nisso, ter um corpo para adorar (Lacan [1975-76] 2007, p. 64). A consistência do corpo é assim descrita como um efeito da articulação do corpo à sua representação mental, e é precisamente porque o corpo tem uma inscrição significante que ele pode ser reconhecido como próprio, ou melhor, por isso acreditamos que ele nos pertence. Contudo, seu corpo sai

fora a todo instante, ou seja, essa consistência não está sempre garantida.

Há ocasiões em que duvidamos do que vemos no espelho, momentos em estamos diante de uma imagem corporal que vacila, pois parece nos escapar. Isto é, se, de um lado, o corpo não se evapora, por outro lado, é preciso reiteradamente afirmar sua existência (por exemplo, através de todos os cui- dados estéticos e de saúde que lhe conferimos); contudo, ainda assim, não obtemos o almejado apaziguamento da suspeita de que há um engano e de que a imagem que enxergamos não é a nossa, mas que é de outro.

Não são raras as situações em que podemos observar esse tipo de fenômeno, de ameaça da perda da imagem do corpo próprio, acompanhada da sinistra ameaça da aparição de um outro corpo, de uma outra imagem em seu lugar. Assim foi que ouvi, às vezes com excitação, em outras com medo, no meu trabalho e em conversas, geralmente com meninas, sobre a Maria Degolada. É uma história conhecida de muitos de nós, com diferentes versões, sendo que a versão mínima comum entre elas diz o seguinte: “A Maria Degolada, se tu chamares três vezes no espelho do banheiro, ela apa- rece, ensanguentada.”

Maria Francelina Trenes é o nome da moça que foi assassinada pelo namorado e que ficou mais conhecida como Maria Degolada em Porto Alegre. De Maria Francelina se sabe pouco, temos apenas as informações que estão

nos autos do processo e o que nos chega pela população local. A história oficial diz que era prostituta e foi brutalmente assassinada pelo namorado, um soldado da Brigada Militar, durante um piquenique com amigos no então Morro do Hospício, que fica no bairro Partenon, perto do Hospital Psiquiátrico São Pedro. O crime, em 1899, causou horror, e a notícia logo se espalhou. Conta-se que era uma boa moça, querida da comunidade, e passou a ser venerada, recebeu preces e pedidos (que atendia, menos os dos policiais). Em sua homenagem, ergueu-se uma capela no local, para Nossa Senhora da Conceição. O morro hoje é o Morro da Maria Degolada, e a comunidade que cresceu ali é a Vila Maria Conceição. Maria tem devotos e até recebe oferen- das – foi feita santa (muitos acreditam que na verdade não era prostituta, mas moça de boa família). Virou lenda, letra de música e até se faz uma cerveja artesanal com o nome dela. Maria, ora santa, ora prostituta, também parece representar o conflito da comunidade local com os policiais.

O folclore seguiu e aproximou a história da Maria Degolada às de out- ras Marias, tais como a Bloody Mary americana, conhecida em outros lugar- es do Brasil como a loira do banheiro, ou Maria Sangrenta (tradução literal de Bloody Mary). O que elas têm em comum é que a jovem ensanguentada que aparece no espelho ao ser invocada sofreu uma tragédia terrível e in- justa.

Essas diferentes versões da lenda remetem à trágica história, aconte- cida entre os séculos XVII ou XVIII, de uma menina que adoeceu e entrou em coma, tão profundamente e por tanto tempo, que foi considerada morta e, afinal, sepultada. Passado o enterro, seu pai, médico, ainda estava muito in- quieto, a ponto de desenterrá-la no dia seguinte. Quando o caixão foi aberto, o corpo estava lá e sem vida; contudo, a madeira estava muito arranhada, e suas mãos ensanguentadas. Todos logo chegaram à conclusão de que Maria morreu dentro do caixão, asfixiada, tentando sair.

O número de meninas que conhece e transmite essa lenda, do retorno da Maria feito brincadeira de assustar, é bem grande, em especial nos Esta- dos Unidos, de onde veio a história mais difundida hoje. Contada, entre me- ninas de 8 a 12 anos de idade nas noites de festa do pijama, a história vem carregada de frisson e provocação – “quem vai morrer de medo? Quem vai ousar repetir o nome da Maria no espelho do banheiro?” Chamá-la no espe- lho tem algumas regras: é no banheiro, à luz apenas de uma vela, a menina tem que estar sozinha e deve se olhar e, sem desprender o olho, chamar três vezes (o número de repetições pode variar, numa versão chega a 49!). As mais audaciosas não se apavoram e transmitem o que tem todo o jeito de um ritual, que pode incluir perfurarem um dedo até sair uma gota de sangue, que será compartilhada no grupo, sinal da cumplicidade mútua.

Minha primeira pergunta seria – Quem é essa que aparece no espelho? A especialista em folclore Janet Langlois (1978) aponta que a identifica- ção das participantes com a aparição fica literalmente refletida. Em ocasiões normais, quando qualquer menina olha o espelho, ela vê a si mesma; mas nos relatos da brincadeira, ela vê a Maria Sangrenta, ou melhor, espera que, de algum modo, a outra possa aparecer. Neste sentido, então, a Bloody Mary é sua própria reflexão. Estou bastante de acordo com essa observação, pois o espelho pode trazer o júbilo, a satisfação da imagem de si, mas também denunciar a vacilação com o corpo em sua imagem.

Vivemos num tempo em que a imagem tem enorme importância, e um de seus efeitos é o que eu chamo de tirania do espelho. O que somos se confunde com o que nossa imagem transmite ao olhar (dos outros), de modo que, cotidianamente, é preciso estar atento a ela. Observo a busca de pro- teção contra esse olhar sempre presente através das mais variadas formas de cobrir o corpo e dar a ver uma representação desejável. Anteparos conhe- cidos, como a roupa, a maquiagem, os óculos e outros envoltórios vestíveis, têm sido incrementados enquanto prolongamento do corpo, de modo a es- tarem também nos objetos próximos, como um carro, que passa a compor a cena, ou o telefone celular, que funciona como um espelho sempre pronto a auxiliar a encontrar a medida ideal do que parece não ter fim: o mal-estar com o corpo dado a ver.

Encontro nos jovens a denúncia do desconforto com a subjetividade as- sim à mercê da imagem. Afirmam e, ao mesmo tempo, escancaram a precarie- dade da defesa estampada contra o transbordamento da angústia de ser dado a ver. Os adolescentes, confrontados que estão com a emergência do sexo, visível na transformação do corpo e exposta ao olhar dos outros, conhecem bem a técnica de, por exemplo, uniformizar a vestimenta e, assim, fazer desa- parecer a individualidade, misturando-se no bando; ou, ainda, provocando com a imagem impactante, que devolve a intimidação do excesso de olhar e, num misto de fascínio e repulsa, fazem parar o olhar intruso, o mau-olhado.

E seguimos, sempre às voltas com a suspeita de que algo vai vazar nesta capa de proteção imaginária. Então, por exemplo, o pré-adolescente reclama que a roupa aperta, coça, tem uma etiqueta irritante, não é da marca certa; o cabelo está ruim, o boné não é de aba reta; o celular tá podre, e a

capinha não presta; a pele tem cravos, espinhas e outros buracos. Os adultos

também reagem ao desconforto com a careca, o carro velho, com a roupa que nunca se tem, etc. O desfile das imagens continua e, penso, tem um ápice nessas modelos devotadas ao ideal do “corpo cabide” nas passarelas. Vende-se a ideia, que compramos, de que o valor está na roupa que se usa, no hábito que faz o monge.

Em seu seminário De um discurso que não fosse semblante, Lacan ([1972-73] 2009), trabalha sobre o artifício que o humano utiliza para fazer, a partir de um predicado, um substantivo. Como no exemplo do substantivo

palidez, que vem de pálido, ou beleza, que vem de belo; no mesmo sentido,

desenvolve sobre como, a partir do ornamento, do envoltório, da aparên- cia, o homem busca fazer um ser. Assim, pode-se dizer que o hábito faz o monge, no sentido que Lacan conferiu a esta frase, invertendo-a: um sujeito que, paradoxalmente, é também objeto, a saber, dividido. O artifício é que a vestimenta componha a imagem do objeto de um modo tal que seja possível amá-lo, ou melhor, enxergar nele a ilusão do objeto ideal (a) causa de desejo, e, a partir daí, transmitir-lhe um lugar simbólico, de sujeito.

É no trânsito do olhar amoroso feito espelho que o sujeito pode ver a il- usão da boa forma, é o que podemos observar no esquema ótico de Bouasse, que Lacan ([1953-54] 1979) utiliza para falar dos primórdios da constituição do sujeito psíquico. Nesse aparelho, tem-se a ilusão de ver um vaso com flores: contudo, as flores estão de um lado, e o vaso de outro, mas através do jogo de espelhos é possível ver como um conjunto único. Assim também se dá a ilusão da forma ideal, que permite a cada um ver seu corpo amado e ignorar o quão incompleto é o corpo próprio. O espelho é esse olhar amoroso, o primeiro em geral o da mãe, que também diz da imagem refletida: – és tu,

nenê!, e assim anuncia um lugar simbólico, antecipando o sujeito por vir.

Se, num primeiro tempo de enlaçamento do real, simbólico e imaginário, na constituição subjetiva, estamos às voltas com o domínio do desejo ma- terno, e a imagem de si repercute no ser como um todo, adiante haverá out- ros tempos de metamorfose libidinal, e diferentes desafios, em que a vacila- ção do corpo ressurge inclemente. Alguns desses momentos de mudança podemos nomear com facilidade: a descoberta da diferença sexual em torno da fase edipiana, a puberdade, a maternidade, por exemplo. O que esses momentos têm em comum é a falta de uma defesa constituída para um real que se apresenta, e enquanto perdurarem, vamos assistir a uma vacilação do que antes tinha consistência, como se real, simbólico e imaginário se desen- laçassem, emergindo a angústia.

As meninas pré-adolescentes têm na lenda da Maria Sangrenta uma ficção e um ritual de passagem, do anúncio do que está por vir – a menstrua- ção. Invocar a bruxa ensanguentada é tarefa solitária, compartilhada com algumas outras que também estão nesta sem saída – uma vez que a bruxa vem, a imagem do espelho se modifica, não é mais a menina.

No folclore sobre a menstruação, a conclusão parece ser de que esta faz uma mulher agir como bruxa. Maldição feminina, sempre difamada… É sempre uma Maria, ora puta, ora santa – como no drink, que tem as versões

bloody Mary ou virgin Mary, caso tenha álcool na receita, ou não. O compar-

tilhar com as outras meninas também penso ser a destacar, porque o grupo funciona como um grupo de iguais – cada uma está sozinha, mas sabe que logo vai ver as amigas, o que tranquiliza. Numa hora destas, é confortante ver a imagem refeita em seguida.

Há uma série de ficções, além desta da Maria, que a cultura oferece para esses momentos de virada. O mundo dos vampiros, dos mortos-vivos, do futuro incerto e carregado de desafios povoam a literatura e o cinema. En- tre múmias (mommies, mummies…) e monstros horrendos, devoradores, que precisam ser destruídos ou neutralizados, podemos reconhecer os adultos, que fazem obstáculo e bloqueiam as saídas possíveis dos jovens. Seja por sua voracidade pelo tempo perdido que não volta mais, seja pela velhice e decrepitude que suas figuras anunciam, ou mesmo pelo aprisionamento ao lugar de conforto e desconforto que é a casa; os adultos aparecem nessas narrativas de enredos pouco elaborados como anunciando perdas.

A morte está à espreita, e não é à toa. Há nos momentos de passagem uma parte perdida e um luto a ser feito por essa parte, por esse objeto ofe- recido enquanto ideal, objeto do desejo da sua mãe. Há desamparo, há an- gústia na iminência de se reencontrar e, paradoxalmente, se perder do ideal. E isto se repete – passa-se adiante o ritual que reitera o exílio, às vezes no lugar de quem é impelido a jogar, às vezes no lugar de quem provoca o outro a falar os versos da invocação do espelho. Entre ativo e passivo, reencontra- -se a sensação do momento traumático, que é mesmo buscada de novo e de novo. Tal como uma criança pequena (quiçá o neto de Freud, com seu carre- tel a empurrar e puxar de volta pelo cordão uma e outra vez, na tentativa de elaborar a separação da mãe), num ritual de passagem o que se busca é que a cena e os objetos sejam sempre iguais: os mesmos objetos encontrados e perdidos, e as mesmas sensações ligadas às lembranças que as acompa- nharam no trauma.

O desamparo é esse momento último, inicial e final, de solidão, de inun- dação do real, que é o acontecer da vida e da morte, que retorna nos momen- tos de passagem na constituição psíquica e que encontrei em alguns de meus interlocutores pré-adolescentes. Acontece que aquilo que para alguns pode ser angustiante e insuficiente, para outros transborda e inunda. A escuridão em que uns projetam fantasias ilusórias, brincando de medo e localizando um ponto de fuga, para outros vem povoada de sombras, que se transformam em assombrações, que resistem a sair de cena e paralisam qualquer movimento. Como encontrar uma saída?

Das ficções oferecidas aos meninos, encontrei no filme Correr ou morrer uma representação que li como pertencente ao mesmo tipo de conflito. O fil-

me vem de uma série de livros, mas me interessou o primeiro. Trata-se de um grupo de meninos que, sem saber por que estão ali, vivem num lugar restrito, sobrevivendo e tentando achar uma saída através de um labirinto impossível onde há monstros à espreita. Organizados em sua pequena comunidade, eles vão se virando relativamente bem, até que chega o protagonista e, logo depois dele, uma menina. A partir daí, uma saída é forjada, não sem rupturas ou perdas no grupo. Ao final, descobrem que o lugar onde estavam era uma armadilha arranjada por adultos que buscavam solução para sua doença, quero dizer, para a doença da humanidade.

Nesse filme, me chamaram a atenção alguns elementos: a visão limita- da do labirinto desde dentro, a vida comunal organizada entre os meninos, e o elemento disruptivo – uma menina, ou seja, o outro sexo. Adiante, a cruel- dade dos adultos (C.R.U.E.L. é a sigla da empresa de pesquisa que busca a cura para a sua doença).

E os meninos correm para tentar desbravar o labirinto em que estão metidos – para eles, é preciso correr. A velocidade e a capacidade de prever ou enfrentar o surgimento do monstro no labirinto são disparadores para as ficções propostas para os meninos pré-adolescentes. Para a batalha pela vida que está por vir, é preciso correr, e nunca se tem tempo.

A alusão aqui ao movimento não é sem razão, uma vez que é pelo mo- vimento que o olhar contorna o visível e percebe a profundidade – os pontos de fuga. A percepção da profundidade precisa de mais de uma posição de olhar – ela se dá, seja pela visão binocular, seja pelo movimento em torno. As crianças se movimentam, contornam os espaços a conquistar, empurram e puxam os carretéis e carrinhos que se escondem e aparecem. Brincam de correr dos medos, ou de se aproximarem deles desde diferentes posições.

Se voltamos ao estágio do espelho e ao esquema óptico de Bouasse, veremos que ele compõe um traçado de linhas e distribuição no espaço (vir- tual e real) tal que não é indiferente a posição de quem olha. Para perceber a ilusão do vaso que envolve as flores, como o objeto eu ideal a ofertar para a mãe, é preciso estar dentro. O movimento dos espelhos ou da posição de onde se olha vai permitir ver que se trata de um jogo de reflexões, e que se trata de uma imagem representada: um engano.

Os fóbicos são os que, privilegiadamente, mapeiam seus espaços, contornam, estabelecem pontos de limite e de fuga. As demarcações são simbólicas, e Freud ([1909] 1969) nos relata que, mesmo quando se trata de fobias a animais, por exemplo, estes têm por função agir como sinais de angústia e desencadear a fuga de tais ou quais lugares. A fobia sempre tem uma relação estreita com o espaço e pode ser uma solução para os tempos de passagem.

Assim, penso que os tempos de passagem reeditam algo da angústia relativa à divisão primeira do sujeito, anterior à sexuação, no sentido de uma escolha sexual, seja ela de identidade feminina ou masculina, seja ela de ob- jeto; ou seja, quando o trauma de estar no mundo com um corpo incide sobre a separação da criança de sua mãe, sobre a necessária perda da imagem ideal de um bebê sem falhas para, assim, fundar um sujeito em falta. O su- jeito torna-se desejante a partir dessa operação; contudo, ainda está aquém, logicamente, do advento da sexuação.

O desejo se funda na falta e, neste sentido, produz tensão entre prazer e desprazer. Aquém do sexo, da passagem edipiana, Freud diz que o desejo pode ser acalmado de dois modos: um deles é através da realização alucina- tória – um conjunto de sensações e afetos difusos, mas que permite o ador- mecer e se constitui na base do sonhar; e o outro modo de apaziguamento se dá com a companhia de um transicional – de um objeto transicional. Este último também podemos interpretar, a partir da leitura de Lacan, como sendo um sujeito em transição com a posição de objeto, ou seja, como o sujeito que se desprende do ideal que era até então, para se aventurar a ser esse sujeito, dividido entre sujeito e objeto, desamparado. É esse primeiro desamparo que entendo ser reeditado nos tempos de passagem, a partir da ameaça projeta- da do real do sexo que provoca a vacilação da imagem de si. Uma imagem que já não se sustenta mais na ilusão anterior, infantil, e aparece refletida como essa que impacta porque diferente, outra, mutilada/castrada/sexuada, desvelando no desconforto imediato o sem saída da castração.

Concluindo, podemos dizer que os jovens, mais uma vez, apontam para o desconforto com que adultos se confrontam, inconscientemente, e para o qual não encontram saída. Ou melhor, na atualidade, tal qual os adultos que administram a empresa C.R.U.E.L. do filme Correr ou morrer, parece que nós, adultos, esperamos que os jovens encontrem uma saída para a submis- são à tirania do espelho em que estamos imersos. Chamo de tirania isto que convoca tantos homens e mulheres contemporâneos a celebrar e cultivar a aparência de si como consistência, como um ideal de ser.

Entendo que acreditar na aparência como constituindo um ser faz um alargamento do campo do visível, no qual muito pode ser armadilha, pois a aparência, o perceptivo, comporta o engano. Um engano que, como um en- torpecente, apazigua a angústia, porém de modo muito efêmero.

Efêmero, líquido, fugidio e volátil, entre outros, são qualificativos que fazem parte de uma série que também pode ser atribuída no contemporâ- neo ao modo como os encontros entre homens e mulheres se apresentam: breves, leves, sem o peso do envolvimento. Porém, arrisco a afirmar que os tantos movimentos, a correria contemporânea, em que o tempo (como na fic-

ção de Correr ou morrer) é abreviado, encurtado, achatado, o número exaus- tivo de reiteradas tentativas faz também pensar em um esconde-esconde, ou seja, um jogo. Finalmente, penso que nossos pré-adolescentes e fóbicos

No documento CORPO: ficção, saber, verdade (páginas 49-58)

Documentos relacionados