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CORPO: ficção, saber, verdade

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Academic year: 2021

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CORPO: ficção, saber, verdade

VOLUME 2

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE Porto Alegre

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n. 50, jan./jun. 2016 Título deste número: Corpo: ficção, saber, verdade. Vol. 2

Editores:

Clarice Sampaio Roberto e Marisa Terezinha Garcia de Oliveira Comissão Editorial:

Clarice Sampaio Roberto, Cristian Giles, Glaucia Escalier Braga, Maria Ângela Bulhões, Mariana Kraemer Betts, Marisa Terezinha Garcia de Oliveira,

Otávio Augusto Winck Nunes e Valéria Rombaldi Colaboradores deste número:

Alvaro Bulhões Olmedo Editoração: Jaqueline Maciel Nascente

Consultoria linguística: Dino del Pino

Capa: Clóvis Borba Linha Editorial:

A Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre é uma publicação semestral da APPOA que tem por objetivo a inserção, circulação e debate de produções na área da psicanálise. Contém estudos teóricos, contribuições clínicas, revisões críticas, crônicas e entrevistas reunidas em edições temáticas e agrupadas em quatro seções distintas: textos, história, entrevista e variações. Além da venda avulsa, a Revista é distribuída a assinantes e membros da APPOA e em permuta e/ou doação a instituições científicas de áreas afins, assim como bibliotecas universitárias do País.

Associação Psicanalítica de Porto Alegre

Rua Faria Santos, 258 Bairro: Petrópolis 90670-150 – Porto Alegre / RS Fone: (51) 3333.2140 – Fax: (51) 3333.7922

E-mail: appoa@appoa.com.br - Home-page: www.appoa.com.br R454

Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre / Associação

Psicanalítica de Porto Alegre. Vol. 1, n. 1 (1990). Porto Alegre: APPOA, 1990, -Absorveu: Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.

Semestral ISSN 1516-9162

1. Psicanálise - Periódicos. I. Associação Psicanalítica de Porto Alegre

CDU 159.964.2(05) CDD 616.891.7

Bibliotecária Responsável Luciane Alves Santini CRB 10/1837

Indexada na base de dados Index PSI – Indexador dos Periódicos Brasileiros na área de Psicologia (http:// www.bvs-psi.org.br/)

Versão eletrônica disponível no site www.appoa.com.br Impressa em março 2017. Tiragem 500 exemplares.

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TEXTOS

É possível ser gender fucker? Is it possible to be gender fucker?

Miriam Chnaiderman ... 09 Quando o corpo é um erro!

When the body is an error!

Eliana dos Reis-Betancourt ... 23 Corpo feminino: uma questão de estilo Feminine body: a matter of style

Maria Cristina Poli ... 32 Menina-moça: um corpo que urge Young lady: a body that urges

Ana Laura Giongo ... 40 O estranho corpo. Sobre a vacilação no reconhecimento do corpo próprio The strange body about the hesitation in recognizing one’s own body

Marta Pedó ... 49 O mundo corporificado – reflexões antropológicas

Anthropological reflections on the body and the world

Ceres Víctora ... 58 Semblante e escrita na direção da cura Countenance and writing in the direction of cure Isidoro Veigh ... 69 À escuta do sujeito desejante em gênero, número e grau

Listening to the subject of desire whatever gender or number

Lucy Linhares da Fontoura ... 78 O corpo entre cortes e costuras

The body between cuts and seams

Roseli M. O. Cabistani ... 86

entre Evgen Bavcar e Oscar Munoz The melody of things – possible dialogues between Evgen Bavcar and Oscar Munoz

Edson Luiz André de Sousa ... 92 A função do autorretrato na

obra de Van Gogh The function of the self-portrait in the work of Van Gogh

Liz Nunes Ramos ... 100 Tradução e poesia, uma

cosmogonia da linguagem Translation and poetry, a cosmogony of language

Luciana Brandão Carreira ... 110 Entre corpo e alma: um achado

pré-psicanalítico(?) em Freud Between body and soul:

a pre-psychoanalytic (?) Finding in Freud Carlos Henrique Kessler ... 119

ENTREVISTA O corpo e seus litorais The body and its coasts

Ana Costa ... 125 RECORDAR, REPETIR,

ELABORAR Masculino e feminino Male and female

Wilhelm Fliess ... 143 VARIAÇÕES

Sintoma e sinthoma, briga de irmãos The symptom and the sinthome, a fraternal fight Donaldo Schüler ... 157

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Jaime Betts ... 165 O pulso ainda pulsa. Metodologia para uma escuta psicanalítica na construção de políticas públicas na cidade de São Paulo

The drive still goes: methodology for a psychoanalytic hearing in the establishment of public policies within the city of São Paulo

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É

com satisfação que comemoramos o lançamento da Revista da APPOA nº 50, uma publicação que prima pela qualidade dos trabalhos e também busca manter viva a produção psicanalítica escrita, ao longo de nossos vinte e oito anos de instituição. É um saber fazer artesanal que implica transferên-cias, que são muitas, na construção de cada número editado. A fim de reto-marmos brevemente nossa história editorial, inicialmente tínhamos o Boletim

da APPOA. Com o passar do tempo e do trabalho institucional, a publicação

ficou “pequena” para as inúmeras questões e interrogações que nossa prá-xis colocava. Desta forma, o Boletim foi absorvido pela Revista, a partir do número 11, tornando-se uma publicação mais robusta, mais vistosa, mais volumosa. Nela encontramos muitas produções de colegas da APPOA e de outros lugares – cidades, instituições e campos de saber. Compartilhamos essas produções com o propósito de apresentar e transmitir aos leitores o trabalho resultante do constante diálogo com os texto de Freud e de Lacan, a partir daquilo que nos questiona na experiência psicanalítica.

Nesta edição, que dá continuidade à publicação dos trabalhos oriundos do Congresso Corpo: ficção, saber, verdade, segundo volume, continuamos com nossas reflexões, estimulando o debate proveniente dos temas de nosso fazer clínico, assim como buscamos o constante diálogo com os interrogan-tes de nosso tempo. Consideramos aqui a atemporalidade da questão do cor-po, assim como a do inconsciente, que se articula e se atualiza nas diversas formas como cada época lê e interpreta suas manifestações.

Encontramos nesta revista artigos que buscam a interlocução da psica-nálise com outras formas de expressão, tais como como a arte, a literatura

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e o cinema, linguagens que possibilitam recortes e costuras para tratar da temática do corpo e a construção de possíveis litorais. Significantes que des-lizam pela fantasia na perspectiva de desconstruir e reconstruir novas formas de viver as sexualidades. Assim, situar o corpo no imaginário-simbólico-real continua sendo um trabalho contínuo do sujeito em torno do que pode produ-zir como ficção, saber, e verdade.

Ao editarmos o número 50, não é demais ressaltar que manter uma publicação de qualidade no meio psicanalítico é uma tarefa árdua, pois sabe-mos que o mercado editorial, em nosso país, coloca dificuldades. Apostasabe-mos no desejo, como sempre, o que não é pouco para a criação de laços e redes de circulação de nossas publicações. Com ele seguimos na firme intenção de transmitir, instigar e difundir a produção e o debate da psicanálise na nossa cultura.

Desejamos a todos uma boa leitura, e que a interlocução se renove também nesse processo.

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TEXTOS

Resumo: Este texto busca encontrar um referencial teórico psicanalítico para

refletir sobre as formas do desejo em nosso mundo contemporâneo. Com concei-tos freudianos e lacanianos, a experiência tida com o documentário De gravata e unha vermelha vai sendo elaborada.

Palavras-chave: gozo, desejo, pulsão, corpo, sexualidade.

IS IT POSSIBLE TO BE GENDER FUCKER?

Abstract: This article aims to find a psychoanalytical theoretical referential to

pon-der over the forms of desire in our contemporary world. With Freudian and Laca-nian concepts, the experience taken as the documentary De gravata e unha ver-melha starts to take shape.

Keywords: juissance, desire, pulse, body, sexuality.

É POSSÍVEL SER

GENDER FUCKER?

1

Miriam Chnaiderman2

1 Trabalho apresentado no Congresso Internacional da APPOA – Corpo: ficção, saber, verdade, novembro de 2015, em Porto Alegre.

2 Psicanalista; Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae; Doutora em Artes pela ECA/USP; Cineasta de vários curtas e médias metragens (Dizem que sou louco, Procura-se Janaína, Sobreviventes, Gilete Azul) e em 2014 lançou o longa metragem De Grava-ta e unha vermelha. E-mail:chnaide@uol.com.br

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A questão

A

o final do filme que dirigi De gravata e unha vermelha (Chnaiderman, 2014) Dudu Bertholini, um dos personagens do documentário, em lindas vestes e brincos vistosos, declara:

Eu sou o que as pessoas classicamente chamam de um gender fucker… então eu sou a pessoa que não quer o estereótipo do mas-culino, não quer o estereótipo do feminino… eu quero muito mais é descobrir uma maneira única e minha de ser.

A radicalidade dessa frase chama a atenção. Ser um gender fucker ex-plode qualquer lógica identitária e questiona o binarismo de gênero. Ser um

gender fucker é não estar nem aí para o gênero, é não se adequar ao que o

nosso mundo oferece como possibilidades para viver o desejo.

Esse final do documentário ocorre depois de oitenta e quatro minutos, no qual vamos assistindo aos mais diversos modos de viver a sexualida-de sem qualquer estereótipo, vão emergindo sexualida-desejos homos, sexualida-desejos trans, brincadeiras as mais esdrúxulas: transmulheres que menstruam, trans-ho-mens que engravidam, Rogérias que continuam Astolfos, Neys que adoram ser homens, mas não suportam se restringir a qualquer espaço que limite o desejo, gays que adoram ter pelos e sonham casamentos pomposos com vestidos de princesa…

O que isso nos questiona enquanto psicanalistas? Como ficam nossos modelos, fincados no complexo de Édipo e nas fórmulas da sexuação? Há, na psicanálise, instrumentos para refletir sobre tudo isso?

Os banheiros

Jean Allouch (2010) nos relata a seguinte história, como parte do capitu-lo do livro O sexo do mestre: o erotismo segundo Lacan:

Um grupo de amigos janta no restaurante. Num dado momento, um deles se prepara para deixar a mesa de modo imprevisto: à indis-creta questão “Aonde você vai?” ele responde “Vou ali onde você não pode ir no meu lugar”. Curiosamente, acreditamos entender imediatamente do que se trata (Allouch, 2010, p.100).

O autor vai nos mostrar como todos nós vivemos a escolha forçada e a cada ida ao banheiro deveremos fazer uma declaração sobre ser homem ou

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mulher. Observa que no banco, ao qual vamos pelo menos uma vez durante

a semana, não há guichês diferenciados para homens ou mulheres. Lembra que Lacan falou em segregação urinária.

Não há como não lembrar um episódio protagonizado por Laerte, em torno da questão da segregação urinária. Em janeiro de 2012, x3 cartunista Laerte protagonizou um “escândalo” em conhecida padaria de São Paulo: usou o banheiro feminino. Uma senhora, que usava o banheiro naquele mo-mento, sentiu-se constrangida. Laerte reclamou com o dono do lugar e foi criticado. Instalou-se uma confusão, com muita discussão. A cliente afirmava que Laerte seria um homem e precisava usar o banheiro masculino. O ge-rente do restaurante concordava. Mas Laerte usava roupas femininas e ma-quiagem, não se sentia à vontade para usar o banheiro dos homens. Como transgênero, queria usar o banheiro feminino.

Allouch (2010) mostra como a sociedade exclui a possibilidade de que haja a recusa ao tomar uma das duas vias: ou o banheiro feminino, ou o ba-nheiro masculino.

No texto de Lacan A instância da letra no inconsciente ([1957]1998), está colocada a questão dos significantes e o sexo. É bastante conhecida a histórinha que ele ali nos apresenta:

Um trem chega à estação. Numa cabine, um menino e uma menina, irmão e irmã, estão sentados um em frente ao outro, do lado em que a vidraça, dando para o exterior descortina a visão das construções da plataforma ao longo da qual o trem parou: “Olha! Diz o irmão, chegamos a Mulheres!”. “Imbecil!, Responde a irmã, não está ven-do que chegamos a Homens? (p.503).

Homens e mulheres passam a ser duas pátrias. É nesse mesmo ensaio que Lacan marca sua diferença com Saussure, ao inverter a fórmula que ar-ticulava significante e significado. Nos dois irmãos que chegam à estação de trem, é o suporte material do signo, o significante, que faz com que nomeiem diferentemente o lugar para onde o trem os conduziu. O significante passa a deslizar sobre o significado e a barra passa a instaurar uma não relação entre os dois. O signo linguístico se quebra, tornando misterioso o paralelismo do

3 x - símbolo que vem sendo usado para deixar sem a especificação do feminino ou masculino em textos que procuram considerar a luta LGBTIQ.

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significante e do significado. O significante se liberta de qualquer referência a um real. No grafo do desejo, no texto Subversão do sujeito e dialética do

desejo no inconsciente freudiano (Lacan [1960]1981), o Outro, conotado pela

letra A, é designado como o lugar do tesouro do significante. O tesouro do significante e não o lugar do código, pois o código faria corresponder o signo a alguma coisa. O que define um significante é a sua diferença em relação aos outros. O referente é explodido, não interessa.

Assim, homens e mulheres passam a ser significantes sem qualquer referência à diferença sexual. Afirma Allouch (2010): ”Repartir as fantasias em masculinas e femininas parece um empreendimento delicado, errôneo até, ainda que a coisa não esteja radicalmente ausente em Freud…” (p.117). Assim, o gozo sexual não passa pela diferença entre o feminino e o masculi-no. Gozo sexual, distinto do gozo em geral, pois, para Lacan, o gozo sexual é uma limitação do gozo em geral. O sexual, ligado ao falo, é uno.

Allouch (2010) encerra esse capítulo contando sua experiência, nos anos 80, em uma casa noturna em Los Angeles, cujo nome seria algo como

Aorhouse. É divertida sua descrição de um vale-tudo: roupas, comidas,

músi-cas, dança… Mas o que interessa a ele é o que se passa nos toaletes, onde ninguém respeita os indicadores (os Witz gráficos) nas portas. Conta de um homem que sai de women e de jovens americanas que saem de men. Ou seja, a segregação urinária não funcionou. E, o que aconteceu então com a declaração de sexo? Será que passamos então todos a sermos gender

fu-ckers, quando o significante se despreende da relação com a coisa?

O autor mostra nesse episódio como a diferenciação que acaba ocor-rendo nessa boate passa a ser do iniciado e do não iniciado, entre aquele que não toma o significante como ligado a coisa nenhuma e sabe que tanto o significante homem quanto o de mulher não determinam o ser homem ou mulher. Mas, o não iniciado continua a ser movido pelo que Allouch chama de “função persecutória da letra…” (p.123).

Interessante… Introduz, aqui, uma diferenciação que não passa pela lógica fálica. Mas, moraliza seu discurso ao caracterizar o Aorhouse como:

uma classe maternal mista em que uma professora não autori-tária deixaria todos de bunda de fora e à satisfação imediata de suas necessidades. O mundo, diz essa metonímia, é uma imensa cagada”(Allouch, 2010, p.124).

Ainda, finaliza o capítulo de modo perturbador: “O lugar da castrófica dissolução também é o lugar onde a segregação urinária, com um dedo dêiti-co, atinge a inexistência da relação sexual” (p.124). O que Allouch quer dizer

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com isso? É porque o signo deixa de ser dêitico que a relação sexual deixa de existir?

A origem do filme De gravata e unha vermelha

A idéia do documentário surge a partir d(x) cartunista Laerte. Em 2010(x) cartunista Laerte apareceu, já aos 60 anos, vestidx de mulher. E surpreendeu o mundo. Laerte sempre foi conhecidx como cartunista. Publica diariamente suas tirinhas no jornal Folha de São Paulo. É do grupo de Glauco e Angeli. Fez parte de todo um movimento que nos anos 70 manifestava-se politica-mente através das histórias em quadrinho. Não há quem não lembre a publi-cação Chiclete com banana ou não sinta saudades da Rebordosa, figura cria-da por Angeli. Nas mãos desse grupo de cartunistas a contracultura aparecia como oposição à ditadura e forma política de contestar o institucionalizado.

Laerte, mais uma vez, escandaliza o mundo. Revigora sua rebeldia. Aparece na revista Bravo vestidx de mulher. E, naquele momento, define-se como um cross-dresser, termo que depois viria a criticar, afirmando ser clas-sista. O travesti teria a ver com classes menos privilegiadas e o cross-dresser seria um nome chique para o travesti classe-média.

Em entrevista a Ivan Finotti, na Folha Ilustrada do jornal Folha de São

Paulo (Finotti, 04/10/2010), afirma Laerte:

O travestimento é uma questão de gênero, não de sexo. São coisas independentes, autônomas, que nem o executivo e o legislativo. É um erro fazer essa mistura. Ah, está vestido de mulher, então é via-do. Jogou bola, é macho. E eu que gostava de costurar e de jogar bola? O que tenho feito é investigar essa parte de gênero. O que tenho descoberto é que isso é muito arraigado, essa cultura binária, essa divisão do mundo entre mulheres e homens é um dogma muito forte. Não se rompe isso facilmente. Desafiar esses códigos pertur-ba todo o ambiente ao redor de você.

Laerte revolta-se contra a ditadura dos gêneros: “É você sentir que sua liberdade está sendo tolhida, nas possibilidades infinitas que você tem de expressão na vida, ao sair, ao se vestir”.

Impressionou-me sua liberdade na determinação de como viver a sexu-alidade. O binarismo de gênero era questionado radicalmente tanto na sua fala quanto na sua figura.

Foi a partir de uma conversa com Laerte que elaborei o projeto do do-cumentário e, por sugestão de Reinaldo Pinheiro, parceiro e produtor, acabei

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me inscrevendo em um concurso do Ministério da Cultura, onde me classifi-quei em primeiro lugar, conseguindo assim os recursos.

Estava diante de um imenso desafio... Mergulhar nesse mundo das no-vas sexualidades implica abandonar qualquer posição essencialista. O que não é nada fácil. Poder se mover num mundo onde o binarismo de gênero foi rompido implica uma abertura para outras linguagens, e os percursos teóri-cos passam a ser movediços.

O desejo não é domesticável. O sexo é o que irrompe na calmaria, é sempre quebrando o estabelecido que o erotismo acontece.

A própria psicanálise passa a ser questionada com a ruptura do bina-rismo de gênero. A figura da esfinge, homem e mulher, volta a viver. O fato de que Édipo tenha respondido ao enigma não a destruiu para todo sempre. Hoje, a figura da esfinge está presente nos corpos onde o feminino e o mas-culino se misturam, obrigando a repensar as diversas leituras de uma sexua-lidade que se construiria a partir do complexo de Édipo.

Hoje, é no corpo que a revolução acontece. Não por acaso, o estado legisla, patolologiza o desejo quando ele não obedece aos caminhos usuais. Acompanhada por Dudu Bertholini, “construtor de imagens de moda”, fui mergulhando no espetáculo desses corpos que cenografam seu cotidiano, minuto a minuto. A narrativa fílmica deveria respeitar essa construção do cor-po. Várias entrevistas foram cenografadas. E percebo que fui mergulhando no que a sexualidade tem de mais radical: a insubmissão a qualquer padrão preestabelecido e o uso abundante do fetiche. Para despatologizar essas experiências, talvez tenhamos que recorrer a conceitos ainda não estabele-cidos.

Desejo, gozo e prazer – embaralhando conceitos

É tocante o depoimento de Taís Souza, no documentário De gravata

e unha vermelha: “Há mil sexos dentro desse corpo que o Estado diz que é

dono”. A lucidez de Taís é cortante. Fala de um não lugar no mundo, de ser uma aberração, de desafiar os dogmas religiosos. Mais adiante afirma:

“A gente perde toda a libido, toda a libido, entende? Por exemplo, qual a sensação que eu tenho hoje? A sensação de estar junto com meu parceiro, porque se eu tomar hormônio como eu tenho que tomar todos os dias, esse gozo não existe, e na cirurgia não vai existir. Esse tal de prazer, de uma forma ou de outra ele vai aparecer porque eu vou inventar, entendeu? Porque eu tenho prazer em fazer sexo oral, eu tenho prazer em me tocar, eu sinto prazer nos meus seios. Se eu vou gozar? Eu nem sei o que é que é gozo… Eu sei o que é prazer. Esse negócio de ejacular, há muito tempo que eu não sei o

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que é isso, porque eu sou dopada de hormônio. Eu tomo quatro hormônios por dia”.

Surpreende a clareza com que Taís diferencia o gozo do prazer. Braustein (2007) pesquisando a etiologia da palavra gozar, mostra como vem do latim gaudere e que tem uma herança reconhecida no verbo muito castiço “foder” (joder, no original). Só em 1984, a Real Academia Espanhola deu lugar pela primeira vez a essa palavra, fazendo com que descendesse do latim flutuere (fornicar), do qual indubitavelmente deriva a palavra france-sa foutre. Entrou no dicionário, mas precedida de uma advertência insólita: “Voz muito dissonante” (p.13). A seguir mostra a proximidade fonológica em francês entre jouir e jouer. Mas são palavras que têm origem em jocum, que é gracejo ou troça. Braunstein faz esse percurso etimológico depois de frisar que a significação da palavra gozo no dicionário é uma sombra do que se busca psicanaliticamente definir. Afirma ser tarefa impossível, “pois o gozo, sendo do corpo e no corpo é da ordem do inefável… O gozo é o que escorre do discurso” (p.12).

Nos primeiros anos do ensino de Lacan haveria uma referência errática ao gozo, que ainda se centraria em torno do desejo. O centro da reflexão ainda era o desejo:

a relação do desejo com o desejo do Outro e do reconhecimen-to recíproco, dialético, intersubjetivo dos desejos. Um desejo que transcendeu os marcos da necessidade e que somente pode se fazer reconhecer alienando-se no significante, no Outro como lugar do código e da Lei (Braustein, 2007, p.15).

Até 1950, a palavra desejo ocuparia o centro do pensamento lacaniano, criadora do sujeito e do mundo. A grande transformação teórica, para Brauns-tein (2007), ocorre quando Lacan contrapõe ao desejo o gozo.

O gozo aparece assim em uma dupla oposição: por um lado, com relação ao desejo e, por outro, com relação àquele que parece ser seu sinônimo, o prazer. Lacan se nutre com a filosofia do direito de Hegel, na qual aparece

Ge-nuss, o gozo, como algo que é subjetivo, particular, impossível de

comparti-lhar, inacessível ao entendimento e oposto ao desejo que resulta de um reco-nhecimento recíproco de duas consciências. Taís Sousa, no filme Gravata..., em seu grito libertário, fala de como “não sabe o que é o gozo”. Mas, sabe o que é o prazer. Afirma:

Esse tal de prazer, de uma forma ou de outra ele vai aparecer por-que eu vou inventar, entendeu? Porpor-que eu tenho prazer em fazer

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sexo oral, eu tenho prazer em me tocar, eu sinto prazer nos meus seios. Se eu vou gozar? Eu nem sei o que é que é gozo. Eu sei o que é prazer.

Taís nos fala de como o desejo sexual permanece vivo. O prazer ligado ao gozo fálico, ao gozo que tem a ver com o prazer de órgão. Taís não está aqui falando do princípio do prazer, “regulador e homeostático” (Braunstein, 2007, p.23), mas está falando de um gozo fálico.

Foi em 5 de março de 1958, em seu seminário As formações do

inconscien-te, que “Lacan propôs a bipolaridade entre gozo e desejo” (Braustein, 2007, p.18).

Depois, no seminário Mais ainda, Lacan tornaria mais complexa a noção de gozo, pois haveria dois tipos de gozo. Há um gozo correlato do ser, do qual a linguagem nos separa, abrindo-nos por esse corte, o campo de um novo gozo, que não está mais ligado ao ser, mas ao semblante. Este gozo não é o sexual.

Taís Sousa fala não conhecer mais o gozo. Assim como Taís, nós tam-bém nada sabemos desse o gozo. Para esse o gozo não há palavra, ficando ele confinado ao corpo das pulsões.

Um falo/pênis?

Pontalis ([1977]2005) em seu ensaio O inapreensível entre-dois nos mostra, lucidamente, como crítica às feministas, que a ausência de pênis ser igual à castração é uma teoria sexual infantil. Castração não tem nada a ver com presença ou ausência do pênis. O inovador na psicanálise seria ter mostrado a castração no homem. Tanto o homem como a mulher poderiam viver na ilusão de ter o falo. Mas, não há, tanto em Freud como em Lacan uma confusão entre o pênis e o falo? Cito agora, Lacan, no seminário Mais,

ainda ([1972-1973]1982):

É o que demonstra o discurso analítico, no que, para um desses se-res como sexuados, para o homem enquanto que provido do órgão dito fálico – eu disse dito – o sexo corporal, o sexo da mulher – eu disse da mulher embora justamente não exista a mulher, a mulher não é toda – o sexo da mulher não lhe diz nada, a não ser por inter-médio do gozo do corpo (p.15).

Lacan fala no homem como provido do órgão fálico. E a mulher não é toda. Não tem o dito órgão. E o homem não goza do corpo da mulher, pois tem acesso apenas ao gozo do órgão.

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A partir das fórmulas da sexuação, Lacan conclui que, em relação à mulher, “Nada vem limitar o lugar de seu gozo como um gozo absoluto e proibido” (Lacan apud Dor,1992,p.224). Não há o falo para limitar seu gozo, portanto não tem uma limitação ao gozo absoluto e inacessível. Nos homens, o gozo fálico mantém relação com o gozo do Outro que é proibido. Enunciar que a mulher não existe é afirmar que seu gozo é um outro, inapreensível e destino do gozo do Outro. Por isso a relação sexual não existe – trata-se de um real inomeável e sem ordenação possível.

Lacan, quando reflete sobre a transexualidade, vai apontar essa confu-são entre o falo e o pênis. Afirma sobre aquele que, cirurgicamente, tornou-se mulher:

É necessário realmente pagar o preço, o da pequena diferença que passa enganosamente para o real por intermédio do órgão […] um órgão só é instrumento por meio disso em que todo ins-trumento se baseia: que ele é um significante… (Lacan, [1971-1972]2012, p.17).

O transexual faz equivaler pênis e falo. Há uma falha no processo de metaforização, e o simbólico falha. Muitos lacanianos afirmam que todo tran-sexual seria psicótico. Sem inscrição do Nome–do-Pai.

Lacan, conforme citamos anteriormente, muitas vezes falou do homem como provido do dito órgão, fálico. Como ele, muitos de seus decifradores, também confundem falo e pênis. Seriam então todos psicóticos?

Quando Taís, em outro momento do documentário De gravata e unha

vermelha, afirma que fará a cirurgia porque nasceu como se tivesse seis

dedos, é só tirar um para que tudo fique bem, está confundindo falo e pê-nis? Talvez. Basta falar em recusa (Verwerfung) e foraclusão do Nome-do-Pai para explicar tudo isso?

Foi com a guinada na teorização lacaniana, a partir do seminário...

ou pior (Lacan, [1971-1972]2012), quando a questão do real se torna

do-minante, que Lacan, adotou o real como referente, passando então a ser possível pensar que cada um constrói seu gozo. Quando ele fala em

sin-thoma, considera uma nova definição de significante, o significante

passan-do a se referir ao corpo. Nos últimos anos passan-do seu ensino, o nó borromeano passou de três para o nó de quatro aros: real, simbólico, imaginário e o

sinthoma. O sinthoma não pede significação ou interpretação. Sinthoma

é o que nos singulariza, é o que não pode deixar de acontecer. O gozo passa a ser pensado como algo que une os registros do real, simbólico e imaginário.

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Corpos vivos

Sergio Laia (2016) faz uma importante releitura de Lacan ([1960]1998), mostrando como no grafo do desejo, quando Lacan fala do tesouro do

sig-nificante isso implicava uma simultaneidade em que não haveria qualquer

temporalidade. Era o auge do estruturalismo, e a sincronia opunha-se à dia-cronia. Naquele momento, o Outro seria atemporal e a ordem simbólica, nas duas primeiras décadas, marca essa ordem. Laia assinala como, já no grafo do desejo, Lacan vai passar a aplicar à pulsão uma designação que ele antes havia feito ao Outro.

Laia (2016) vai mostrando como Lacan deixa de falar em um tesouro do

significante, passando assim ao tesouro dos significantes, no plural. Não se

trata mais de uma regularidade estabelecida, nem de uma atemporalidade. A simultaneidade que caracteriza o funcionamento do significante não dá conta dos corpos vivos, onde a questão dos investimentos pulsionais está sempre presente. Por isso Lacan passa a falar da pulsão como tesouro dos

signifi-cantes, o plural introduzindo a temporalidade. Antes o Outro era sincrônico e

enumerável. A pulsão, enquanto plural de significantes, associada à diacronia mobiliza-se por acontecimentos de caráter acidental e particular.

Sérgio Laia retoma a definição lacaniana para pulsão: “é o que advém da demanda quando o sujeito aí se desvanece” (Lacan apud Laia, 2016, p.14). Quando o sujeito se desvanece, a demanda também desaparece, e surge a pulsão. O que persiste é o corte, diferenciando a pulsão e a função orgânica que ela habita.

É preciso deixar claro que demanda não é a mesma coisa que pulsão. A pulsão, força constante segundo Freud, não é passível de qualquer desa-parecimento.

Sergio Laia (2016) vai afirmar que:

o corte não é apenas o que separa a pulsão e a função orgânica na qual ela se intromete. […] O corte é o que está presente na própria barra que a ação do significante faz incidir sobre o sujeito, ou seja, é a marca do próprio desvanecimento do sujeito. Assim, o que advém da Demanda quando o sujeito desaparece, diz respeito à pulsão porque nesse modo de a Demanda se impor, já não há mais como o sujeito reconhecer-se nos significantes que aí aparecem, acontece uma es-pécie de disjunção entre identificação e pulsão (Laia, 2016, p.14-15). Assim, Laia fala em uma dessubjetivação, pois o sujeito não encontraria mais os significantes que lhe proporcionavam referência identificatória. A

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pul-são ultrapassaria o sujeito como efeito de significante. É nesse sentido que podemos compreender o fato de o sujeito ser mais falado do que fala.

Então, em todo desejo poderíamos encontrar processos de desidentifi-cação, mesmo naquilo que nos designam como sendo o feminino e o mascu-lino. Mais adiante, a partir de Zaltzman, poderemos entender melhor as ideias propostas acima.

Todos os corpos são bizarros

É também no seminário Mais, ainda ([1972-1973]1982) que Lacan re-fletirá sobre a função e a natureza do amor na relação com o desejo, o gozo e o prazer. Coloca, então, amor e semblante como constituindo um registro específico. O outro registro seria o do gozo e do significante, do qual viemos falando até agora. Ali, Lacan considera que, quando se ama, não se trata de sexo. Segundo Serge Andre “o amor visa o Outro, mas nunca atinge senão um semblante ao qual tenta dar consistência” ([1998]2006, p. 253).

Procurando entender a antinomia entre gozo e desejo, Lacan vai for-mular a noção de amuro. Esse termo é inspirado em um poema de Antoine Tudal: “Entre o homem e o amor, existe a mulher. Entre o homem e a mulher, existe um mundo. Entre o homem e o mundo, existe um muro” (1945).

Citando Lacan no seminário Mais, ainda ([1972-1973]1982):

O amuro é o que aparece em signos bizarros no corpo. São es-ses caracteres sexuais que vêm do além, desse local que temos acreditado podermos ocular no microscópio sob a forma de gér-men [...] É de lá que vem o mais, o em-corpo, o A..inda.É por-tanto falso dizer que há separação do soma e do gérmen, pois, por alojar esse gérmen, o corpo leva seus traços. Há traços no amuro (p.13).

O amuro faz parede para a mortífera e buscada continuidade entre o gozo ligado ao outro simbólico e o outro real que é convocado; esse outro real como corpo no gozo. O amor, o desejo e o gozo encontrariam uma con-tinuidade, o desejo não seria mais barreira contra o gozo. O ser escaparia não fosse o amuro. Assim o amor vai se reduzir ao objeto da fantasia. Se o amor/amuro é alimentado por nossa vida de fantasia, então todos os corpos passam a ser bizarros. O corpo é sempre o corpo imaginado, diria Jacques André (2016), em conferência pronunciada na Sociedade de Psicanálise de São Paulo. Afirma: “A anatomia imaginária é o destino, o sexo psíquico pre-valecerá sempre sobre o sexo anatômico...”

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Afinal, como diz Taís Sousa, “existem mil sexos nesse corpo que o es-tado diz que é dono”.

Afinal, ninguém vive bem com seu sexo...

Essa frase é de Nathalie Zaltzman, no seu ensaio Do sexo oposto, in-serido na coletânea Diferenças sexuais (Ceccarelli, 1999). Citando Zaltzman: “Em termos freudianos, a função sexual e o sexo são, para o Ego, um escân-dalo inaceitável, uma tal ameaça à sua integridade narcísica que ele nada quer saber a seu respeito...” (p.103).

Zaltzman vai acompanhando o percurso freudiano, mostrando como aquilo que inicialmente parecia solidamente estabelecido, a clara diferença entre o feminino e o masculino, no texto Análise terminável e interminável [1937] acaba se transformando em masculino-feminino/recusa do feminino.

A partir da afirmação da inexistência de fantasmas especificamente masculinos ou femininos, a autora conclui que “o inconsciente não adquire distinção alguma estável e decisiva da diferença dos sexos, pelo contrário, a característica dominante da polaridade sexual está em sua plasticidade” (p.105).

A tese principal desse texto, e que, a meu ver, traz bastante luz ao que foi desenvolvido nos outros itens, é que não há, para a relação sexual, qual-quer código preestabelecido: não há inscrição primeira do ato sexual. Obser-va que:

Nos edifícios metapsicológicos de Freud, nenhum lugar, nenhum conceito, nenhuma alusão marcam o lugar do ato sexual na reali-dade psíquica. Diferentemente das pulsões parciais e das configu-rações inconscientes que conotam seu trabalho psíquico, nenhuma formulação teórica vem delimitar uma correspondência, uma deter-minação, uma ponte, um elo entre o ato sexual e a vida psíquica, exceto a teoria, sempre abandonada, apesar de nunca completa-mente, da neurose atual e do trauma, caracterizadas justamente por uma suspensão do trabalho psíquico (Zaltzman, 1999, p.109). Zaltzman fala em uma profunda mudança na economia psíquica, com suspensão das representações separadas: o objeto parcial passa ser o todo:

passa a haver concordância entre todos os estratos do desejo, atua-lizando simultaneamente todas as passagens relativas à identidade de gênero. ...Manter uma diferença segura entre um sexo e o sexo

(21)

oposto demanda um esforço permanente. O ato sexual oferece a ilusão de ter resolvido essa difícil tarefa psíquica, de ter realizado o estabelecimento da diferença sexual (p.112).

Todo ato sexual nos mostra que somos todos gender fuckers em nosso dia a dia. Todo corpo é bizarro.

Para terminar: somos muitos carnavais Eu sou você

Você me dá

Muita confusão e paz Eu sou o sol

Você o mar

Somos muitos carnavais

Vamo viver, vamos ver, vamos ter

Vamos ser, vamos desentender do que não Carnavalizar a vida coração

(Caetano Veloso)

Assim eu analisava esse poema/marcha de carnaval de Caetano Velo-so em um quase manifesto que introduzia meu mestrado O hiato convexo:

literatura e psicanálise, em 1987. No livro que publiquei, com o mesmo nome

(Chnaiderman, 1989) retirei esse manifesto, Por uma psicanálise poética, que agora transcrevo:

O carnaval absoluto. Simultaneidade total. Concretização hermafro-dita, sol e mar, fechado e aberto, dois em um, muitos em um. Vamos desentender do que não=vamos entender do que sim? Des+não , duas negativas=sim. Duas afirmativas=não. Aqui não há simetria possível. Há apenas o ressoar anasalado do não, ar comprimido, chiando e instaurando a possibilidade de olhar para o vazio. Instau-ra-se a ruptura. Coração – não – confusão. Ser é poder debruçar-se sobre o nada (Heidegger), é desentender do que não.

Hoje, passados exatamente trinta anos, como homenagem ao meu que-rido orientador, Haroldo de Campos, translucifero esse meu ensaio nesse poema/marcha de carnaval de Caetano Veloso.

Somos todos gender fuckers, vivendo a necessidade de nos perdermos entre sol e mar. Em meio a muita confusão e pouca paz.

(22)

REFERÊNCIAS

ALLOUCH, J. O sexo do mestre; o erotismo segundo Lacan. Rio de Janeiro: Compa-nhia de Freud, 2010.

ANDRE, S. O que quer uma mulher? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. BRAUNSTEIN, N. Gozo. São Paulo: Escuta, 2007.

CHNAIDERMAN, M. O hiato convexo, literatura e psicanálise. São Paulo: Brasiliense, 1989.

CHNAIDERMAN, M. De gravata e unha vermelha, 84 min, Distribuidora Imovision, 2014.

DOR, J. Introdução à leitura de Lacan, v. 2. Porto Alegre: Artes Médicas,1992. LAIA, S. Um update no conceito de pulsão. (texto inédito a ser publicado em livro da UERJ, 2016).

LACAN, Jacques. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud [1957]. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 496-533.

______. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano [1960]. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 807-842.

______. O seminário, livro 19: ou pior [1971-1972]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012.

______. O seminário, livro 20: Mais, ainda [1972-1973]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1982.

PONTALIS, J.B. O inapreensível entre-dois. In: Entre o sonho e a dor. São Paulo: Idéias & Letras (Coleção Psicanálise Século I), 2005.

ZALTZMAN, N. Do sexo oposto. In: CECCARELLI, P.R Diferenças sexuais. São Pau-lo: ed. Escuta, 1999 (p. 89-120).

Recebido em 30/01/2017 Aceito em 21/07/2017 Revisado por Maria Ângela Bulhões

(23)

TEXTOS

Resumo: Este artigo apresenta questões relativas a sujeitos cujos corpos são

percebidos como errados, seja no gênero que habitam, seja no gênero que pre-tendem habitar. O texto questiona as teorias de diferenças entre os sexos bem como as intervenções cirúrgicas no processo de encontro com o outro gênero desejado.

Palavras-chave: transgênero, sexualidade, corpo, transição. WHEN THE BODY IS AN ERROR!

Abstract: This article presents questions concerning subjects whose bodies are

perceived as wrong in the gender they inhabit, or in the gender they intend to inha-bit. The text questions the theories of differences between the sexes as well as the surgical interventions in the process of identifying with another gender.

Keyswords: transgender, sexuality, body, transition.

QUANDO O CORPO

É UM ERRO!

1

Eliana dos Reis-Betancourt2

1 Trabalho apresentado no Congresso Internacional da APPOA – Corpo: ficção, saber, verdade,

novembro de 2015, em Porto Alegre.

2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Analista-membro

da Association Lacaniènne Internationale (ALI); Doutora em Estudos sobre violência (Boston Graduate School of Psychoanalisys); Autora do livro Prostituição: o eterno feminino (Editora Es-cuta, 2005); Clinica em Nova Iorque. E-mail: eliana.drb@gmail.com

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A

palavra transição pode ser utilizada de várias formas, a que nos interessa neste texto é aquela que designa a passagem de uma posição a outra, depois de várias fases serem ultrapassadas. Algo similar à mudança de fase no video game. Muito trabalho, horas de sono roubadas e uma certa alegria calada que acompanha essa passagem.

A transição que observo há anos é a transição realizada pelos transgê-neros. Exige muito trabalho, muitas fases e um persistente desejo. Transição para transgêneros é o processo de mudança da apresentação de gênero e-ou características sexuais que concordem com o senso interno de identi-dade de gênero do sujeito em questão. Ou seja, a ideia internalizada do que significa ser um homem ou uma mulher.

Para desenvolver a reflexão sobre transição e imagem corporal, vou mencionar três pessoas, três nomes, dois fictícios e escolhidos por mim: Léa e Paula, e o terceiro escolhido por ela, Caytlin Jenner. Não vou me esten-der em nenhum dos casos analiticamente, a ideia é trazê-los apenas como rápidas vinhetas, para que possamos pensar sobre do que se trata quando alguém anuncia:

“há um erro no meu corpo”

Léa foi minha paciente em Nova Iorque durante três anos, depois se desloca em função do trabalho do marido. Esta mulher chega aos 35 anos e diz que já passou por um longa análise no Brasil, mas que precisa retomar, pois algo não está funcionando: “alguém vai apontar algum erro no meu fazer e nada vai dar certo.”

Ela reclama de muitos sintomas no corpo, excesso de suor, excesso de fluidos, necessidade de usar o banheiro inúmeras e inadequadas vezes, ao pon-to de não poder aceitar cerpon-tos trabalhos, pois o acesso ao banheiro era difícil.

O pai de Léa morreu quando ela tinha cinco anos, ela sentia um certo

gozo em dizer para os colegas: “não tenho pai...meu pai morreu…”. A mãe

decidiu que a morte do pai não pertencia aos filhos e, portanto, não deu nenhuma explicação da causa mortis ou mesmo de sua dor pela perda do marido. Léa torna-se muito ligada à mãe e passa a viver sua vida com ela. Segundo a paciente “Até uma certa idade eu compartilhava toda minha vida com minha mãe , detalhes passo a passo, até de minha vida sexual”.

Léa era gordinha e feia, segundo ela, e sofria bulling na escola. “Estou sempre preocupada com o olhar do outro…”, diz.

Ao ter que fazer uma cirurgia para cortar um pouco da gengiva que crescia sobre os dentes, passou por momentos de grande angústia, pois não sabia se havia dito para a dentista cortar o tamanho certo ou não (aqui esta-mos falando de milímetros). E Léa se olhava e se olhava no espelho para ter certeza de que a cirurgia tinha sido bem feita.

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Quando queria cortar o cabelo, passava horas na frente do espelho so-frendo pelo milímetro a menos ou a mais no corte da franja. E se olhava e se olhava no espelho. Já em análise comigo diz: “outro dia fui num show e vi uma mulher cantando e levantando os braços. Imaginei: que maravilha seria se os braços dela fossem amputados… que alívio deve ser…”.

Léa nasceu ao meio dia. No seu aniversário de quatro anos, o pai lhe fez um cartão. Ele desenhou um sol, bem no meio da folha, e abaixo desse sol o pai escreveu: “Meio dia, instante da sombra mais curta, fim do erro mais longo” (Nietzsche, 2000, p.22). Frase que ela insiste em lembrar que o pai traz da obra de Nietzsche. Um ano depois o pai morre. Foi aqui mesmo que Léa se fixou: no fim do erro mais longo e na eterna correção.

Paula, minha primeira paciente transgênera, é quem me educa sobre a importância do espelho durante a transição. Ela passava longas horas a olhar-se no espelho para ter certeza de que a imagem feminina que ali se apresentava lhe pertencia. Paula precisa conhecer e internalizar uma ima-gem de mulher com a qual sempre sonhou, mas que só agora se concreti-zava. É o espelho que possivelmente lhe retornará essa imagem sonhada desde criança. E, mais ainda, o espelho responde a importante pergunta que a maioria dos transgêneros articula “será que eu passo?”. Será que eu passo (como mulher) é uma pergunta frequente no mundo transgênero (de homem para mulher). Ela se olhava constantemente no espelho. Durante as sessões repetia a pergunta: “Dra. Eliana, Do I pass?” Engraçado ela ter elegido o in-glês para perguntar, apesar da análise ocorrer em português, como se fosse uma língua código entre nós.

Paula, que no começo de nosso trabalho era Pedro, contou-me que o momento mais feliz da sua transição foi quando, na fase inicial da ingestão dos hormônios, ela foi ao cinema (aliás, com seus pais) e pela primeira vez chorou assistindo a um filme romântico. Nesse momento ela pensou: “agora sim estou sendo quem eu sempre fui: mulher”. O choro chega para essa pa-ciente como um significante do feminino.

Isso, sem dúvida, intriga, pois trabalho com pacientes que ocupam car-gos executivos em Manhattan, para que elas não caiam na armadilha, que algumas crenças machistas produzem, de que as mulheres são “frágeis” e que choram. Em contraponto, Paula diz que finalmente ela está feliz porque chorou… agora sou mulher… A reação dessa paciente suscita a questão: será que ser homem ou mulher é mesmo algo hormonal? Basta empregar-mos hormônios e muda-se de gênero?

Pura ingenuidade, pois como sabemos, a sexualidade é bem mais am-pla do que “ser isso ou ser aquilo”, e que o esquema binário homem-mulher, masculino-feminino está bastante ultrapassado e não dá mais conta das

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vá-rias articulações para as quais o desejo humano abriu suas portas. Temos um trabalho de que na verdade a cultura sempre deu conta, o de encontrarmos palavras para o que nos espera no campo das ditas identificações. Uso ditas identificações, pois não quero estender o texto nessa direção; todavia deixo aberta a dúvida se estamos mesmo falando de identificações.

Explico: em 1921, Freud ([1921]1977) dedica todo capítulo sete de sua obra Psicologia das massas e análise do eu ao tema da identificação, des-crita como a expressão primária de uma ligação afetiva com outra pessoa. Freud propõe três tipos de identificação.

Primeiro, a identificação estabelece a forma original de laço emocional com um objeto; segundo, de maneira regressiva, ela se torna substituto para uma vinculação de objeto libidinal através da introjeção do objeto no eu; e, terceiro, pode surgir sempre que o sujeito descobre em si um traço comum com outra pessoa que não é objeto de suas pulsões sexuais. Como dito aci-ma, deixo essa discussão em aberto com a seguinte pergunta: estaríamos na questão da escolha transgênera tratando de uma identificação como descrita por Freud ou algo novo aqui se compõe?

Creio que a “paciente” psicanálise está com sérias questões sexuais para serem tratadas.

Jacques Lacan no Seminário Mais, ainda ([1972-73]1982), no capítulo Letra de uma carta de almor comenta sobre o meteórico momento do amor cortês e do surgimento da psicanálise:

de modo algum não é isto que arranjará as relações do homem com as mulheres. Ter visto isso era o gênio de Freud. É o salto mais en-graçado da santa farsa da história. A gente podia talvez, enquanto isso dura, ter um lampejozinho de algo concernente ao Outro, na medida em que é com isso que a mulher tem a ver (Lacan [1972-1973]1982, p.116).

Lacan se refere a esse “tempo” entre o amor cortês e a invenção da psicanálise, movido pelo discurso da ciência “que não deve nada aos pressu-postos da alma antiga” (Lacan, 1982, p.115), onde o ser falante passa o tem-po a falar em pura perda. Ainda em relação à pura perda, Lacan, no mesmo seminário, alude ao falar de amor como uma pura perda e ao mesmo tempo uma forma de gozo. Se esse “enquanto isso dura” do qual fala Lacan con-cerne ao tempo que ainda passaremos falando de amor e tendo a coragem de enfrentar o mundo; se em algum momento essa possibilidade de falar do

amor terminar teríamos que ficar atentos para algo da ordem da transição no

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Lacan se pergunta: “Será que o Outro sabe?” (Lacan [1972-1973]1982, p.120)

Proponho também que talvez a mulher (essa mulher da qual fala Lacan) não tenha mais a ver com isso. Transição essa que, talvez, mais uma vez, passará pelo corpo.

O fenômeno do transgenerismo só é possível porque a ciência e a tec-nologia acompanham o desejo de livre escolha que os sujeitos pensam estar vivendo. Estamos sem dúvida perante um momento em que uma nova an-gústia nos espreita: o paradoxo da livre escolha sobre se quero ser homem ou mulher, ou ainda algo outro.

Em 1998, Kate Bornstein publicou My gender workbook: how to become a real man, a real womam, the real you or something else entirely3. Portanto,

já possuímos até guias que ensinam como realizar a transição. Agora, brincar com o corpo cirurgicamente não é novidade: põe peito, tira peito, tira barriga, alargamento do pênis, lipoaspiração, e assim por diante.

Ao que os tempos nos indicam, estamos perante um novo imperativo no que concerne ao corpo e sua significação em termos de determinação de gênero. Importante notar que, em muitas culturas, a existência de outros sexos ou gêneros era e é totalmente assimilada. O grupo hijra já existente no Kama Sutra (historiadores atribuem a composição do Kama Sutra entre 400 a.C. e 200 d.C.), ou seja, desde o começo desses nossos anos. Os hijras são hoje considerados o terceiro gênero (nem homem, nem mulher) inclusive com essa denominação em seus passaportes. Aliás, hijra é uma palavra bonita, pois tem na sua raiz hjr o que significa “saindo de sua tribo”.

Também na mesma lógica conhecemos os two spirits4, nas tribos de nativos-norte americanas, ou seja: uma pessoa que sente que seu corpo si-multaneamente manifesta um espirito masculino e feminino.

Aqui chegamos então ao conhecido caso Bruce, que virou Catlyn Jen-ner. Quando comecei a estudar Caitlyn Jenner, não foi sem uma certa pre-caução sobre o que tinha nisso tudo de estrelismo; foram meses de leitura, e a parte mais difícil foi conhecê-la nos tempos passados. Tive que assistir as Kardashians5. Confesso que foi aborrecido, mas muito instrutivo. Durante horas e horas assisti a um homem enfraquecido, rodeado de mulheres ma-ravilhosas, turbinadas por todas as cirurgias possíveis e imagináveis, ricas,

3 Meu gênero: como se transformar em um verdadeiro homem, numa verdadeira mulher, no verdadeiro você ou inteiramente outra coisa.

4 Dois espíritos.

5 Keeping up with the Kardashian, “reality TV show” americano que foca a vida profissional e pessoal da família Kardashian-Jenner.

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poderosas e lidando com o sexo com tanta liberdade que Fellini se sentiria um pudico. Bruce era quase que um bonequinho no meio daquela família de CEO’s (diretores) do prazer.

Em dois momentos ele foi “descoberto”. Na primeira vez, uma das filhas chega em casa e o surpreende com uma roupa feminina. Em outra situação, uma das Kardashians acha que a irmã está usando suas roupas e coloca uma câmara escondida, descobrindo que é Bruce quem esta usando suas roupas. Nada é falado ou discutido. Para quê? Cada uma estava preocupada apenas com seu sucesso.

Caitlyn, quando iniciou o processo de transição, fez eletrólise durante dois anos sem anestesia, e comentou: “a dor faz parte de ser quem ela é; isso

acontece, essa dor, por eu ser quem sou, então tenho que aguentar a dor”6.

A dor parece um rito de passagem, já bem conhecido por Jenner, tanto para tornar-se campeão olímpico quanto para transformar-se numa exuberante mulher. Ela também diz que, se estivesse no leito de morte e tivesse mantido esse segredo que carrega desde criança, diria “você simplesmente destruiu toda sua vida, você nunca lidou com você mesma”.

Caitlyn não só fez, mas segue fazendo uma das transições mais

espe-taculares. Ela não apenas se transformou mesmo numa mulher linda, que

provoca inveja a qualquer outra mulher, mas também viveu enquanto homem produzindo inveja nos homens. Era um bonitão e medalha de ouro nas olim-píadas de Montreal em 1976, não exclusivamente em um esporte, mas no decatlon. Mesmo assim, como ela mesma diz: “ainda penso que é aquele menino burrinho e disléxico que está por aqui”.

Em algum momento depois das famosas fotos na Vanity Fair ela diz: “Foi a primeira vez que vi uma imagem de mim, de quem eu sou... falei: quer saber, isso vai dar certo! We are going to be okay! Nós estaremos bem.” De que nós, Caitlyn Jenner está falando?

Eu resolvi voltar a textos que não lia há uns 20 anos. Nessa perspectiva, o livro A exceção feminina, de Gérard Pommier propõe: “Uma mulher é o falo de um homem, o centro de seu sonho e o símbolo da pura diferença, na proporção da castração que lhe é atribuída. Os sinais da castração que ela mostra tornam-na desejável” (Pommier, 1987, p.132).

Reallllyyyy? Como dizem as crianças.

6 Todas as citações de Caitlyn Jenner foram retiradas da entrevista publicada por Vanity Fair, julho de 2015.

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Fiquei impressionada com esse antiquado canto de amor, e pensar que escolhemos acreditar nessa ideia por séculos – “os sinais da castração que ela mostra a tornam desejáveis.” Parênteses: recentemente escutei Gérard Pommier em Nova Iorque, e ele apresentou uma leitura muito precisa da obra de Judith Butler; portanto, entendi que concordamos que essa carta de amor às mulheres dizendo que oferecendo sua castração elas terão como troféu o amor, está ultrapassada e deve ser revisitada.

Nesse momento interessa escutar o que está acontecendo no que con-cerne às escolhas sexuais. Entendo que novas articulações teóricas se mos-tram necessárias e como o Lacan, que citei anteriormente, esse “tempo”, aqui vou inserir uma palavra ao lado do tempo, esse tempo dos dois sexos durou o que tinha que durar.

Uma entrevistada no filme de Miriam Chnaiderman (2014), diz: “existem mil sexos dentro desse corpo”. Dentre todas essas transformações ao redor de um reclamar seu gênero como esse ou aquele ou ainda aquele outro, existe uma função a qual o corpo real, biológico está sendo chamado a ocu-par. Ou seja, o lugar, novamente, de determinar o gênero. Enfim, porque na escolha de um desses mil sexos que podem existir dentro de um corpo, as intervenções cirúrgicas estão no comando? Senão no comando, pelo menos na última fase da transição?

Se quisermos mover na direção de algo mais desconhecido das regras já há tanto estabelecidas, poderíamos pensar que alguém poderia se viver como feminina e manter seu pênis. Que alguém poderia se viver como mas-culino e manter seus seios e órgãos de procriação. O significante do gênero estaria, portanto, na linguagem e não determinado pelas mudanças feitas cirurgicamente – vide o documentário Transparent, escrito e dirigido por Jules Rosskam (2005), jogo de palavras entre parent (pai) e o trans, destacando a invisibilidade da parentalidade dos transgêneros na sociedade atual.

O escritor e diretor Rosskam relata e filma a história de 19 transgêneros que transicionaram de mulher para homem e que deram à luz; portanto, não se desfizeram dos seus órgãos de procriação. A busca de uma verdade sobre o gênero que possa ser confirmada pelo corte ou aumento de partes do corpo pode vir a ser eternamente insatisfeita.

Michel Foucault, intrigado com essa demanda de verdade ressalta:

O importante é que o sexo não tenha sido somente objeto de sensa-ção e de prazer, de lei ou de interdisensa-ção, mas também de verdade e falsidade, que a verdade do sexo tenha-se tornado coisa essencial, útil ou perigosa, preciosa ou temida; em suma que o sexo tenha sido constituído em objeto de verdade (Foucault, 1988, p.56).

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Demandamos que o sexo fale a verdade, demandamos que nos diga de nossa verdade, ou ainda, nos anuncie da soterrada verdade sobre nós mes-mos. Demandamos possuir uma verdade através do sexo.

Os transgêneros parecem também buscar a posse de uma verdade que seja falada via o corpo.

Voltarei à expressão possuir uma verdade.

Sigo aqui com duas observações: o momento chamado de transição para um transgênero é de extrema importância, razão pela qual a paciente

Paula sempre me perguntava Do I pass?7. Alguns transgêneros seguem pela

vida transicionando.

Para Winnicot (1958), o objeto transicional não é um objeto interno é uma possessão. Ao mesmo tempo não é (para a criança) um objeto externo. O objeto transicional é a primeira não eu possessão.

Talvez, no encontro com o gênero sempre desejado, aconteça um pro-cesso de transição winnicotiana. É possível que ocorra um compromisso com um novo objeto transicional, ou novo não eu, que possivelmente organizaria a posição desde sempre desejada de pertencer ao outro gênero. Digo possi-velmente, pois podemos sempre questionar se não se trata apenas de uma posse de verdade que apenas imaginamos obter. Uma posse de verdade que falaria da verdade soterrada sob nós mesmos que o sexo poderia imagina-riamente trazer.

Ocorre que também para Léa, caso descrito no começo deste texto, o corte de cabelo perfeito, a gengiva bem cortada e os braços da cantora amputados trariam alguma sorte de correção desse erro no corpo. Trariam alguma sorte de verdade.

Do que se trata quando, para corrigir um erro, eu devo mexer no corpo? Poderíamos pensar que, ao cortar partes erotizadas e erotizáveis do corpo, entramos em acordo com algumas teorias sexuais infantis (entre as quais a de que as meninas tinham um pênis e que lhes foi cortado) e 100 anos de psicanálise falando da maravilhosa e misteriosa castração das mu-lheres. A teoria sexual infantil mais contundente, sendo que, via cortes, posso acolher, pertencer e me sentir no outro sexo.

A sexuação, portanto, passaria por um corte real no corpo. E, por con-seguinte, as dores e lágrimas que a isso acompanham, como fala Caytlin Jenner. Mais ainda, como disse Caitlyn: “vi minha imagem pela primeira vez.

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Quem realmente sou.” Mas não foi só ela quem viu, como um bebê na frente do espelho ela teve milhões de olhos que a espreitavam, admiravam e di-ziam: que linda!

Finalizo propondo que existe uma passagem pelo espelho – Do I pass?

– e um retorno à adolescência, ou seja, momento de transição quando não

sei quem sou, na busca de uma nova e talvez sempre desejada identidade de gênero.

Ane Lebovits, ao finalizar a sessão de fotos com Jenner, diz: “Sinto como se eu tivesse visto o making8 da Caitlyn”. A fotógrafa fez muito mais do que isso, ela foi o olhar atrás da câmara que, como a mãe na frente do espelho, narcisou o corpo do bebê.

Outro dia minha neta, de cinco anos, perguntou para o tio: “Tu vai ser homem para sempre?” Ao que ele, como jovem homem destes tempos, res-pondeu: “provavelmente”.

REFERÊNCIAS

CHNAIDERMAN, M. De gravata e unha vermelha. 84 min, Distribuidora Imovision, Brasil, 2014.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.

FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu (1921). In: ______. Edição

standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de

Ja-neiro: Imago, 1977.

KARDASHIAN-JENNER. Keeping up with te Kardashian. Disponível em: <http://www. imdb.com/title/tt1086761.htm>. Acesso em março de 2015.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: Mais, ainda (1972-1973). Rio de janeiro: Jor-ge Zahar Editor, 1985.

NIETZSCHE W.F. Crepúsculo dos ídolos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. POMMIER, Gérard. A exceção feminina, os impasses do gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda., 1987.

ROSSKAM, J. Transparent. United States, 2005. VANITY FAIR, nº 659, United States, julho de 2015.

WINNICOTT, D.W. Collected Papers: Through Paediatrics to Psycho-Analysis. Transi-tional objects and transiTransi-tional phenomena. London: Tavistock Publications, 1958.

Recebido em 09/05/2017 Aceito em 04/08/2017 Revisado por Clarice Sampaio Roberto

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TEXTOS

Resumo: A clínica permite que se apreenda, de modo bastante claro, a

incidên-cia da divisão subjetiva que separa o sujeito de seu corpo. Tal divisão é consisten-te com a manuconsisten-tenção de um locus de gozo que resisconsisten-te à dialética da demanda e do desejo. Neste trabalho, partimos de um extrato clínico e do filme Nome próprio para abordar essas questões e sua relação com o feminino e alíngua materna. No trabalho da transferência situamos a possibilidade de um novo enlace pulsional que produza uma escrita do gozo feminino, o que se traduz na construção de um estilo.

Palavras-chave: psicanálise, corpo, escrita, estilo, feminino. FEMININE BODY: A MATTER OF STYLE

Abstract: The clinic allows to understand, quite clearly, the incidence of the

sub-jective division that separates the subject from his body. Such division is consistent with the persistence of a place of jouissance that resists to the dialectic of demand and desire. In this work, we start from a clinical extract and the film «Nome propio» to address these issues and their relationship with the femininity and lalangue In the work of the transfer we place the possibility of a new drive link that produces a written of feminine jouissance, which can translate into the construction of a style.

Keywords: Psychoanalysis, body, written, style, femininity.

CORPO FEMININO:

uma questão de estilo

1 Maria Cristina Poli2

1 Trabalho apresentado no Congresso Internacional da APPOA – Corpo: ficção, saber, verdade, novembro de 2015, em Porto Alegre.

2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e Instituto APPOA; Professora associada do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ. Auto-ra dos livros Clínica da Exclusão (casa do psicólogo, 2005; 2014); Feminino/Masculino (Jorge Zahar, 2007); Leituras da clínica, escritas da cultura (Mercado de Letras, 2012). Bolsista produti-vidade do CNPq. E-mail: mccpoli@gmail.com

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O

título deste trabalho comporta, evidentemente, uma provocação: seria o corpo feminino uma simples questão de estilo? Isto é, para se lidar com o corpo, possuí-lo e apresentá-lo como um corpo feminino se trataria em última análise de saber lhe dar um trato estético específico? Esta poderia ser, em uma leitura extremamente simplista, a consequência direta da desnaturaliza-ção dos corpos e da diferença anatômica propostas pela psicanálise. Como se para se fazer um corpo feminino bastasse “montá-lo” (digamos à moda drag) ou performá-lo (numa linguagem mais próxima a teoria queer3).

Claro que ninguém acredita nisso, e mesmo os praticantes das mon-tagens drags ou os teóricos queer da performatividade têm um pensamento bem mais complexo. Por outro lado, no dia a dia, nós, mulheres, sustentamos em parte tais assertivas e dedicamos – algumas mais, outras menos – tempo e esforço ao nosso corpo na própria construção de um estilo que possa ser chamado de feminino.

Neste trabalho, recorrerei a um fragmento clínico e, a partir dele, a um filme que me fizeram pensar sobre algumas destas questões. O tema, como disse, é complexo, mas o que buscarei demonstrar é o percurso que pode levar, em uma análise, do estranho que habita o corpo à aposta na constru-ção de uma escrita, que podemos designar na psicanálise como sendo a construção de um estilo. Trata-se, em termos conceituais lacanianos, do trân-sito entre o objeto mais-de-gozar, que expressa o locus de um gozo do Outro no corpo próprio, ao objeto causa de desejo que instaura um novo endereça-mento pulsional pelo qual um sujeito advém.

O estilo com o qual trabalharemos, portanto, é aquele que Lacan ([1966] 1998) indica como o que situa, para cada sujeito, o objeto a enquanto causa de desejo. Ele (o estilo) marca e designa a direção dada pelo referido objeto (na condição de causa) ao escrever-se como letra (perda de gozo) no lugar mesmo da produção da falta no campo do Outro. Tomando o tema pela viés edípico, poderíamos dizer que se trata do modo pelo qual a letra pulsional, ao constituir um endereço, permite às mulheres a nomeação e apropriação de seu corpo a partir do reconhecimento e subjetivação da castração materna.

3 Referimo-nos aqui ao trabalho de Judith Butler (2003), que toma de Austin e de Derrida a refe-rência à performatividade. Segundo a autora: “Consideremos o gênero, por exemplo, como um estilo corporal, um “ato”, por assim dizer, que tanto é intensional como performativo, onde “per-formativo” sugere uma construção dramática e contingente do sentido.” (p. 198-199). Em nosso trabalho, como dissemos, não exploraremos essas contribuições que consideramos, no entanto, muito interessantes e que esperam da parte dos psicanalistas uma leitura apurada.

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Um corpo-estranho

A clínica permite que se apreenda, de modo bastante claro, a incidência da divisão subjetiva que separa o sujeito de seu corpo. Nesta divisão, no campo das neuroses, a histeria vai apresentar sua queixa na erotização re-cusada do corpo (via de regra enunciado como um “corpo que dói”) enquanto na neurose obsessiva temos um corpo mortificado, habitado pela pulsão de morte, que tende a se expressar enquanto um estrangeiro crítico àquele que o habita.

Esta clivagem entre o sujeito e seu corpo – ou melhor entre o falasser (parlêtre, o que permite sublinhar que é a linguagem que separa o sujeito de seu corpo, o desnatura) e o seu corpo – reproduz aquela outra, bastante su-blinhada por Lacan entre o dito e o dizer. Como profere seu famoso aforismo: “que se diga fica esquecido por trás do que se diz em o que se ouve” (Lacan [1973] 2003, p. 448); frase emblemática da condição de resistência que habi-ta a linguagem e, por consequência, a transferência.

A aproximação entre o recalque que incide sobre o corpo e sobre a posição de enunciação visa sublinhar o lugar do estranho (das Unheimliche, Freud [1919] 1985) e alguns de seus modos de expressão e emudecimento.

O corpo, na psicanálise, é “acontecimento de corpo”4 – como denomina

La-can ([1979] 2001, p. 569) em texto sobre Joyce – ou seja, efeito sintomático da incidência traumática de um corte na alíngua (lalangue) materna. Ou, dito de outro modo, produto da exclusão de um gozo no qual o sujeito se inscre-via (teria se inscrito – futuro do pretérito) como objeto. “Ter um corpo” implica deixar de ser “objeto deste gozo”; objeto este, no entanto, que permanece em alguma medida incrustado sob a pele, promovendo retornos.

Camila – vou chamar assim essa jovem paciente – é acometida desde sua adolescência de um importante sofrimento em relação ao seu corpo e à sua imagem corporal. A entrada na puberdade foi marcada pela certeza de estar acima do peso, ideia que (para além de toda realidade concreta) man-tém presente até hoje, passando por momentos em que reconhece como de anorexia e outros de compulsão alimentar. Este “corpo acima do peso” é uma espécie de certeza subjetiva próxima ao que Lacan designou no semi-nário 11 como tendo a estrutura de uma holófrase: significante que nomeia

4 Na versão brasileira do texto encontramos a expressão “evento corporal” (Lacan [1979] 2003, p. 565) como tradução do original “événement de corps” (Lacan [1979] 2001, p. 569). Optamos, contudo, por “acontecimento de corpo”, por ser a expressão que tem sido consagrada na litera-tura lacaniana.

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e que agrega um saber – S1 e S2 conjugados – sem produzir a queda do objeto (Lacan [1964] 1988). A queda, produzida pela operação de separação – “Pode o outro me perder?” – é o que permitiria ao significante funcionar como representante de um sujeito. Funda-se assim – com a queda do objeto, seu deslizamento ao lugar da produção – a estrutura discursiva denominada discurso do mestre, que estabelece em seu avesso a fantasia inconsciente, inscrevendo a divisão fundadora do sujeito a partir dos significantes que o designam no campo do Outro.

No caso de Camila, o estar “acima do peso”é algo mais próximo a uma injúria que o sujeito dirige a si mesmo, sem diferenciar-se nesta enunciação do lugar de um Outro que goza pelo efeito mortificador que produz. Gozo superegóico que situa no corpo, em um suposto excesso, o lugar no qual o objeto habita – objeto a, no lugar aqui do “mais de gozar” – sem se deixar cair.

No seminário 20 Mais, ainda, Lacan ([1972-73] 1985) trabalha bastante essas questões, sublinhando que o corpo – na medida em que é portador deste objeto mais de gozar – é assexuado. A sexuação do corpo, sua erótica, é efeito da queda do objeto, sua inclusão no circuito da demanda e do desejo como causa de desejo. O que não é dado de saída, posto que implica a ope-ração de castope-ração. Nas meninas, podemos reconhecer a presença do objeto mais de gozar nos traços bizarros que se expressam na puberdade como caracteres sexuais secundários. Estes que, como diz Lacan, “são os da mãe” (Lacan [1972-73] 1985, p. 15).

O que indicamos anteriormente como holófrase poderíamos denominar agora, com os operadores propostos por Lacan neste seminário Mais, ainda, como rastros da presença de alíngua materna (lalangue) que produz ravina-mento no corpo. “Uma mulher – escreve Lacan ainda no texto sobre Joyce – é sintoma de um outro corpo” (Lacan [1979]2003, p. 565), ao que acrescen-tamos: corpo da alíngua materna, da qual é preciso se separar para produzir um corpo próprio.

Há, portanto, no fragmento clínico relatado, a sustentação de “um corpo a dois”, locus da presença do Outro materno no corpo, de seu gozo. “Acima do peso”, ideia obsedante que curto-circuita o jogo pulsional, diz desse ex-cesso.

Ser um nome, ter um corpo

O nome fictício que escolhi para minha paciente se inspira em uma ou-tra, de outra ficção: é a personagem Camila, do filme Nome próprio, de Mu-rilo Salles (2007). O filme retrata a vida de uma jovem mulher que busca na escrita a produção, ao mesmo tempo, de um lugar subjetivo para habitar na

Referências

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