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1.4 A rede urbana, as pequenas cidades e as reflexões teórico-conceituais

1.4.1 As referências conceituais

O conceito de pequenas cidades é daqueles de difícil elaboração. As localidades assim denominadas oferecem elementos para se discutir não só o conceito de pequenas cidades como o próprio conceito de cidade, pois nelas são avaliados os qualificativos que devem compor o limiar entre a cidade e a não-cidade. As pequenas cidades são localidades em que tais requisitos se apresentam, ainda que com patamares mínimos.

As dimensões alcançadas pelas grandes cidades fazem parecer irrelevantes e questionáveis as pequenas cidades, enquanto tal. M as a cidade como fenômeno universal não surge grande. As primeiras cidades eram aglomerações viabilizadas pela produção de excedente alimentar, divisão espacial do trabalho (campo-cidade) e uma estrutura de controle que procurava manter a drenagem de excedentes (SINGER, 1998).

Com o aprofundamento do processo de urbanização, estas condições foram generalizadas e ampliadas. Segundo Singer (1998, p.15), o limite territorial da divisão do trabalho é o tamanho do mercado . E o tamanho do mercado é redefinido pela acessibilidade promovida pelo transporte motorizado, articulando a rede urbana e estabelecendo uma divisão do trabalho no interior da mesma. Há uma disseminação de papéis na rede urbana. Esse desdobramento espacial das atividades amplia as forças produtivas, mas exige um domínio centralizado. É assim que os menores núcleos da rede urbana podem ter seus papéis reduzidos ou modificados. Tanto podem surgir atividades especializadas com um alcance de mercado espacialmente mais amplo, quanto a acessibilidade facilitada a centros urbanos maiores podem reduzir os papéis urbanos das pequenas cidades.

O estudo e a compreensão de pequenas e médias cidades não podem prescindir do entorno espacial, fundamental para compreender a amplitude dos papéis urbanos e a dinâmica regional que realimentam os mesmos. As pequenas cidades e a relação com o campo compõem um primeiro patamar de localidades na rede urbana.

Por outro lado, neste mundo cada vez mais articulado, a realidade urbana deve ser compreendida no seu conjunto e com suas contradições. Ao passo em que se generalizou o processo de urbanização ele foi somando contradições, materializadas de diferentes maneiras. Assim, além do questionamento se são ou não cidades as pequenas aglomerações, interrogações da mesma natureza podem ser feitas quanto às imensas periferias, em geral parte não formal das grandes cidades; os condomínios fechados e o encerramento que eles representam em relação à diversidade social que deveria caracterizar a vida urbana e os loteamentos urbanos dispersos nos entornos metropolitanos. Portanto, são várias as manifestações contraditórias do urbano, sendo as pequenas cidades parte do mesmo processo. Esse questionamento pode ser compreendido pela adoção, ainda que involuntária, de um parâmetro ideal de cidade, que não alcança as expressões concretas do processo. A manutenção do pensamento utópico é outra fonte de indagações sobre as formas e condições humanas da urbanização.

A conceituação das diferentes aglomerações no âmbito da rede urbana é uma tarefa comparativa. A referência a pequenas cidades implica em estabelecer relações com outras. Ao mesmo tempo em que é uma atividade comparativa, deve-se considerar também o caráter variável do fenômeno, pois dimensões que podem caracterizar uma pequena cidade em determinado espaço podem ser consideradas como de cidade média

em outro contexto. Por isso, não é adequado adotar uma tipologia rígida, sendo aconselhável além da flexibilização na classificação, o estabelecimento de áreas comparáveis, ou onde é possível tomar por referência critérios comuns (DESMARAIS, 1984, p. 357).

Para cada área comparável, pode-se buscar um patamar demográfico mínimo para se considerar a existência de uma cidade. Apesar do número de habitantes não ser um elemento seguro para definir a existência de uma cidade, estabelecer um patamar demográfico mínimo serve como ponto de referência, desde que não seja um critério isolado e rígido. Desmarais (1984, p. 356) mostra que, enquanto na França o limite mínimo é de cinco mil habitantes, no Quebec (Canadá) o limite proposto pelo autor é de 2.500 habitantes, em virtude da diferença de densidade demográfica57. W. Santos (1989, p. 23) também sugere o limite de 2.500 habitantes, que pareceu ser um número razoável para a região de Campinas por ele estudada.

Definir um número mínimo para a região em estudo exige levantamentos com esta finalidade específica. Pode-se adotar apenas como um indicativo as últimas cifras mencionadas, deixando esta como uma reflexão inconclusa e apenas sinalizada neste trabalho.

Evidentemente, não basta um número, mas uma situação social em que seja possível consumir. Assim, a existência ou não de uma cidade implica não só em uma aglomeração espacial de pessoas, mas no grau de acessibilidade e demanda destas em uma economia de mercado. A divisão do trabalho, a economia de mercado e a capacidade de consumo são indispensáveis nestas análises.

Uma outra maneira de conceituar os menores núcleos da rede urbana abrange uma classificação baseada no alcance de seus papéis, também comparativa, no âmbito do conjunto urbano. Assim, Santos (1979b) propunha o conceito de cidades locais, ao invés de pequenas cidades. Estas cidades são compreendidas juntamente com outros núcleos da rede urbana: cidades regionais, metrópoles incompletas e metrópoles completas. Tal conceituação remete ao conteúdo das atividades existentes nas cidades e que lhes conferem papéis na divisão espacial do trabalho. É um critério qualitativo e mais adequado para definir estas localidades. Tendo por referência Sorre, Santos (1979b) afirma que existe uma cidade quando há ‘coalescência’ de funções numa aglomeração, isto é, quando há uma divisão do trabalho que garanta o mínimo de complexidade econômica e social.

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De acordo com a bibliografia consultada sobre as pequenas cidades francesas, observa-se a manutenção do limite de cinco mil habitantes para designar uma localidade como pequena cidade (RENARD, 1997, p. 13; LABORIE, 1997, p. 21). Sobre o Canadá, não se encontrou nenhuma referência que permitisse atualizar essa informação.

Se esta complexidade mínima não está presente, de acordo com Santos (1979b, p.70), as localidades são ‘pseudocidades’, ou ‘cidades de subsistência’. São localidades que dependem inteiramente de um só tipo de atividade produtiva. Em geral, de atividades primárias, mas também atividades secundárias, ou terciárias, como as cidades religiosas, universitárias, balneárias, serranas, etc. Ele considera também ‘pseudocidades’ localidades que ficam em zonas de influência industrial, que em geral são cidades-dormitório. Enfim, são pequenas aglomerações que não possuem essa complexidade mínima advinda da divisão social do trabalho. Em suma, não há interdependência funcional suficiente entre atividades.

Nas palavras de Santos, a cidade local é a dimensão mínima a partir da qual as aglomerações deixam de servir aos imperativos da atividade primária para servir às necessidades inadiáveis da população. Elas devem responder às demandas mínimas da população (Santos, 1979a, p. 70- 71).

Esta dimensão mínima pode resultar de um critério demográfico, como o proposto por Desmarais (1984, p. 359), em que uma cidade deve atender às demandas básicas de pelo menos o dobro da população residente na sua área intra-urbana. Ela deixaria de ser considerada pequena, se esta relação fosse de quatro ou cinco vezes superior à tal população. Por isso, uma cidade definida como pequena pelos seus dados demográficos intra-urbanos pode não ser funcionalmente pequena. A definição desta área de influência depende da densidade de núcleos urbanos na região de comparação e do desenvolvimento terciário, como a composição comercial e a animação da cidade. Desta maneira, a área de influência de uma localidade é a medida de sua importância.

São fatores relevantes para atingir o referido limiar: a densidade populacional, com um nível mínimo de renda que deve garantir um patamar mínimo de consumo. Esta situação foi criada na região estudada pela economia cafeeira com a formação do complexo capitalista.

Embora a dimensão dos pequenos centros sugira facilidade no estudo dos mesmos, é preciso cautela, pois há diferenças consideráveis neste patamar da rede urbana. Rochefort (1961) reconheceu essa complexidade e estabeleceu diferenças entre pequenos centros urbanos locais, considerados como aqueles de distribuição de produtos e serviços de uso corrente. Na análise da rede urbana francesa, ele menciona duas

categorias: centros locais de primeira e de segunda ordem. No caso da rede urbana paulista, propôs três categorias: centro local importante (novas ‘bocas de sertão’ que assumiam importância cada vez maior), centros locais comuns, e pequenos centros locais58.

É notável a relevância das atividades terciárias na composição do papel das pequenas cidades. Estudioso destas atividades e da rede urbana, Rochefort (1998) mostra que os papéis urbanos definem-se pelo grau de raridade dos serviços, atrelados ao poder aquisitivo da sociedade local. M as tais atividades podem ser privadas ou públicas. Assim, ao tratar da rede urbana africana, ele fala de cidades ‘enquadrantes’: pequenas cidades que pelos equipamentos de saúde e instrução são, antes de tudo, centros de enquadramento administrativo para o campo vizinho (Rochefort, 1998, p. 109; Desmarais, 1984, p. 359).

Outra referência que destaca as atividades terciárias (administrativas, comerciais, escolares, saúde e outras) é a de Charrie, Genty e Laborde (1992). Eles consideram, ainda, como pequenas cidades, localidades que compensam certa fragilidade com a atividade industrial, papel turístico ou função militar.

Na leitura da rede urbana regional, também há que se considerar a complexidade e relevância do setor terciário para compreender as pequenas cidades que dela fazem parte. No período da economia cafeeira, as pequenas cidades da região correspondiam a localidades centrais, ou cidades locais, com níveis diferenciados de conteúdo e, portanto, de centralidade. Reuniam papéis de centros distributivos de serviços, incluindo o beneficiamento e a comercialização da produção agrícola, atendimento de alguns serviços básicos oficiais e não oficiais, diversão, enfim, garantia o acesso ao consumo básico e organizava a produção no município, além de funcionar como centro administrativo, proporcionando o acesso a instituições essenciais. No transcurso da economia cafeeira, os papéis desempenhados pelas cidades locais estavam consoantes com a população dos espaços circundantes. O grau de urbanização da população era bem menor e a dinâmica urbana estava vinculada a atividades econômicas municipais e regionais que lhe asseguravam centralidade, ou seja, ainda que com pequena população intra-urbana, estas localidades possuíam papéis bem definidos.

Eram numerosas localidades centrais, com vários níveis de complexidade. Algumas alcançavam o papel de cidades locais, enquanto outras mantinham um conjunto menor de atividades e centralidade mais reduzida. Há localidades que deixavam e ainda deixam dúvidas se

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alcançam ou não o limiar mínimo necessário de complexidade para serem consideradas efetivamente como cidades. Por isso, em alguns pontos do trabalho, evitou-se designar genericamente as localidades como cidades, utilizando termos como pequenos centros ou núcleos urbanos.

Em síntese, os papéis locais eram compostos por atividades, como as comerciais, prestação de serviços, administrativas e de organização e recebimento da produção que atendiam a uma população bem mais numerosa do que aquela residente na área considerada urbana. Existiam algumas atividades industriais, como mencionado anteriormente. Ademais, essas pequenas localidades possuíam papel extra-econômico já que funcionavam como ponto de encontro e de convergência das relações sociais.

A acessibilidade física restrita do período é fator substancial para compreender os papéis desempenhados por estas localidades. As articulações eram decorrentes da lógica territorial (CAMAGNI, 1993). M as, esta compreensão só é possível de um olhar atual e que considera as mudanças materiais, assunto a ser retomado no próximo capítulo.

As referências conceituais aqui assinaladas correspondem apenas a um início das reflexões acerca das mesmas. Elas serão retomadas de acordo com o desenvolvimento do trabalho, pois as transformações ocorridas na região modificam significativamente as dinâmicas referentes às pequenas cidades e a relevância e significados das mesmas em cada momento, acrescentando no quarto capítulo reflexões sobre a escala local, mais especificamente sobre o município, dimensão institucional em que estas localidades estão inseridas.

C

APÍTULO

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“O mundo não é só uma coleção de coisas, é também o arranjo das coisas, tocadas pelos projetos dos que nele habitam. O mundo está e não está pronto. [...]. A celeridade das transformações e a imobilidade, ambas nocivas, situam-se nos extremos. Atuamos na guerra conflagrada entre forças opostas.” (Heráclito)

“A burguesia não pode existir sem revolucionar, constantemente, os instrumentos de produção e, desse modo, as relações de produção e, com elas, todas as relações da sociedade. A conservação dos antigos modos de produção de forma inalterada era, pelo contrário, a primeira condição de existência de todas as antigas classes industriais. A revolução constante da produção, os distúrbios ininterruptos de todas as condições sociais, as incertezas e agitações permanentes distinguiram a época burguesa de todas as anteriores. Todas as relações firmes, sólidas, com sua série de preconceitos e opiniões antigas e veneráveis foram varridas, todas as novas tornaram-se antiquadas antes que pudessem ossificar. Tudo o que é sólido derrete-se no ar, tudo o que é sagrado é profanado e os homens são por fim compelidos a enfrentar de modo sensato suas condições reais de vida e suas relações com seus semelhantes.” (Marx)

“Tudo que é sólido derrete-se no ar”. Conhecida frase do manifesto comunista, apropriada para expressar o concreto pensado deste capítulo59. Consiste em uma forma um pouco conclusiva de iniciar, mas é também uma maneira de chamar a atenção para o ritmo e a natureza das dinâmicas ocorridas. Tão rápida quanto a formação socioespacial foi o processo de transformação da região Noroeste do Paraná, desde a década de 1960.

Estas transformações ocorrem em um mundo cada vez mais articulado. Se a economia cafeeira já havia vinculado a região ao circuito capitalista internacional, os processos subseqüentes decorrem de interações mais profundas.

Com a finalidade de sistematizar as idéias deste capítulo, indicam-se dois momentos, ainda que não se reconheçam rupturas entre eles. Um primeiro momento, de intensas transformações, é o da crise da economia cafeeira e o redirecionamento do uso agrícola do solo na região. M as, processos mais recentes, decorrentes da reestruturação do capitalismo, como a constituição de um novo perfil industrial no Paraná, também apresentam implicações direta ou indiretamente no Noroeste paranaense. São momentos de mudanças socialmente conservadoras e que se somam para a leitura da dinâmica atual das pequenas cidades. São assinaladas também transformações mais universais e que podem ajudar a explicar o processo de redefinição da rede urbana.

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Esta frase tornou-se familiar no âmbito acadêmico com a publicação do livro de Berman (1986): Tudo que é sólido desmancha no ar. O autor tem como tema o caráter efêmero que permeia tudo no mundo sob o domínio capitalista e o proveito que se extrai das crises. Interpretação dessa sociedade que possui afinidades com as questões levantadas nessa pesquisa sobre a fugacidade que recai sobre a produção do espaço e/ou seus significados.

Tudo o que parecia sólido na produção do espaço regional converteu-se em incerteza, afetando os que depositaram suas expectativas nos municípios da região e que pretendiam reconhecer nos mesmos seus lugares. As bruscas transformações mostraram a instabilidade na produção do espaço e seus resultados para a sociedade. Esta instabilidade decorre, predominantemente, de fatores exteriores à região, já que as ações de maior peso na definição das transformações são exógenas, porém articuladas a ações da elite dominante em diversas escalas no interior do país e da região. As fontes utilizadas para o desenvolvimento desta parte do trabalho foram levantamentos primários (questionários), secundários (demográfico, estrutura fundiária, investimentos industriais e empregos no Estado do Paraná), além do referencial teórico que subsidia as reflexões. Faz parte desse capítulo uma série de cartogramas, elaborados com base na taxa média de crescimento demográfico anual, por município, de 1960 até 2000. Por meio deles é possível observar a configuração da mesma em cada década, como instantâneos de um processo dinâmico e acelerado.