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1.3 REFLEXÃO E PROCESSO REFLEXIVO

1.3.2 Reflexão-na-ação

Uma das tarefas do professor de línguas é elaborar planejamento de curso, com unidades didáticas. Para realizar essa atividade, sob perspectiva comunicativa11, ele precisa selecionar materiais de acordo com as necessidades e os interesses dos alunos. Por mais que o professor selecione materiais, organize, planeje a aula, uma rotina comum pode produzir um resultado inesperado (SCHÖN, 2000, p. 32). Na perspectiva de Schön (2000), quando um elemento surpresa ocorre, podemos refletir sobre a ação, de maneira retrospectiva, depois da ação e durante a ação. Para este último caso, Schön (2000, p. 32) denomina reflexão-na-ação, ou seja, a reflexão ocorre em um “presente-da-ação”, um período de tempo variável com o contexto, durante o qual ainda se pode interferir na situação em desenvolvimento [...](SCHÖN, 2000, p. 32). De maneira didática, Schön (2000, p. 33) descreve uma sequência de momentos em um processo de reflexão-na-ação:

Conhecer-na-ação é um processo tácito, que se coloca espontaneamente, sem deliberação consciente e que funciona, proporcionando os resulta- dos pretendidos, enquanto a situação estiver dentro dos limites do que aprendemos a tratar como normal. As respostas de rotina produzem uma surpresa – um resultado inesperado, agradável ou desagradável, que não se encaixa nas categorias de nosso conhecer-na-ação. A surpresa leva à reflexão dentro do presente-da-ação. A reflexão é, pelo menos em alguma medida, consciente, ainda que não precise ocorrer por meio de palavras. Para Schön (2000, p. 33), a reflexão-na-ação é uma atividade crítica do conhecer-na- ação, pois pensamos criticamente sobre o pensamento que nos levou a essa situação difícil ou essa oportunidade e podemos, neste processo, reestruturar as estratégias de ação. O que diferencia esse tipo de reflexão de outras é sua imediata significação para a ação.

Ao transpormos essa perspectiva para o ensino de PLE, podemos considerar que o professor também enfrenta elementos surpresa durante a ação e que exigem dele respostas imediatas. Quando ensinamos uma língua não ensinamos somente o sistema linguístico que a faz funcionar. Há aspectos políticos, econômicos, sociais, psicológicos, psicanalíticos, familiares, entre outros. O aspecto cultural12 também tem se sobressaído como forte questão para o ensino de línguas e, especificamente, de português como língua estrangeira. Para Almeida Filho (2011a, p. 105-106), em sala de aula, comumente, num caso, a língua é o foco real, e a cultura é a franja. No outro, a cultura é o cerne, e a língua é o que vem depois dela. Segundo esse autor, língua e cultura ocuparão os mesmos espaços se forem abordadas de acordo com pressupostos que levem em consideração esses dois conceitos como inseparáveis, como, a nosso ver, a teoria 11 Segundo Almeida Filho (2005, p. 36), o ensino fundamentado na abordagem comunicativa é aquele que organiza

as experiências de aprender em termos de atividades relevantes/tarefas de real interesse e/ou necessidade do aluno para que ele se capacite a usar a língua-alvo para realizar ações de verdade na interação com outros falantes usuários dessa língua.

12 Compreendemos cultura como: um padrão de significados incorporados nas formas simbólicas, que inclui ações,

manifestações verbais e objetos significativos de vários tipos, em virtude dos quais os indivíduos comunicam-se entre si e partilham suas experiências, concepções e crenças(GEERTZ, 1973 apud THOMPSON, 2002).

sociocultural. Caso contrário, a cultura aparecerá apenas para ilustrar curiosidades culturais (ALMEIDA FILHO, 2011a, p. 107). Para Kramsch (2009, p. 125), no processo de ensino e aprendizagem de línguas, ainda é muito comum o foco na estrutura gramatical da língua: os professores ensinam a cultura e a língua ou a cultura na língua, mas não a língua enquanto cultura.

Para além do ensino predominantemente estrutural, no tempo-espaço da sala de aula de PLE, ensinamos um pouco o que é, como vive, como sente o brasileiro. Levando em consideração a perspectiva bakhtiniana em relação ao sujeito, podemos considerar que o professor de PLE também não é um ser completo e, portanto, ele é incapaz de, sozinho, ter uma visão do todo que o faz ser sujeito. Nesse sentido, o outro, no caso o aluno estrangeiro, poderá “completá-lo” durante as interações.

Para Da Matta (1986, p. 14), onde quer que haja um brasileiro adulto, existe com ele o Brasil e, no entanto – tal como acontece com as divindades -, será preciso produzir e provocar a sua manifestação para que se possa sentir sua concretude e seu poder. Nessa perspectiva, apontada pelo antropólogo brasileiro, para que o Brasil com B maiúsculo se manifeste, é preciso que ele seja “provocado”. Nesse sentido, podemos considerar a sala de aula de PLE um espaço em que essa manifestação pode ocorrer com mais frequência e intensidade, uma vez que sujeitos de culturas diferentes (professor e aluno estrangeiro) estão “frente a frente” para construírem significados por meio da língua. Reconhecemos que é nessa dinâmica que elementos surpresa, de base cultural, por exemplo, podem ocorrer em sala de aula de PLE, fazendo com que o professor reflita-na-ação para poder construir significados para a questão apresentada. Nesse espaço-tempo de sala de aula, reconhecemos que, por meio da interação, o professor pode ter a oportunidade de (re)construir-se como sujeito, pois é apenas através do olhar de uma outra cultura que a cultura estrangeira se revela mais completa e profundamente(BAKHTIN apud DORNBUSCH,1998, p. 15).

Com base nas discussões sobre reflexão, introduzidas por Schön (2000), elaboramos o quadro a seguir para resumir suas principais ideias em torno dessa temática:

Quadro 4 – Reflexão sob perspectiva de Schön (2000)

Conhecer-na-ação Conhecimentos revelados espontaneamente em nossas ações; conhecimento implícito. Conhecimento-na-ação Tentativa de teorizar, de descrever oconhecer-na-ação. Reflexão-na-ação

Reflexão ocorre em um presente-da-ação em que é possível intervir na situação em desenvolvimento.

Reflexão-sobre-a ação Refletir retrospectivamente depois da ação. Fonte: Próprio autor.

A partir da discussão sobre reflexão, proposta por Schön (2000), podemos considerar que o professor de PLE traz consigo conhecimentos implícitos que podem ser evidenciados espontaneamente na prática (o conhecer-na-ação). Durante a aula, o professor poderá tomar decisões a partir de algum fator “surpresa” como, por exemplo, perguntas inesperadas por parte dos alunos sobre uso de certas expressões no dia a dia (reflexão-na-ação). Depois da ação, o professor pode refletir retrospectivamente sobre o que aconteceu. Compreendemos que essa etapa “solitária” de reflexão sobre si é importante para o desenvolvimento da autonomia do professor. No entanto, é imprescindível que a reflexão se realize também em colaboração com outros professores, por meio de interações significativas.

Alguns estudiosos assinalam que a teoria de Schön (a qual destaca o papel do professor no processo de ensino) pode gerar a supervalorização do professor como indivíduo (PIMENTA, 2006, p. 22). Para essa autora, diversos autores têm apresentado preocupações quanto ao desenvolvimento de um possível “praticismo” daí decorrente, para o qual bastaria a prática para a construção do saber docente; de um possível “individualismo”, fruto de uma reflexão em torno de si própria [...](PIMENTA, 2006, p. 22).

Nesse sentido, reconhecemos que faz parte do processo de reflexão o conhecer-na- ação, o refletir-na-ação e o refletir-sobre-a açãodo professor sobre si mesmo, como também a reflexão colaborativa com outros professores. Para os propósitos desta pesquisa, as práticas dos professores em formação de PLE serão analisadas com base nessa perspectiva de reflexão proposta por Schön (2000).

De acordo com pressupostos freirianos, a formação do professor é um processo per- manente e a reflexão crítica tem de acompanhar esse trabalho constantemente. Segundo Freire (1996, p. 18), é pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática. O próprio discurso teórico, necessário à reflexão crítica, tem de ser de tal modo concreto que quase se confunda com a prática. Nessa perspectiva, é impossível pensar em formação de um educador sem reflexão crítica sobre a prática docente. A concepção de ensino construída sob esse aporte baseia-se no fato de que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção(FREIRE, 1996, p. 12). Podemos pensar a reflexão de modo semelhante: o processo reflexivo tem de ser construído. No entanto, esse processo é complexo, pois demanda preparo teórico-prático para construir espaços discursivos para a produção de conhecimento crítico reflexivo.

Nessa perspectiva, trabalhos de Vieira-Abrahão (2001), Leffa (2001), Zeichner (2008), Kaneko-Marques (2011), Rocha e Gileno (2016), entre outros, ressaltam a importância de desenvolver a prática reflexiva na formação do professor, para que ele possa de maneira autônoma decidir e agir frente aos desafios existentes no complexo contexto de ensino e aprendizagem de línguas.

Sob esse viés reflexivo e sociocultural, a interação é também fator fundamental para a construção de saberes docentes e imprescindível na formação dos professores. É necessário

que haja reflexão não só sobre si mesmo, mas também desenvolvida em conjunto com outros profissionais de modo colaborativo. Nesse espaço reflexivo, a atuação de um par mais experiente pode favorecer a aprendizagem do par menos experiente.

Para exemplificar materiais e recursos nesse âmbito, apresentaremos dois projetos do contexto francês de ensino de línguas com engendramento de prática reflexiva de modo significa- tivo.

1.4 PRÁTICA REFLEXIVA EM AÇÃO: REFLEXÕES SOBRE UM CON-