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A reforma regulatória de 2011-

AS CONCESSÕES DE FERROVIAS NO BRASIL

3. A reforma regulatória de 2011-

A ANTT publicou, em julho de 2011, três resoluções – as 3.694, 3.695 e 3.696 – que alteraram significativamente o mo- delo regulatório do setor ferroviário, até então calcado no Re- gulamento dos Transportes Ferroviários, detalhado no Decreto 1.832/96, na Lei 10.233/01, que instituiu a ANTT, e nos contratos de concessão. As três resoluções determinaram mudanças nas regras tarifárias e de uso da malha, além de estabelecerem um novo regime de metas e controles com um grau bem maior de minúcia, acarretando novas obrigações para as concessionárias.

Nas concessões existentes, a nova regulação estabele- ceu que os serviços de transporte e de infraestrutura – antes realizados de forma integrada – deveriam ser desagregados (unbundled), no sentido de serem comercializados separada- mente, bem como fortaleceu os mecanismos de compartilha- mento da infraestrutura ferroviária, onde esta estivesse sendo utilizada abaixo de sua capacidade plena. Para tal, as resolu-

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ções da ANTT disciplinaram de forma bem mais detalhada o tráfego mútuo e o direito de passagem. De acordo com as no- vas regras, a capacidade ociosa em cada trecho ferroviário de- veria ser disponibilizada para terceiros. Para possibilitar a iden- tificação dessa capacidade, determinou-se que as metas de produção das concessionárias passassem a ser definidas por trecho, em vez de para toda a malha.

Adicionalmente, facilitou-se a entrada no setor de novos transportadores ferroviários de carga, intrinsecamente sujeitos a uma regulação mais branda que os concessionários, por não serem obrigados a prestar serviços universais ou cumprir me- tas de produção e segurança. Em especial, foi aberta a possi- bilidade de que usuários e outras concessionárias induzissem investimentos na rede de terceiros, sendo que o ônus de jus- tificar a recusa em compartilhar ou expandir a infraestrutura foi atribuído à concessionária titular da malha. Por fim, foram fixadas normas para o cálculo das tarifas de compartilhamento.

No ano seguinte, foi feita uma ampla revisão tarifária ba- seada em novas estimativas de custo e na fixação de nova base e taxa de remuneração do capital investido. O resultado foi uma redução generalizada de tarifas, que desconsiderou o equilíbrio econômico-financeiro original do contrato. Insti- tuiu-se, assim, um novo critério de fixação de tetos tarifários, baseado na evolução dos custos e da base de capital medidos a cada cinco anos. Ou seja, a regulação das tarifas passou a se dar por taxa de retorno.

Em agosto de 2012, em meio à reforma no setor, o Gover- no Federal lançou o Programa de Investimento em Logística (PIL), uma lista de projetos de infraestrutura, a maioria a ser concedida a investidores privados. O PIL incluía 12 trechos de vias férreas, somando 10 mil km, que exigiriam investimentos de R$ 91 bilhões, a serem realizados ao longo de 30 anos2.

2 Os 12 trechos eram: os tramos Sul e Norte do Ferroanel de São Paulo, o acesso ao porto de Santos, as ligações de Lucas Verde a Uruaçu, Uruaçu a Corinto e Campos, Rio de Janeiro a Campos e Vitória, Belo Horizonte a Salvador, Salvador a Recife, Estrela d’Oeste a Panorama e Maracaju, Maracaju a Mafra, São Paulo a Mafra e Rio Grande, e Açailândia a Vila do Conde.

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Nas novas concessões, a serem realizadas no âmbito do PIL, a expansão da malha deveria se dar com base em nova modelagem, que previa um sistema de open access, com a se- paração vertical das atividades de operação da infraestrutura e do transporte ferroviário. Mais especificamente, o Governo iria contratar, por meio da Valec, a construção, manutenção e operação da infraestrutura ferroviária de uma concessionária de infraestrutura. A remuneração dessa concessionária seria feita no modelo “take or pay”: a Valec compraria a capacidade integral de transporte da ferrovia, durante todo o período de concessão, com a concessionária sendo remunerada por essa capacidade independentemente do seu uso ou não.

Em um segundo momento, a Valec ofertaria publicamente essa capacidade aos usuários (carga própria) e aos transpor- tadores ferroviários, inclusive às atuais concessionárias ferro- viárias, ficando garantido o direito de passagem dos trens dos diversos atores em todas as malhas. A motivação para esse mo- delo era a expectativa de que a intervenção da Valec pudesse, de um lado, garantir o livre acesso e, de outro, eliminar o risco de demanda – reduzindo, portanto, a taxa de retorno exigida pelos operadores de infraestrutura e, consequentemente, favorecendo a modicidade tarifária no transporte ferroviário de cargas.

A ideia básica, portanto, era transformar a Valec em uma espécie de “mercado administrado”, no qual provedores e usu- ários de infraestrutura ferroviária se “encontrariam”. Apenas que, em vez de se encontrar, as duas pontas desse mercado iriam se relacionar com a Valec. Os fornecedores, vendendo-lhe toda a sua capacidade. Os usuários, comprando capacidade da Valec. Tratar-se-ia, portanto, de uma efetiva desverticalização das operações de infraestrutura e transporte, que iria além da desagregação de serviços (unbundling) que passaria a preva- lecer nas atuais concessões.

O risco de que a gestão desse processo enfrentasse pro- blemas não era pequeno. Primeiramente, os provedores teriam poucos incentivos a fornecer bons serviços, já que não preci-

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sariam se esforçar para vendê-los. Nesse sentido, tratar-se-ia de uma volta ao modelo do século XIX e os resultados não deveriam ser muito distintos. Além disso, esse esquema seria menos transparente e eficiente do que, como se fez no setor elétrico, criar um mercado em que produtores e consumidores efetivamente se encontrem.

Em termos de financiamento, os projetos ferroviários do PIL contariam com empréstimos do BNDES em condições bas- tante favorecidas3. O objetivo era garantir o lucro dos acionistas

mesmo com tarifas – e taxas de retorno dos empreendimentos – relativamente baixas. Ou seja, em vez de o usuário remunerar o operador da infraestrutura, isso seria feito parcialmente pelo contribuinte, via BNDES. Para a concessionária, porém, o risco de que um futuro governo elevasse a TJLP, hoje negativa em termos reais, para, por exemplo, um nível mais próximo à Selic, limitava a atratividade desse mecanismo. Outro ponto que afastou os in- vestidores em infraestrutura era a dependência de sua remune- ração da disponibilidade de recursos líquidos na Valec, dado que as receitas com a venda dos slots para uso da ferrovia pelos ope- radores de transporte não seriam capazes de cobrir inteiramente o pagamento das concessionárias.

O PIL também tinha um problema de origem, pela nature- za dos trechos ferroviários a serem concedidos. Segundo Pom- permayer, Campos Neto e Souza (2012), boa parte dos trechos já estavam concessionados, mas seriam encampados pelo po- der público para recuperação e modernização. Esse processo teria sido facilitado pelas supracitadas resoluções da ANTT, que, ao fixar metas por trecho, evidenciaram a baixa ou nenhu- ma utilização de alguns trechos das atuais concessões. A forma com que as concessionárias foram incentivadas a devolver o direito de exploração desses trechos introduziu uma fonte de atrito e risco político na regulação ferroviária. Por outro lado,

3 Taxa de juros igual à Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP) mais, no máximo, um ponto percentual; amortização em 25 anos, com cinco anos de carência; e grau de alavancagem de 65% a 80%.

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havia um problema de seleção adversa: se esses trechos não interessaram às atuais concessionárias, por que deveriam atrair as novas? Ou por que seria interessante ao setor público subsi- diar sua exploração?

O princípio central implícito nas alterações promovidas pe- las reformas é que a desagregação das atividades de gestão da infraestrutura e de transporte, e o livre acesso à malha por todos os transportadores ferroviários de carga iria aumentar a concorrência e, com isso, derrubar as tarifas. O recurso a esse tipo de separação vertical, diga-se de passagem, é um tema recorrente em setores como telecomunicações e eletricidade, também com o objetivo de introduzir mais competição. Em si, e isoladamente, esse é um objetivo meritório. Mas a competição não é um fim em si; é, antes, um caminho para se estimular a efi- ciência. E nosso entendimento é de que as questões envolvidas na desagregação das operações de infraestrutura e transporte ferroviário, e na instituição de um regime de open access – tra- tadas com mais detalhamento na seção a seguir –, que também afetam a eficiência, não foram satisfatoriamente consideradas na reforma regulatória de 2011-12.