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CAPÍTULO 1: DEBATE SOBRE O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO CHINÊS

1.3 O papel do setor externo e seus condicionantes

1.3.1 Reformas na agricultura

No período anterior às reformas econômicas, o setor agrícola chinês tornou-se, em diversos momentos, o principal obstáculo para a consecução do crescimento econômico. Durante o período do “Grande Salto Adiante” (1958- 1961), a adoção de metas irreais de elevação da produção industrial, sem que fosse acompanhada pelo aumento da produção agrícola, provocou uma devastadora crise alimentar, culminando na morte de dezenas de milhões de chineses.

Outra demonstração quanto à necessidade de reformas na agricultura chinesa ficou evidente na década de 1970, quando as aquisições de alimentos e fertilizantes no exterior alcançaram mais de 20% das importações totais36, o

que contribui para o déficit da balança comercial em 1976 e para o segundo afastamento de Deng Xiaoping do poder decisório37.

No Terceiro Plenário do Congresso do Partido Comunista chinês, realizado em dezembro de 1978, tomou-se a importante decisão de promover reformas no setor agrícola. Na oportunidade, decidiu-se pela elevação dos preços de aquisição pelo Estado de vários produtos agrícolas, bem como a redução das quotas obrigatórias de aquisição de grãos, buscando, com esta medida, conferir maior autonomia aos agricultores para a comercialização dos bens produzidos (LIN, 1992; PERKINS, 1988)38. No entanto, a mesma resolução

condenou explicitamente a agricultura individual, apesar de vários experimentos nesses moldes terem sido adotados em algumas províncias (NAUGHTON, 1996).

36 Para ajudar a pagar essa importação de grãos, a China se via impelida a exportar outros

produtos primários, mesmos que ainda escassos no próprio país, tais como carne, peixe e açúcar, produtos esses sujeitos a rígidos esquemas de racionamento doméstico (WU, 1997).

37 Além disso, colaborou decisivamente para a segunda queda de Deng Xiaoping, em 1976, a

reação dos adeptos da Revolução Cultural às manifestações populares geradas pela morte de Zhou Enlai (1989-1976), que estava na função de premiê desde 1979.

38 Na oportunidade, foram aprovados dois documentos que reafirmavam a organização coletiva

da agricultura: “Decisions of the Central Committee of the Communist Party of China on some

questions concerning the acceleration of agricultural development” e “Regulations on the work of the rural’s people communes”, sendo ambos emitidos sob o nome de Zhongfa (1979), n° 4, de

14 de janeiro de 1979 e distribuídos para os órgãos estatais para discussão e implementação para uso experimental.

Contudo, a iniciativa de dezoito camponeses da vila de Xiaogang no município de Fengyang, situado na província de Anhui, mudou o curso das reformas na agricultura. Em 1978, esses camponeses assinaram um contrato secreto dividindo a terra comunal em parcelas para cada família, daquilo que mais tarde ficou a ser conhecido como “sistema de responsabilidade familiar” (CHINA.ORG.CN, 2008)39. Anteriormente, o governo distribuía de forma

equânime40 o resultado da safra para cada família, o que diminuía o incentivo

individual na busca por melhorias41.

O resultado obtido a partir da introdução da reforma na comunidade foi sem precedentes. A produção em 1979 aumentou para 90 toneladas, seis vezes mais que o ano anterior, o que correspondia à soma das últimas cinco safras. A renda per capita da vila de Xiaogang saltou assim de RMB 22 para RMB 400 (CHINA.ORG.CN, 2008).

Tais feitos não poderiam passar despercebidos pelas autoridades locais, e o acordo entre os 18 camponeses foi descoberto. Porém, a obtenção desses feitos também chegou ao comando do Partido de Pequim, que estava interessado em promover mudanças substantivas na economia (NPR, 2012).

39 Segundo Yan Lihua, um dos signatários do acordo e responsável pela redação do documento,

em razão da péssima safra naquele ano, "The decision was made out of desperation. We divided

up the land to save our lives. If we hadn't, we would have died of hunger. In the case of failure, our leaders were prepared to face death or prison, and other commune members vowed to raise our children until they were 18 years old” (CHINA.ORG.CN, 2008)

40 No regime coletivo, os trabalhadores eram creditados com “work points” para os trabalhos

executados diariamente. Existia grande variação de sistemas em toda a China, sendo que em um deles os pontos a serem ganhos eram definidos previamente antes de cada tarefa. Em outros, os pontos eram atribuídos com base no número de dias trabalhados, e ao final de cada ano cada trabalhador dava a sua própria pontuação, após a avaliação dos seus pares, e assim cada trabalhador era premiado com pontos que variavam de 6 a 10. Esses eram então multiplicados pelos dias efetivamente trabalhados. O objetivo, assim, era que a remuneração refletisse adequadamente a quantidade e qualidade de cada trabalhador. Contudo, em razão da própria natureza da produção agrícola, é extremamente difícil a supervisão do trabalho desempenhado. Em geral, a remuneração dos trabalhadores dependia em grande parte do número de dias trabalhados, e com a distribuição igualitária dos recursos, isso fazia diminuir os incentivos ao trabalho (LIN, 1988).

41 Assim, segundo Yen Jingchang, um dos camponeses que participaram do acordo, “(…) work

hard, don't work hard — everyone gets the same," he says. "So people don't want to work." (NPR,

2012). Na vigência do acordo, “the farmers would drag themselves out into the field only when

the village whistle blew, marking the start of the work day. After the contract, the families went out before dawn” "We all secretly competed (…). Everyone wanted to produce more than the next person." (NPR, 2012).

Assim, ao invés de serem punidos, os camponeses se tornaram referência de sucesso na consecução dos objetivos econômicos.

Em razão do sucesso da iniciativa em Anhui, na Quarta Sessão Plenária, em setembro de 1979, o primeiro documento foi aprovado, concedendo a permissão para a implantação do sistema de responsabilidade pelas autoridades locais (POWELL, 1992, p.7). Essa nova política deveria, porém, ficar restrita a regiões pouco produtivas, como em áreas montanhosas, e muito pobres. Contudo, tal restrição não se mostrou efetiva, e as regiões ricas também passaram a utilizar a nova forma de organização. Diante disso, em 1981 as autoridades centrais oficialmente reconheceram o sistema de responsabilidade como aceito em todo o país. No final de 1983, quase todas as famílias nas áreas rurais da China já utilizavam o novo modelo (LIN, 1988).

Além disso, como forma de incentivar os investimentos no setor, em um contexto em que as terras continuavam sob propriedade estatal, estendeu- se o período de arrendamento para os agricultores, de 5 para 15 anos em 1984 e, posteriormente, para 30 anos, em 1993 (HO, 2001).

Os resultados obtidos, desde então, foram altamente satisfatórios. A produção agrícola chinesa passou de 300 milhões de toneladas, no início dos anos 1980, para 500 milhões em 1996 (WU, 1997). Com isso, atingiu-se o objetivo de assegurar, conforme exposto por Deng Xiaoping, a estabilidade política e social para o curso das reformas42.

Ademais, do ponto de vista econômico, as reformas na agricultura, conforme exposto por Dutta (2005), contribuíram favoravelmente ao desenvolvimento industrial de duas maneiras:

42 Nas palavras de Deng Xiaoping, “We introduced reform and the open policy first in the

economic sphere, beginning with the countryside. Why did we start there? Because that is where 80 per cent of China's population lives. An unstable situation in the countryside would lead to an unstable political situation throughout the country. If the peasants did not shake off poverty, it would mean that China remained poor. Frankly, before the reform the majority of the peasants were extremely poor, hardly able to afford enough food, clothing, shelter and transportation. After the Third Plenary Session of the Eleventh Central Committee, we decided to carry out rural reform, giving more decision-making power to the peasants and the grass-roots units. By so doing we immediately brought their initiative into play, and great changes took place. By diversifying agriculture in accordance with local conditions, the peasants have grown grain and cash crops in places suited to them and have substantially increased the output of both” (DENG, 1987).

Successful reform in the agricultural sector made two substantive contributions to the reform in the manufacturing sector. First, the value- added in the agricultural sector pointed to the productivity gain per unit of labor (N). More was produced by a lesser number of farmers.

Surplus farmers now became available to migrate to the manufacturing sector and eased the labor demand. Secondly,

success of the reform plans in the agricultural sector augmented

farmers’ incomes and they were ready to spend money on consumption of goods and services, produced by the manufacturing sector and offered for sale in the market. Both the

supply and demand levers became features of China’s emerging socialist market economy. (DUTTA, 2005, p. 12)

Com base no exposto, pode-se concluir que as reformas no setor agrícola abriram espaço para o crescimento da economia chinesa, sobretudo no cenário de restrição de divisas na década de 1980. Nos termos de Aglietta (2012, p. 2), “faltava [assim] apenas a abertura externa para estabelecer um regime de crescimento autossustentado”43.