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CAPÍTULO 1: DEBATE SOBRE O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO CHINÊS

1.3 O papel do setor externo e seus condicionantes

1.3.2 O surgimento das TVEs

Outro aspecto do debate refere-se ao papel desempenhado pelo setor estatal no processo de crescimento econômico chinês. Para compreensão do tema, é necessário investigar a emergência, durante os anos 1980, do setor não- estatal, na forma de “empresas de distritos e vilas” (township and village

enterprises – TVEs). Sem tais mudanças, dificilmente as reformas relacionadas

ao setor externo teriam logrado êxito, haja vista que, como será visto adiante, as TVEs contribuíram diretamente para a ampliação das exportações chinesas.

De início, cabe esclarecer que até o final da década de 1970 a atividade privada não era permitida na China, a exemplo das demais economias socialistas do período. Contudo, a partir do advento das reformas econômicas, foi autorizado o surgimento de negócios próprios (gètǐ gōngshāng hù -个体工商 户), que podiam empregar até oito funcionários44 (contando com o proprietário).

43 “Il ne manquait plus que l’ouverture extérieure pour établir un régime de croissance auto-

entretenue” (AGLIETTA, 2012, p. 2).

44 “De acordo com fontes chinesas, este número é inspirado em algumas passagens de O Capital,

Tais empreendimentos não eram considerados, na acepção chinesa, como empresas privadas (sīyíng qǐyè - 私 营 企 业 ), entendidas instituições genuinamente capitalistas.

Apesar disso, tal restrição legal não impedia o funcionamento, de fato, das empresas privadas, que eram comumente registradas como “coletivas”. Assim, durante grande parte da década de 1980, as empresas privadas operavam sob um “véu de informalidade”, cuja identificação de suas reais proporções talvez constitua um problema empírico insolúvel, tendo em vista a falta de veracidade das informações cadastrais obtidas pelas autoridades chinesas no período45. Somente a partir da aprovação de emenda à Constituição

chinesa,46 em 1988, as empresas privadas passaram a ser oficialmente

admitidas.

Na literatura sobre o tema, a emergência do setor privado é geralmente descrita sob a forma das township and village enterprises (TVEs), denominado pelas autoridades chinesas em 1984 em substituição às antigas comunas e brigadas. Como a própria denominação indica, tal categoria refere- se a seu local de estabelecimento e de registro (negócios localizados nas áreas rurais) e não à natureza da propriedade (HUANG, 2008).

Desse modo, as TVEs correspondem à maior parte das empresas surgidas nesse período, e abrangendo diferentes tipos de negócios, desde indústrias artesanais que produzem bens para o consumo estritamente local até fábricas complexas com participação de capital estrangeiro que produzem bens para exportação.

trabalhadores. Mas, de facto, segundo refere Willy Kraus (1991: 30), «é em Friedrich Engels que podemos encontrar a referência a “oito trabalhadores” como sendo o limite da razoabilidade do lucro»” (TRIGO, 2007, p.163).

45 Segundo Trigo (2007), muitas das empresas registradas como coletivas ou municipais eram

privadas. Durante os anos 1990, muitas empresas, ainda que inicialmente fossem detidas pelos governos locais, foram privatizadas.

46 Em 12 de abril de 1988, o art. 11 da Constituição chinesa passou a prever que: “O Estado

permite a existência e o desenvolvimento da economia privada nos limites definidos pela lei. A economia privada constitui o complemento da economia da propriedade pública socialista. O Estado protege os direitos e interesses legítimos da economia privada, exercendo a orientação, a supervisão e a administração sobre a economia privada”.

O debate em relação ao papel do Estado e do Mercado no processo de crescimento econômico chinês nos anos 1980 é permeado pela dificuldade em se classificar as formas híbridas de propriedade – como no caso das TVEs – dentro de definições clássicas de estatal e privado. Em virtude disso e da própria indefinição do poder de interferência estatal nessas empresas, emergiram diferentes visões na literatura acerca das TVEs como maneira de enfatizar o papel do Estado ou do mercado no processo.

De um lado, estão aqueles que enfatizam mais o caráter privado das TVEs, tais como Nee (1996) – para o qual as TVEs devem ser tratadas como

joint ventures informais entre o Estado e a iniciativa privada – e Peng (1992), que

enfatiza o caráter semiprivado devido à autonomia operacional das TVEs. Do outro lado, situam-se os autores cuja ênfase recai sobre o caráter estatal dessa forma híbrida, tais como Walder (1995b) – que as vê como uma forma de propriedade pública não muito diferente das empresas estatais –, Oi (1995) e também Dougherty, Herd e He (2007), cuja visão é de que as TVEs são meras unidades de produção dentro de uma grande corporação com diferentes níveis hierárquicos, comandadas pelos governos locais. Numa posição intermediária, Sachs e Woo (1997) consideram que as TVEs não podem ser vistas dentro de um estereótipo rígido, pois há uma grande variedade de formas em função do tempo e do espaço.

Nessa mesma linha de raciocínio, Field et al. (2006) mostram que existiam três diferentes modelos de TVEs, de acordo com o investimento inicial realizado, estrutura de propriedade, atividade industrial e distribuição de renda e sistema de gerenciamento: 1) modelo do sul de Jiangsu (província localizada na costa central); 2) modelo de Wenzhou (cidade com status de prefeitura, localizada na província de Zhejiang – que faz fronteira com a municipalidade de Xangai); e 3) modelo do Delta do Rio Pérola (localizado em grande parte na província de Guangdong, na costa sul).

No modelo de sul de Jiangsu, as TVEs podiam ter cinco tipos diferentes de estrutura de propriedade e de governança por meio de diferentes arranjos contratuais, que iam desde o sistema de reponsabilidade (zérèn zhì -责 任制), passando por joint ventures com capital estrangeiro e empresas listadas

em bolsas de valores. O elemento comum às diferentes formas era a participação relevante dos governos locais nessas empresas. Devido à proximidade de Xangai, que sediava várias empresas estatais, muitas TVES se instalaram em Jiangsu para atender as encomendas subcontratadas pelas empresas de estatais da municipalidade vizinha. Nesse modelo, os governos locais eram responsáveis pelas operações diárias, ajudando a obter crédito junto aos bancos estatais, acesso a insumos, fornecendo os terrenos para a construção das instalações fabris etc. Desse modo, a região desenvolveu ao longo dos anos 1980 as maiores TVEs sem a participação significativa de capital estrangeiro.

Já no modelo de Wenzhou, as TVEs eram essencialmente empresas privadas sob uma estrutura de capital supostamente “socialista”, sendo necessário apenas o pagamento de taxas para utilizar o nome da empresa estatal. Essa prática era facilitada pelos governos locais, constituindo, assim, uma espécie de proteção “red hat” (dài hóngmàozi - 戴红帽子) conferida pelos governos locais na ausência de amparo legal para o desenvolvimento da iniciativa privada47 (TSAI, 2002; XU e ZHANG, 2009).

Nesse modelo, o governo local era responsável por garantir um ambiente de negócios favorável. Diferentemente dos modelos de Guangdong e de Jiangsu, as TVEs não contavam com participação de capital estrangeiro ou ligações com as empresas estatais. Essa região transformou-se, ao longo do tempo, em um importante cluster da industrial calçadista, com a presença maciça de pequenas e médias empresas.

Já no modelo de Guangdong, a participação dos governos locais e do IDE são forma vitais para o surgimento das TVEs, que passavam a contar com tecnologia estrangeira e fonte adicional de capital para as suas atividades. Neste modelo, os governos locais atuavam ativamente nas TVEs.

Como se pode ver, dependendo de quais os aspectos das TVEs enfatizados por cada autor, haja vista a ambiguidade na definição de propriedade

47 Outra denominação dessa prática era jiajiti (registro falso como empresas coletivas), também

desse setor, pode-se concluir a favor ou não da importância do Estado como impulsionador direto do crescimento econômico logrado.

A relevância do debate está associada ao papel de destaque exercido pelas TVEs como uma das principais propulsoras no crescimento chinês até a metade da década de 1990 (QIAN, 2003; NAUGHTON, 1993). Desde o início dos anos 1980, a participação das TVEs no PIB industrial aumentou rapidamente e alcançou mais de 50% no começo da década de 1990 (LIN et al., 2003).

No entanto, vale ressaltar que é no setor exportador que as TVEs assumem importância para análise nesta dissertação. A Tabela 1 mostra a intensidade da atividade exportadoras das TVEs e a participação associada do IDE em relação ao capital total para os setores associados.

Tabela 1 – Maiores setores exportadores das TVEs em 1995

Fonte: calculado a partir do Terceiro Censo Nacional da Indústria chinesa, de 1995 (apud Fu, 2004).

Como se pode observar, as TVEs atraíram volumes substanciais de IDE para a atividade exportadora, sobretudo nos setores intensivos em mão de obra48. Um exemplo paradigmático é o setor de brinquedos, que com o

deslocamento dessa indústria de Hong Kong para a China Continental

48 Estima-se que, em 1999, a proporção de exportações intensivas em mão de obra tenha

correspondido a 85% das exportações das TVEs (FU, 2004).

Produtos Exportação/produção Valor das exportações

(em mil US$) IDE/ capital total

Brinquedos 70% 579 54%

Computadores 65% 193 54%

Vestuário 54% 3.146 36%

Artigos esportivos 54% 100 39%

Produtos feitos de couro 52% 1.320 41%

Relógios 51% 91 55%

Outros equipamentos elétricos 50% 63 73%

Produtos feitos de pena 47% 243 28%

Chapéu/boné 46% 29 33% Aparelhos eletrônicos 44% 93 67% Produtos de malha 41% 833 33% Calçados 39% 170 32% Sapatos de plástico 39% 61 44% Máquinas de escritório 36% 13 40% Componentes eletrônicos 34% 276 44% Tecidos 22% 4.484 17%

possibilitou a manutenção da competitividade das exportações das firmas subjacentes, fazendo com que 70% da produção do setor fosse destinado ao mercado externo.

A instabilidade política no final da década de 1980 propiciou o maior engajamento das TVEs no mercado externo, em função de o exercício de suas atividades terem impacto negativo sobre as empresas estatais49, que disputam

com as empresas coletivas não só clientes, mas também insumos, colaborando, neste último caso, para impulsionar a inflação doméstica então em trajetória de alta. Além disso, as TVEs somente poderiam angariar empréstimos se estivessem envolvidas na exportação de bens e serviços e na produção de energia no processamento agrícola (ZWEIG, 2002).

Cabe apontar, ainda, que as TVEs surgem como uma solução para o estímulo das exportações, após tentativas de Zhao Ziyang (premiê chinês no período de 1987-89) de tornar as estatais chinesas mais flexíveis para o atendimento da demanda externa. Do antigo slogan “nóng gōng mào” (农工贸) (agricultura, indústria e exportações), que implicava que o excedente de produção nestes setores poderia ser exportado se aceito pelos mercados estrangeiros, passou, a partir de 1985, para “mào gōng nóng”, quando os produtores deveriam estudar o mercado exterior de forma a buscar atendê-lo (ZWEIG, 2002). Wang Jian, pesquisador da Comissão de Planejamento Central, propôs o conceito de “grande círculo” (“dà xúnhuán” - 大循环), no qual as TVEs

importariam insumos e os processariam para a venda nos mercados externos, o que permitiria empregar o excedente de mão de obra. Com as divisas obtidas, seria possível modernizar as empresas estatais (ZWEIG, 2002).

O resultado foi que as exportações das TVEs, que representavam apenas 4,6% das exportações chinesas em 1984-85, passaram a crescer a um ritmo superior ao das exportações totais, e já em 1993 representavam mais de 40% da pauta exportadora do país (ZWEIG, 2002).

49 Para impedir a competição com as empresas estatais, as autoridades chinesas impunham três

princípios (san jiudi) a serem seguidos pelas TVEs: usar recursos locais, processar localmente e comercializar na localidade.

Dessa forma, pode-se afirmar que as reformas institucionais (formais e informais) que possibilitaram a emergência das TVEs foram de suma importância para alavancar o crescimento das exportações. Evidencia-se, assim, a conexão entre as reformas domésticas e o papel do setor externo no crescimento da economia chinesa, com as TVEs e a participação de capital estrangeiro tornando-se peças essenciais para a superação do estrangulamento externo.