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A 9 de Novembro, o infante D. Henrique, juntamente com alguns membros do Conselho régio e procuradores das cidades, elaborou um projecto de regimento para o governo do reino durante a menoridade de D. Afonso V. O infante sempre tivera uma boa relação com a rainha D. Leonor mas, nesta ocasião, a sua principal inquietação era a possível (e muito provável) intervenção dos infantes de Aragão, em Portugal, caso D. Leonor fosse confirmada como a única regente; defendia por isso a participação de D. Pedro na regência214.

O regimento, apresentado às Cortes, dividia-se em seis partes, contemplando questões como a criação do rei, dos infantes e a manutenção da sua Casa; o conselho régio; a fazenda das rendas do reino; a justiça; a guerra e defesa do reino e o governo de Ceuta. Surgia como uma proposta pragmática que tentava extinguir as tensões que dividiam a corte215 propondo uma regência quadripartida entre a rainha, o infante D. Pedro, o conde de Arraiolos e um conselho, composto por 24 membros que exerceriam funções num esquema de rotatividade216. A este Conselho juntar-se-ia, quando necessário, um representante de cada estado.

Seguindo em parte o testamento de D. Duarte, o regimento designava que ficasse ao cuidado da Rainha a criação de D. Afonso V e dos infantes seus irmãos, bem como a administração das rendas e ofícios, devendo, contudo, o duque de Coimbra prestar o seu auxílio sempre que necessário fosse. Ao Infante ficava reservada a defesa do reino e o título de “capitão geral da guerra”. Embora nalgumas situações D. Pedro tivesse de

214 Seguiremos aqui o raciocínio de João Paulo de Oliveira e COSTA, Henrique... cit., cap. 7.1. - «O

apoio a D. Pedro».

215 Aliás o regimento proibia que os infantes, condes e arcebispos entrassem na corte, salvo se chamados

pela rainha com acordo do infante D. Pedro e do conselho. “Regimento para o governo do Reino”, publicado em Colecção de São Lourenço cit., p. 479.

216 Deveriam estar no conselho seis pessoas em simultâneo que serviriam num esquema de rotatividade de

quatro meses, sendo que nos primeiros meses serviriam D. Afonso, conde de Barcelos; D. Fernando de Castro (governador da casa do infante D. Henrique); D. Duarte de Meneses (filho de D. Pedro de Meneses); D. Álvaro Vasques de Almada; Rui Gomes da Silva e o Dr. Rui Fernandes. No segundo turno estariam D. Sancho de Noronha, o futuro conde de Odemira; Álvaro Gonçalves de Ataíde (aio de D. Afonso V e futuro conde de Atouguia); D. Álvaro de Castro (camareiro-mor e mais tarde conde de Monsanto), Luís Gonçalves, Dr. João do Sem e Nuno Martins da Silveira, que seriam substituídos, num terceiro turno, por D. Fernando de Cascais; D. Fernando de Meneses; Diogo Lopes de Sousa (mordomo- mor de D. Duarte e filho de D. Lopo Dias de Sousa, mestre da Ordem de Cristo); Aires Gomes da Silva (conselheiro de D. João I); Diogo Fernandes de Almeida (vedor da Fazenda de D. Afonso V) e Gonçalo Pereira. Por fim, integrariam o conselho o marechal Vasco Fernandes Coutinho; D. Álvaro Pires de Távora; João Gomes; Pedro Anes Lobato; Nuno Vasques e João Pereira. «Regimento para o governo do Reino», publicado em Colecção de São Lourenço cit., pp. 486-488. O regimento diz que cada grupo serviria no Conselho durante quatro meses, mas sendo quatro os giros de conselheiros supomos que seja erro de redacção e que cada turno serviria três meses, completando assim um ano.

consultar a opinião da Rainha e do Conselho era a ele, enquanto capitão da guerra, que caberia o comando das operações militares. O Conselho régio ficaria com a gestão da Fazenda cuja execução passaria pelos vedores da Fazenda, com excepção de tudo o que dissesse respeito à Casa do Rei, cuja responsabilidade era de D. Leonor. O conde de Arraiolos ficaria como regente, tendo a seu cargo a justiça. Poderia, entre outras coisas, atribuir rendas para o pagamento dos desembargadores, corregedor e meirinho da corte. Tinha, todavia, algumas limitações que requeriam o acordo da Rainha e do duque de Coimbra: perdão em caso de pena de morte ou talhamento de membro, confiscação de terras, penas superiores a cinco mil reais, qualquer caso envolvendo um fidalgo que possuísse mais de quinze lanças, degredo do Reino de fidalgos com mais de cinco lanças, etc.

A praça de Ceuta deveria ser governada “per o conselho com autoriadade da reinha e accordo do ifante Dom Pedro e se per aas cortes for acordado algũa boa maneira per que se possa rejer melhor do que se ata'aqui rejeo e com mais proveito e menos carrego do regno que se de aa exucoçom”217.

As Cortes deveriam reunir anualmente em Lisboa ou em Santarém caso houvesse peste na capital do Reino, com um número restrito de participantes: os regentes, os infantes, condes, arcebispos, os vinte e quatro membros do Conselho régio, o prior do Hospital, dois bispos e dois cabidos, cinco fidalgos que representassem as comarcas do Reino: Entre-Douro-e-Minho, Trás-os-Montes, Estremadura, Beira, Alentejo e Algarve; e dois homens-bons de Lisboa, Porto, Coimbra e Évora.

No fundo, o que o regimento previa era que D. Afonso V fosse declarado maior de idade e apto para assumir plenipotenciariamente o trono no dia em que cumprisse catorze anos. Até lá o poder seria desempenhado por uma regência quadripartida constituída por D. Leonor, o infante D. Pedro, um Conselho rotativo e o conde de Arraiolos, conhecido por ser o mais moderado dos Bragança.

Inicialmente D. Leonor rejeitou a proposta henriquina. D. Pedro também não ficou entusiasmado com o regimento, mas terminou dizendo que faria o que D. Henrique achasse melhor. O documento acabaria por ser assinado e jurado pela Rainha, infantes D. Pedro e D. Henrique, condes de Ourém, Barcelos e Arraiolos e alguns

concelhos218. Transcrevemos aqui o juramento de D. Fernando: “Item o conde d'Arrayollos disse que jurava de leixar o regimento do regno a el rey seu senhor ao tempo contheudo no dicto capitollo a todo seu lial poder quanto em elle fosse e como de dereito devia de fazer e como entom emtendesse que era serviço de Deus. O Conde”219.

Tentando precaver a corte das inúmeras intrigas que prejudicavam a estabilidade do reino, este regimento previa que “em a corte não entrem os ifantes e condes e arcebispos salvante ao tempo das cortes que todos viiram e esso mesmo os do conselho se nom teverem razom ligitima com que se scusem”220. Apenas poderiam vir à corte se fossem chamados pela Rainha e havendo acordo do infante D. Pedro e do Conselho.

218 “Este importante documento, lavrado em papel de trapo e não em pergaminho como seria de esperar

para acto de tão magno significado nos destinos de Portugal e da família real, sobreviveu até aos nossos dias. Rico tanto pelo teor do seu texto, quanto pelo número e diversidade de assinaturas autografadas que apresenta nos seus fólios”, Saúl António GOMES, D. Afonso V... cit., p. 47.

219 «Regimento para o governo do Reino» cit., p. 501. 220 Idem, p. 478.

3.1.1 - Os tumultos de Lisboa

Após as cortes de Torres Novas a corte deslocou-se para Lisboa. Segundo Rui de Pina “por ser o anno de mantimentos mui esteril, e aquella comarca mui cara, acordou a Rainha e os Infantes de se irem como foram, com El-Rei para Lisboa, onde, por via do mar com industria e aviamento de bons regedores, se buscou razoado provimento, que deu causa serem hi os mantimentos em menos careza, que em alguma parte do reino”221. A grande parte do ano foi passada em Lisboa. Todavia, a morte da infanta D. Filipa de peste em Março222 obrigou à deslocação do rei e príncipe herdeiro, o infante D. Fernando, para Almada, e da rainha, em final de gravidez, para a Quinta do Monte Olivete. Foi aí que nasceu a infanta D. Joana, futura rainha de Castela, filha póstuma de D. Duarte. Durante a sua estadia aí, que se terá prolongado até finais de Julho ou início de Agosto, a rainha recebeu uma missiva do papa Eugénio IV, pressionando-a para que a cidade de Ceuta não fosse entregue aos muçulmanos em troca da libertação do infante D. Fernando, que se encontrava em cativeiro desde 1437, e também com a notícia da morte do seu irmão mais novo, o infante D. Pedro, durante o cerco de Nápoles223.

O consenso encontrado em Torres Novas não durou muito. De facto, a crise político-militar assolou o reino até meados de 1441. A tensão entre os dois principais governantes, D. Pedro e D. Leonor, agudizou-se dando azo a um clima insurreccional nalgumas cidades. Foi o caso de Lisboa, onde se verificaram tumultos na câmara.

Dado o clima de instabilidade vivido na cidade, a rainha apressou-se a chamar o conde de Arraiolos que exercia, segundo a regência quadripartida, o cargo da justiça. Chegado a Lisboa, em meados de Agosto224, vindo de Loures, o conde deparou-se com a existência de dois partidos, um pela rainha e outro pelo infante, envolvidos nos conflitos urbanos.

A sua vinda a Lisboa, agravada pelo facto de não ter agido imediatamente, provocou grande “alvoroço e desacordo na cidade, e com tanta soltura de palavras

221 Rui de PINA, CDA V, liv. I, cap. XVII, p. 39.

222 A infanta nascida a 28 de Novembro de 1430, tinha 8 anos. Cf. Saúl António GOMES, D. Afonso V...

cit., p. 49 e Humberto Baquero MORENO A Batalha de Alfarrobeira. Antecedentes e Significado

Histórico, 2 volumes, Coimbra, Biblioteca Geral da Universi vol. I p. 27.

223 Saúl António GOMES, D. Afonso V... cit., p. 49.

224 Humberto Baquero MORENO, A Batalha de Alfarrobeira... cit., vol. I, p. 31. O autor refere que o

conde terá chegado a Lisboa por volta do dia 15 de Agosto, baseando-se numa carta outorgada pelo infante D. Pedro nesta data dando a D. Fernando autorização para mandar reparar os muros, torres, barreiras e canas das suas vilas (ANTT, Chancelaria de D. Afonso V, liv. 19, fl. 76).

dehonestas e mostranças de desobediência”225. O conde não sabia que medidas adoptar. Se, por um lado, os defensores da rainha achavam que com a sua chegada seriam favorecidos, por outro, os apoiantes dos infantes D. Pedro e D. João temiam que isso fosse verdade e os conflitos agravaram-se226. Segundo o cronista Gaspar Dias de Landim, o conde mandou colocar editais em diversos locais públicos nos quais avisava que estavam proibidos os ajuntamentos públicos (ou secretos), e quem não cumprisse estava sujeito à pena de morte ou a perda da sua fazenda. Quem tivesse queixas e agravos deveria dirigir-se directamente a ele, que asseguraria o cumprimento da justiça227. D. Fernando mostrou-se incapaz de assegurar a ordem pública e o cumprimento da justiça apenas com as suas forças. Optou então por tentar resolver a situação com sermões e pregações de palavras brandas e de boa consciência, realizados em locais públicos, apelando à acalmia da cidade228. Para essa tarefa o conde de Arraiolos convocou Frei Vasco de Lagoa, religioso próximo de D. Leonor que, não seguindo as expressas recomendações de D. Fernando, repreendeu severamente o povo de Lisboa, acusando-o de ingratidão e deslealdade para com a sua rainha. A solução apresentada foi, por isso, desastrosa. Descontente com o resultado e não avistando desfecho para os acontecimentos, o conde de Arraiolos achou que o melhor seria deixar Lisboa, pois a sua presença nada mais tinha feito do que agravar a situação.

Apesar de D. Leonor ter reiterado o seu desejo de paz, entre os infantes Pedro e D. João crescia a ideia de que uma intervenção dos infantes de Aragão em auxílio da irmã estaria iminente.

No final desse ano realizar-se-iam cortes em Lisboa; a rainha, sentindo-se ameaçada, notificara os fidalgos seus apoiantes para que viessem às cortes armados e acompanhados do seu séquito, contrariando assim o que havia sido designado no acordo de Torres Novas. Apesar do sigilo da notificação, o infante D. Pedro foi alertado para esta situação e encarregou o conde de Arraiolos de fazer sentir o seu descontentamento a D. Leonor229.

225 Rui de PINA, CDA V, liv. I, cap. XXV, p. 51 226 Idem, Ibidem, cap. XXV, pp. 51-52.

227 Gaspar Dias de LANDIM, O infante D. Pedro – Chronica Inédita, Lisboa, Bibliotheca de Clássicos

Portuguezes, 1983, vol. I, cap. XVII, p. 75.

228 Rui de PINA, CDA V, liv. I, cap. XXV, p. 52.

229 Humberto Baquero MORENO, A Batalha de Alfarrobeira... cit., vol. I, p. 32; Rui de PINA, cap.

Em Setembro, tendo em conta esta situação, a câmara de Lisboa, informou D. Pedro de que havia aprovado uma proposta para que a regência lhe fosse entregue em exclusivo230.

230 João Paulo Oliveira e COSTA, Henrique...cit., cap. 7.1. - «O apoio a D. Pedro». Segundo o autor, o

infante D. Henrique expressou de imediato o apoio ao irmão. Contudo, D. Henrique, grande defensor das instituições, mostrou-se desagradado pela forma como a situação estava a ser conduzida; só as cortes tinham autoridade para terminar a regência quadripartida.