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Regionalismo na Colômbia e “ternarismos” de gênero na educação musical

Ao versar sobre a música e educação musical de Quibdó y Tadó, região do estado de Chocó, na Colômbia, Cuartas (2012) mostra as especificidades do local e constitui uma estratégia de evidenciação tangível à superação dos padrões de gênero que os contextos musicais desta região trazem em sua produção. Apesar disso, torna-se indispensável analisar em quais medidas tais dados podem ser replicados de modos mais expandidos.

Nisto, relacionando regionalidade, educação musical e gênero, dialogando com Green (1997), Cuartas (2012, p. 170) coloca “la música como un proceso por el cual se

construye cultura, sociedad y identidad, y para el caso de la música quibdoseña se construye en un processo palpable y vertiginoso que se inserta de acuerdo a los espacios y escenarios en los que se reproduce”.

Nestes moldes, o regionalismo de Cuartas não se desprende de uma intersecção, tanto que a égide na qual ele é analisado se ampara em um diálogo teórico voltado para o velho continente.

Neste recorte sociológico, a autora traz que “es necesario abordar este tema desde

perspectivas teóricas como la etnomusicología y los estudios de género, que permiten repensar la música desde un ejercicio de construcción sociocultural y un espacio de juegos de poder”,

evidenciando assim, uma miríade de áreas que são acionadas em sua análise (CUARTAS, 2012, p. 169).

Ao evidenciar o desafio amplo no qual as diversas áreas de conhecimento são colocadas para explicitar como o gênero é fator importante dentro do contexto da educação musical de determinados munícipios colombianos, repete-se aqui também uma recorrente amplitude interdisciplinar comum às demais publicações.

A nosso ver, isto está se dando porque, mutuamente: 1) esta é uma estratégia de produção de conhecimento que se coloca como interdisciplinar para a superação de limites que uma visão disciplinar apresenta; 2) se pauta no fato de, por esta área ser estritamente “nova” no contexto da educação musical, ela estar se compondo dos pensamentos desenvolvidos em áreas mais tradicionais que, de certo modo, atravessam e dominam esta área, que precisa ainda de uma instauração de si mesma; 3) se os conteúdos musicais “se produzem” multiculturalmente, suas análises, por conseguinte, dão-se de modo interdisciplinar, pois só desta maneira é possível analisar tais fatos.

Focalizando agora, em específico, nas relações de poder que se estabelecem entre os sujeitos em decorrência da genereficação, Cuartas (2012) diz que “en los municipios aquí

estudiados, la música, además de ser ‘expresión cultural’, es una herramienta educativa que fortalece y jerarquiza dinámicas sociales” (Cuartas, 2012, p. 170). Esta distinção, ainda que

somatória, entre expressão cultural e ferramenta educativa, traz uma problemática: a cultura é tomada como parte de uma expressão social maior? Se sim, significa ser “cultura” algo que é próprio da produção musical? Lembrando que esta autora tem seus aparatos teóricos em Lucy Green.

Por dicotomizar cultura e dinâmica social, pode-se inferir que Cuartas (2012) defende que neste contexto a música é uma expressão cultural que fortalece a hierarquia, desta maneira, seu espaço de aprendizagem é observado como instância na qual a educação musical não só tem em si as reiterações dos padrões de gênero, ela mesma é fator de distinção naquilo que produz desigualdade entre homens e mulheres, e ainda, tais particularidades são observadas a partir de uma demanda que faz sentido quando pormenorizada sob a égide da regionalidade.

Nesta justificativa, Cuartas (2012) coloca que a educação musical de homens e mulheres, na Colômbia, é diferente, uma vez que questões relacionadas à colonização espanhola e à escravidão africana trazem demandas específicas. Na região da Colômbia pesquisada, a música foi tomada como principal meio de colonização, assim, instrumentos musicais europeus foram colocados na missão de colonizar o povo de Quibdó y Tadó. E por se tratar de uma região com muito ouro, prata e outros metais, a escravidão também trouxe enorme influência à produção musical. Esta perspectiva mostra a música como ferramenta central no processo de subjugação do povo colombiano.

Em decorrência do domínio da igreja católica sobre a região, “en el ejercicio de

formar y educar musicalmente a la población infantil y juvenil de la ciudad, la participación en dicha banda era intensamente rigurosa. Solo ingresaban quienes pasaban el filtro del padre, quien escogía y decidía sobre la participación en la escuela” (CUARTAS, 2012, p. 176).

A autora mostra que como na igreja as especificidades musicais se constituíram em meios aos estereótipos de gênero, a escola de formação musical levou às crianças uma prática musical reiteradora destes estereótipos em seus “papéis” feminino e masculino. Isto marca explicitamente o lugar musical das meninas, às quais coube a dança; dos meninos considerados afeminados como pertencentes ao canto; e dos meninos masculinos como executores de instrumentos (CUARTAS, 2012).

Em meio a este processo de colonização e música, ocorrem mutuamente as resistências dos homens e das mulheres, uma vez que “todo este conjunto de eventos hicieron

de la vida musical chocoana un espacio para la permanencia de tensiones y resistencias musicales entre hombres y mujeres que participan en la música, y una expresión portadora de cierto progreso cultural” (CUARTAS, 2012, p. 173).

No contexto mais recentes, a igreja ainda proibia que meninas tocassem instrumentos e elas, por sua vez, resistiam à proibição mostrando que possuíam os mesmos atributos qualitativos que os meninos e pressionavam os padres para que eles permitissem que elas também estudassem certos instrumentos (CUARTAS, 2012). Assim, nos contextos atuais, as justificativas das diferenças estão no fato de que:

Con ese ejercicio reflexivo se puede llegar a algunas conclusiones. La primera es que las prácticas de enseñanza musical no pueden verse como ejercicio aislado de socialización de niños y niñas, pues la música juega como espacio de construcción sociocultural. Por ello se debe reflexionar más sobre los programas de educación musical y sobre la forma como se vive la música, para avanzar en la construcción de una sociedad más equitativa que integre eficaz y efectivamente los aportes de las personas (CUARTAS, 2012, p. 180).

De igual modo, as demandas que se instauram na contemporaneidade colombiana não se diferem das apresentadas pelas pesquisas brasileiras. A desigualdade persiste e é sobre o olhar etnológico que nelas se enxergam possibilidades de mudança, uma vez que dele mesmo surgiu o panorama desigual que vigora ainda hoje.

Cuartas (2012) afirma que há ainda muito trabalho a ser feito para a participação ativa de meninas e jovens nos espaços de educação musical de Quibdó e Tadó, e que mesmo diante das vontades dos professores, o que se vê no cotidiano é a concepção da música como uma atividade masculina – uma vez que a força física ainda é tomada para justificar tais padrões, pois se entende que os homens tocam os instrumentos em decorrência desta especificidade corporal. Havendo assim um grande trabalho para toda a comunidade que é pensar uma expressão cultural em que haja uma conexão verdadeira entre o que homens e mulheres conhecem e aprendem, em especial no que diz respeito à contribuição da música à identidade regional.

Retomando o interesse específico desta análise, a perspectiva de Cuartas (2012) traz que, pelo fato de ter sido a música o principal meio de colonização, em decorrência disso, as meninas foram estereotipadamente circunscritas à dança, enquanto os meninos, dentro dos recortes de feminilidade e masculinidade, puderam cantar e tocar instrumentos. Mulheres e homens, jovens e crianças resistiram às imposições colonizadoras, mas de modo geral estes padrões de gênero ainda se mantêm neste contexto regional colombiano.

A partir desta leitura, compreendemos que há uma reiteração do binarismo de gênero, a partir da leitura dos “papéis sexuais”.

Adriana Piscitelli (2009) coloca que “papéis sexuais” vêm de uma ideia antropológica que vigorou a partir dos anos 30, a partir das observações a outros povos, outras culturas, em que se percebeu que homens e mulheres exerciam papéis diferentes das culturas europeias ou norte-americana. Assim, buscava-se compreender como nestes contextos sociais as pessoas exerciam seus “papéis” (papéis sociais). Era algo similar a um ator ou atriz interpretando uma personagem. Os papéis tinham um caráter totalizante atribuídos em decorrência da idade, e também do sexo, daí “papéis sexuais”.

Entretanto, nós supomos que há um “ternarismos” de gênero no que se refere a este caso da educação musical na Colômbia, uma vez que mesmo que a música seja uma instância historicamente binária neste contexto, já que meninos efeminados ocupavam lugares diferentes de meninos masculinos; as meninas, ao reivindicarem ocupar também certos lugares, produziram um rearranjo de categorias, que independem dos papéis, mas sim dos padrões estabelecidos e da forma como as e os sujeitos se articulam.

Fazendo agora uma transposição do pensamento de Butler (2003) sobre “lei universal” que, entre outras coisas, a autora toma para falar sobre tabus do incesto e outros tabus concernentes às práticas sexuais que são concomitantes aos padrões de gênero, o regionalismo de Cuartas (2012) nesta égide butleriana, evidencia o funcionamento desta “lei” – organização, regimento, tabus, modos de ser e de saber genereficados e sexuados.

Afirmar que uma lei é universal não é o mesmo que afirmar que ela opera da mesma maneira em diferentes culturas, ou que determina a vida social de modo unilateral. De fato, atribuir universalidade a uma lei pode implicar simplesmente que ela opera como uma estrutura dominante em cujo interior ocorrem as relações sociais. Afirmar a presença universal de uma lei na vida social não significa, de modo algum, afirmar que ela existe em todos os aspectos da forma social considerada, mais modestamente, isso significa que a lei existe e que opera em algum lugar em todas as formas sociais (BUTLER, 2003, p. 115).

Portanto, as especificidades do regionalismo – dança para as meninas, canto para os meninos efeminados e instrumentos musicais para os meninos masculinos, ou ainda, a música como ferramenta de colonização – apontam para o funcionamento de uma “lei” que se difere, de certo modo, do contexto brasileiro, mas reitera os padrões de gênero, ainda que com diferentes nuances ou funcionamentos, e acabam por produzir desigualdade e dominação.

Tais ressalvas são feitas a fim de explicitar que, ao se focar em demandas de localização como, por exemplo, latinoamericana, os conceitos de gênero, sexo e sexualidade acabam por adquirir sentidos e são entendidos de modos variados, porém, plausíveis de análise crítica, uma vez que tal pesquisa se coloca na função de explicitar como são produzidos tais entendimentos e não somente se ater em valorá-los.