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Regras: dos regulamentos às práticas

5. OS NÚMEROS OFICIAIS DA VIOLÊNCIA ESCOLAR

5.5 REGRAS ESCOLARES

5.5.1 Regras: dos regulamentos às práticas

Empiricamente constatámos que os alunos conhecem bem os direitos e deveres que constam do regulamento interno de escola42, pois exemplificaram sem problemas algumas regras que o integram. Apesar de não terem participado na sua elaboração, não hesitaram em enunciar sobretudo os seus deveres de alunos. Todas as regras mencionadas estão contempladas no regulamento, seguindo-se alguns exemplos:

Não mastigar chiclas, não levantar da carteia enquanto o professor estiver a falar, levantar o dedo para falar. Não ser mal-educado com os professores e empregados…e com os colegas. (João, aluno, 5.º ano)

Respeitar os professores, funcionários, colegas. Levantar o braço para se falar, para se levantar. Não andar à porrada, não atirar com material. (Daniel, aluno, 6.º ano)

Não usar telemóveis, não usar chapéus, não comer chiclas, levantar o dedo para falar, não andar em pé, não fazer riscos nas mesas, ser pontual. (Tiago, aluno, 7.º ano)

Conheço algumas regras. Não andar à batatada…não agredir os colegas, nem insultar as empregadas, e coisas assim. (Tomás, aluno, 5.º ano)

42 O regulamento interno do agrupamento vertical de Miragaia é um documento bastante extenso, de setenta e uma páginas, que pela sua dimensão está apenas disponível nos serviços

As regras que os alunos referiram constar do regulamento interno da escola foram essencialmente as que estavam relacionadas com o comportamento na sala de aula e com as relações que devem estabelecer com colegas de turma, funcionários e professores.

O facto de os alunos terem bem presentes as regras da escola parece estar relacionada com uma medida aplicada com frequência pelos professores nos casos de indisciplina, solicitando-lhes uma cópia das regras que estão no regulamento e que o aluno não cumpriu no contexto de sala de aula. Para além dessa medida, os directores de turma apresentam aos alunos no início do ano lectivo o regulamento interno da escola e é prática habitual serem os alunos mais velhos, dos 8.º e 9.º anos a apresentarem aos novos alunos do 5.º ano o regulamento.

Todavia, o conhecimento do regulamento interno por parte dos pais parece ser diferente, pois metade dos alunos entrevistados (5) afirmou não ter entregue aos pais o regulamento, nem terem conhecimento se os directores de turma o teriam entregue ou mesmo dado a conhecer aos pais o regulamento, já a outra metade dos alunos (5) indicaram que os pais conheciam as regras e que tinham sido eles próprios a levar o regulamento para casa ou os directores de turma a entregar. No entanto, conhecer as regras não significa o cumprimento das mesmas, isto porque uma coisa é conhecer e compreender e outra é cumprir. Veja-se a opinião da Presidente do Conselho Executivo sobre o conhecimento dos alunos a este propósito:

Compreender, compreendem. Se lhe perguntar quais as regras a que tem de obedecer, ele é capaz de lhe dizer todas, só que não cumpre nenhumas. (PCE)

Apesar de afirmarem conhecer as regras explicitadas no regulamento interno, os professores, não avançaram exemplos concretos das mesmas, e um professor considera também que o conhecimento sobre as regras por parte dos professores e funcionários é bem diferente na prática quotidiana.

Tenho de conhecer. Eu agora não tenho presente, tenho sempre a folhinha, por acaso agora não tenho. (Professora, Entrevista n.º 1)

Conheço. Regulamento interno deve ser o documento a seguir ao projecto educativo, ou a par com o projecto educativo deve ser o documento mais importante da escola e nos últimos tempos então tomei conhecimento de que é importantíssimo. (Professora, Entrevista n.º 2)

Conheço, o regulamento interno, é muito bonito só para o papel de resto ninguém o pratica. Vamos voltar ao que mais me diz respeito, ao nível de comportamento dos alunos, posso dizer que 95% dos professores não cumpre e 100% dos funcionários muito menos. Não o fazem cumprir, os alunos são alunos e têm de cumprir ordens de cima, a começar pelos professores, quer dos funcionários que não o fazem cumprir. (Professor, Entrevista n.º 4)

Os funcionários admitiram não conhecer bem o regulamento interno da escola, referindo que apesar de o terem, não o leram. Verifica-se da parte dos funcionários um afastamento relativamente ao conhecimento formal das regras da escola, dando a evidência de uma certa “intuição” para estas questões de relacionamento com os alunos, mas também por acharem que não faz parte das suas funções enquanto funcionários.

Nunca li o regulamento interno da escola, mas há uma certa disciplina. É uma disciplina que não é por imposição, é uma disciplina por diálogo, está a compreender? Não é por imposição: “tens de fazer isto, tens de fazer aquilo!”. (Segurança, Entrevista n.º 1)

Eu tenho um, mas ler mesmo a fundo, não. Mas tenho um e conheço. (Auxiliar, Entrevista n.º 2)

Algumas conheço, mas nunca li nada. (Auxiliar, Entrevista n.º 3)

Dos 10 alunos entrevistados a maioria concorda com as regras estabelecidas e apenas 3 indicaram que não concordavam. Desagrada-lhes sobretudo não ser permitido sair da escola no horário lectivo, não poderem ir à casa de banho no

decorrer das aulas, mas demonstraram especial desagrado relativamente às actividades de substituição, introduzidas no ano lectivo de 2005/06 pela tutela.

Desagrada a maior parte dos alunos ter aulas de substituição, mas isso não são eles que decidem. (…) Não é não gostar, mas é que a gente podia fazer tanta coisa nas aulas de substituição que estamos ali paradas sem fazer nada. (…) Olhe, ouvimos música, às vezes, estudamos. (Mariana, Aluna, 8.º ano)

As substituições. É a pior coisa que há! (…) Porque não tenho aulas ao último tempo, por exemplo, do meio-dia à uma e meia, sou obrigada a ficar aqui na escola enquanto que podia ir para casa ter mais tempo para comer, não! Vai ter de ficar aqui na escola…oh, é podre! Ninguém concorda, nem professores concordam. Há professores que não concordam, até fizeram greve e tudo. (Paula, Aluna, 9.º ano)

Apenas os funcionários dizem concordar com as actividades de substituição, visto que esta mudança lhes permite um acompanhamento de maior proximidade aos alunos nos intervalos do horário escolar. Acabaram os tempos que se designavam de “horas de furo” e que constituíam para os auxiliares de acção educativa momentos de redobrada atenção:

“ para ser sincera é bom, eles não saem da sala e pronto”. (Auxiliar, entrevista n.º 2)

Na opinião de alunos e professores, o modo como os professores aplicam as regras e as fazem cumprir diferem de professor para professor. Apenas dois funcionários referiram que não identificam diferenças. O quadro n.º 14 ilustra as percepções dos entrevistados relativamente a esta questão e evidencia o que Domingues concluiu no seu estudo sobre o controlo disciplinar na escola: “os professores não possuem um quadro de valores morais que guie as suas práticas profissionais, e os alunos são sujeitos a sucessivas e diferentes mundivivências docentes, a diversos quadros morais que valorizam e estimulam comportamentos discentes concretos e, às vezes, contraditórios” (Domingues, 1995:108).

Quadro 14 – Principais diferenças na aplicação das regras

Percepção dos alunos

¾ …para mim há uns que valorizam mais as coisas que os outros sabem ou o comportamento. Alguns professores tomam mais atenção ao comportamento nas aulas… “Já que não sabes isto, portas-te bem e eu vejo se te estás a esforçar ou não.” (Miguel, 6.º ano)

¾ Acho que há professores que deviam de ser mais exigentes, tipo fazem barulho e deviam de vir cá para fora, não perturbar os alunos que querem saber as coisas. (Pedro, 9.º ano)

¾ Alguns aplicam umas e outros aplicam outras. (…) Por exemplo, há um que é de h… prontos, então ele vê a gente na sala a mastigar chicla e não diz nada. Ele é muito mole e os alunos fazem o que querem e o que lhes apetece … (João, 5.º ano)

¾ Maior parte dos professores não deixa ir à casa de banho, mas há sempre um ou outro que deixa sempre. (Mariana, 8.º ano)

¾ Uns são mais exigentes e outros menos. Lá está, uns deixam quebrar as regras e outros não. (Paula, 9.º ano)

Percepção dos Professores

¾ (…) a avaliação de como eu quero que os alunos estejam na sala, às vezes até o que é que eu aguento dos alunos na sala e o que é que o outro aguenta, tudo isso é muito diferente de pessoa para pessoa. (Entrevista n.º 2)

¾ É no geral, quer seja velhos, quer seja novos na idade ou a dar aulas, não querem é chatices com o aluno e preferem é ignorar o aluno, fazer cumprir rigorosamente, nem que tenha de ser pôr o aluno fora da porta, eles não põem e não fazem rigorosamente nada. Ignoram simplesmente. (Entrevista n.º 4)

¾ Isso é outro problema grave com que a escola se debate é que somos todos diferentes, não é? Apesar das regras estarem escritas cada um interpreta-as à sua maneira. (PCE)

Percepção dos funcionários

¾ Há diferenças, sim. Os mais novos que vêm para a escola às vezes assustam-se um bocadinho. …vêm de fora com uma ideia negativa e depois chegam aqui com o pé atrás e retraídos, não é? E confrontam! São muito directos e os miúdos não gostam muito disso e depois acabam por…vêm que não é assim como as pessoas falam, pintam. Depois começam a ver que não, que isto não é nenhum campo selvagem e ficam amicíssimos dos miúdos e os miúdos adoram os professores e acabam por…aqueles que não cedem um bocadinho, acabam por tirar consequências depois, os alunos acabam por não gostar e estar sempre de pé atrás. (Auxiliar, Entrevista n.º 2)

Os alunos vêem essas diferenças na aplicação das regras associadas a características pessoais de cada professor, à autoridade. A questão da idade só foi referida por um aluno e são as raparigas que identificam diferenças com base no

género, por exemplo, uma aluna do 8.º ano diz sentir-se mais compreendida pelos professores ao contrário de uma aluna do 5.º ano, que considera as professoras mais “amáveis”.

Todos os anos tivemos uma professora de educação física e acho que foi mais exigente, meteu mais respeito na sala do que outras professoras, muito mais. (…) Tem a ver com as próprias características do professor. (Pedro, aluno, 9.º ano)

Não é gritos…é assim mandar…são assim com mais autoridade para a pessoa se calar, alguns têm. (Rui, aluno, 6.º ano)

Depende, os homens são mais brutos, as mulheres são mais…conseguem ser mais amáveis connosco. (Ana, aluna, 5.º ano)

São mais os homens que deixam, parece que nos compreendem mais a nós que as mulheres. (…) Os professores têm uma maneira de ensinar diferente das professoras. (Mariana, aluna, 8.º ano)

Não é ser liberal, é ser exigente e ao mesmo tempo ser também assim simpático, nos conhecer mesmo bem. Há pessoas que são só liberais e nós não gostamos deles, são liberais demais. Não querem saber de nada, dão dão, não dão…a malta também não curte isso. (Paula, aluna, 9.º ano)

Fica patente que os alunos reconhecerem que é preciso disciplina, exigência e alguma rigidez no cumprimento das regras, mas ao mesmo tempo desejam alguma proximidade com o professor, que os compreenda e não esteja só orientado para o cumprimento das regras.

A opinião dos docentes relativamente às diferenças na aplicação das regras não está na idade, nem no género, mas na personalidade, na formação e na maior ou menor permissividade do professor.

Mais crítica é a opinião do Presidente da Associação de Pais que salienta que são os docentes que devem dar o exemplo, sobretudo em relação aos atrasos que considera serem a causa de distúrbios no início das aulas:

Vou dar-lhe um exemplo, agora há um intervalo das 10:00h às 10:30h, garanto-lhe que às 10:35 começam os professores a sair daqui, quando chegam à sala de aula já são 10:45, há quinze minutos de bagunça para não dizer outra coisa, de conflitos nos pisos, nos corredores, nas salas de aula. Esta é uma regra básica que tem de vir de cima, que não se aplica. (…) isto acontece todos os dias, sabe o que gera isto? Confusão, barulho e às vezes violência. Eles andam completamente à vontade. (PAP)

As regras não formais, estabelecidas na escola de uma maneira mais ou menos estruturada são interpretações das regras oficiais ou determinações sobre problemas específicos daquela organização escolar (Sampaio, 1999).

As diferenças na aplicação das regras de professor para professor, são bastante evidentes quando se trata de regras como a utilização de boné, de telemóvel ou mastigar “chiclas” na sala de aula.

Não ir para a sala com o boné é uma regra, não se deve entrar, mas também não devemos fazer disso um cavalo de batalha, mantemos logo ali a aula perdida à entrada. Já tive um aluno que foi para casa três dias que se recusou a tirar o boné e o professor entrou em despique com ele, mas aqui quem manda sou eu e foi insultado. Eu, por exemplo, deixo entrar …tem a ver com a indumentária dos miúdos, trazer um boné, porque eles também se queixam: “oh professora se a menina trouxer um lençinho na cabeça a professora não vai tirar o lençinho da cabeça” e não, é uma realidade. Os jogadores, os grandes ídolos deles não andam todos de boné da Nike? O boné tem de dizer com alguma coisa. (Professora, Entrevista n.º 3)

Isto do boné que é uma coisa quase que risível, tem gerado imensos conflitos, porque estes miúdos quase todos usam boné, faz parte da indumentária deles, põem o boné ao contrário e fazem aquelas coisas todas e se um professor ostensivamente lhe diz: “não entras com o boné!” é uma maneira do miúdo dizer: “Não entro? Entro mesmo!” e faz ali um braço de ferro entre ele e o professor que parte normalmente para o mais fraco, que é o aluno que vai ser expulso, não é? Por um conflito que não tem nada de… Não pode estar tudo no regulamento interno como não pode estar tudo nos

de se juntar e debater os problemas da turma, se aquele conflito do boné se põe naquela turma têm mais é que chegar a um acordo. Infelizmente isso não acontece muitas vezes. (PCE)

Ivo Domingues considera que existem infidelidades normativas quando “os actores criam outras regras, não formais e informais, frequentemente dotadas de maior força impositiva” (Domingues, 1995:53). Neste caso, um professor confirma no seu discurso que dez por cento das regras são da sua autoria, o mesmo é dizer que são informais, pois só ele as conhece nesta organização escolar.

Primeiro é o comportamento dos alunos, a maneira de estar e de respeitar tudo e todos, a utilização de telemóveis, de bonés e chiclas na boca, em que o regulamento diz rigorosamente que não se pode praticar e que 90% dos professores deixam praticar, assistido por mim em salas que eu entrei depois de bater e que chego lá dentro e o comportamento é como se estivessem no recreio ou pior ainda. (…) Na minha apresentação de turmas, eu imponho as minhas regras na aula e as minhas regras 90% é cumprir o regulamento interno, 10% são da minha autoria. (Professor, Entrevista n.º 4)

“A escola, enquanto espaço social, tende a reflectir e reproduzir, sobretudo, as normas dos grupos sociais dominantes. Assim, quando os comportamentos individuais e/ou de grupo adoptados, dentro do espaço escolar ou no contexto da sala de aula, divergem das normas socialmente dominantes (e não são compreendidos à luz dos diferentes padrões culturais), há uma elevada possibilidade desses comportamentos serem rotulados de indisciplina, mesmo quando aqueles comportamentos não têm subjacente essa intencionalidade. Algumas dessas condições propiciadoras desse processo são as descontinuidades culturais entre a socialização secundária que ocorre na escola e as socializações primárias dos alunos” (Casa-Nova, Martins e Seabra, 2002:457).

Em suma, tanto professores como alunos evidenciam nos seus discursos um apelo ao bom senso. Para os alunos é importante verem no professor a exigência,

autoridade e o rigor no cumprimento das regras, por outro, desejam que o professor lhes seja próximo, atento às suas necessidades e problemas.

No discurso da maioria dos professores, as regras devem-se cumprir, mas devem ter em consideração as características dos alunos, por exemplo, usar o boné é quase uma questão de identidade para os alunos e não deve ser levada ao extremo pelos seus colegas. Este exemplo, evidencia que os professores nas reuniões de conselho de turma não têm o hábito de discutir as regras que podem suscitar maior conflituosidade, ambiguidade e incerteza e procurarem atenuar as diferenças encontrando formas de comuns de as validar e de as fazer cumprir. Deste modo, não permitem que as regras formais sejam “recriadas”, como refere Burns e Flam (2002) permitem antes que estas assumam o carácter de “regras informais”, adoptadas em função das situações sem nunca terem sido pensadas e discutidas a sua utilidade e origem. Ora, esta descoincidência leva muitas vezes à produção do que Domingues designa de “sanções informais”.