• Nenhum resultado encontrado

2 A RELAÇÃO ENTRE AS NOÇÕES DE PROFISSIONALIDADE, PROFISSÃO

2.2 A relação entre profissionalidade, qualificação e competência

2.2.1 Regulação do trabalho, formação, qualificação e competência

Neste item, tomamos como base duas lógicas: do trabalho ao trabalhador e outra, do trabalhador ao trabalho. Sobre a lógica do trabalho ao trabalhador, sublinhamos que foi por volta da metade do século XVIII, queo trabalho é definido como um conjunto de operações elementares de transformação da matéria que se pode objetivar, descrever, analisar, racionalizar, organizar e impor nas oficinas nessa época.As operações são

os gestos do corpo humano: cortar uma barra de metal..., assentar um tijolo.São suficientemente elementares para serem concebidas e executadas com facilidade. O trabalhador: é o conjunto de capacidades que são compradas no mercado de trabalho e mobilizadas para realizar uma parte das operações. O que importa no trabalhador não é sua personalidade, seus sentimentos, seus conhecimentos pessoais, sua capacidade de iniciativa etc., mas o conjunto de capacidades para realizar operações que a gerência da fábrica lhe pede que execute, e a disciplina para executá-las tal como determinado. O trabalhador é um simples “portador de capacidades”, uma simples força de trabalho. (ZARIFIAN, 2001, p. 37-38).

Deste modo, as facetas do trabalho e do trabalhador se coadunam ao posto de trabalho. Ou seja, “um local preciso na fábrica e, ao mesmo tempo, um conjunto de tarefas a serem realizadas nesse local (as tarefas não sendo outra coisa senão a lista de operações que o trabalhador deve realizar)” (idem). Segundo Manfredi (1999, p. 137) associado a este modelo de organização do trabalho (ressalta-se o tayloristmo e o fordismo) se sobressai uma acepção do termo qualificação articulada “com métodos de análise ocupacional que busca identificar as características dos postos de trabalho para delas inferir o perfil ocupacional do trabalhador

apto para ocupá-los”15. Sobre este fato, Ramos explica que o termo qualificação esteve associado tanto ao processo quanto ao produto da formação profissional.

Visto pela ótica do posto de trabalho, o termo qualificação se relacionou ao nível de saber acumulado expresso pelo conjunto de tarefas a serem executadas quando o trabalhador viesse a ocupar aquele posto; essa abordagem contribuiu para a formação dos códigos das profissões e para sua classificação no plano da hierarquia social. (RAMOS, 2011, p. 34-35).

A partir da crise capitalista nos anos 1970, forjada pelo avanço tecnológico e pelo acirramento da concorrência, surge uma nova forma de configuração do trabalho: o toyotismo, cujas principais características são:

1) Produção vinculada à demanda; 2) rotação de tarefas e polivalência do trabalhador; 3) trabalho cooperativo em equipe com multivariedade de funções; 4) ênfase no controle de qualidade e na gestão da produção; 5) ... melhor aproveitamento do tempo de produção e redução dos estoques ao mínimo possível. (SOUZA e PESTANA, 2009, p. 138-139).

A nova forma de acumulação capitalista, baseada na flexibilidade, como também em Ciclos de Controle de Qualidade (CQG) entre outras técnicas de gestão, ampliam “o desemprego estrutural, o emprego informal, temporário e precário, impõe a redução de salários e provoca modificações no perfil da qualificação dos trabalhadores” (idem). Nesta nova reconfiguração do mundo produtivo é toda a arquitetura social da relação entre trabalho e formação que está em jogo. O uso da noção de competência emerge implicado ao aumento da complexidade do trabalho e das ocupações e às exigências de formação geral e de qualificação, incluindo por exemplo: mais conhecimentos sobre a organização do trabalho, mais conhecimento científico e tecnológico, domínio de habilidades mais variadas e complexas, compromisso com a qualidade do produto ou serviço oferecido ao consumidor final. É neste contexto que o trabalho se reverte ao trabalhador.

O trabalho não é mais, principalmente, um dado objetivável, padronizável, prescritível que bastaria a uma lista de tarefas relacionadas a uma descrição de emprego. O trabalho torna-se o prolongamento da competência pessoal que um indivíduo mobiliza diante de uma situação profissional (...). E deve-se admitir, de uma vez por todas, que esse retorno do trabalho à competência do indivíduo que o exerce coloca, simultaneamente, a variabilidade e a “evolutibilidade” das próprias ações profissionais, em razão não unicamente da variabilidade das situações, mas também do entendimento que o indivíduo e a rede de trabalho na qual está inserido podem ter das situações profissionais em dado momento. (ZARIFIAN, 2001, p. 56).

15

Segundo Braem (2000) podemos também registrar, neste contexto, o aparecimento de diversos sistemas de avaliação da qualificação do trabalho (do tipo Job Evaluation) cujo foco é por em dependência a classificação de cada trabalhador às exigências de seu posto de trabalho. O desenvolvimento destes métodos vai provocar a reação dos trabalhadores, emergindo a noção de profissionalidade na Itália, como vimos.

Assim, enquanto o taylorismo e o fordismo isolavam (em cada posto, em cada função) e dividia (a cada um, um fragmento específico de responsabilidade, um território segmentado), no movimento de retorno do trabalho ao trabalhador - o trabalho de agora em diante pode apresentar-se como “a atualização organizada do poder de pensamento e de ação do trabalhador, logo de sua competência” (Zarifian, 2001, p.65). Sublinha este autor: “a competência é propriedade particular do indivíduo, e não do posto de trabalho”. Seria, aliás, absurdo falar de um posto de trabalho competente!” (idem, p.42).

Neste contexto, segundo Zarifian (2001, p. 89) “as empresas defrontam-se com implicações produtivas estratégicas de acordo com seu ramo de atividade”. Em torno do serviço prestado, o trabalhador em seus atos profissionais, é chamado a saber e prever que impactos terão, direta ou indiretamente, no modo como o produto (bem ou serviço) trará benefícios úteis a seus destinatários. Na visão de Silva (2008) emerge a necessidade de se ser mais competitivo, visto que a qualificação formal abre caminho para a carreira profissional, mas ela sozinha não garante a permanência do indivíduo no mercado de trabalho. Ou seja, o diploma deixa de ser o único ou principal pressuposto para o emprego; embora a posse do diploma ainda seja o elo entre a formação e o emprego. Essa maior competitividade não se restringe apenas às empresas, mas também aos indivíduos, o que demandaria uma formação capaz de prepará-los para:

a aquisição de conhecimentos fundamentais, de habilidades sociais e das atitudes que permitam enfrentar situações de contingência, assim como transferir seu saber- fazer e seu saber-ser a distintos contextos, este seria o sentido do modelo de competências. (SILVA, 2008, p.65-66).

De sorte que resta em aberto a indagação como tal cenário se revela no campo da profissionalização docente sob o ponto de vista intitucional. Pois, no campo educacional, como sublinha Jobert (2003, p.221-22) “onde se falava ontem de formar ou de aperfeiçoar, fala-se agora em profissionalizar”. Desta forma, em particular, sobre a aplicação da noção de competência no campo educacional, consideramos que convém não perdermos de vista, como esta tem sido influenciada pela lógica “do trabalho ao trabalhador” sob o risco de termos a qualificação certificada envolta em um tipo de atrelamento das competências às tarefas que definem o conteúdo do emprego, presumindo-se predefinições e objetivações às quais o trabalhador deverá adaptar-se para parecer competente. De outro modo, consideramos que um olhar sobre a noção de competência sob a lógica “do trabalhador ao trabalho” suscita apreender o que pensam estes sobre suas próprias competências. Como vimos, desde a origem da noção de profissionalidade na Itália, esta parece ser uma questão de pano de fundo desde

algum tempo: a tensão entre o que as organizações-intituições esperam dos trabalhadores e o que os trabalhadores atribuem a si sobre em que se constitui seu exercício profissional.

Assim, situamos nosso interesse em identificar em que medida as representações de competência para ensinar matemática dos professores de matemática do Brasil e da França dialogam com as competências prescritas à formação e ao exercício profissional docente pelos Ministérios de Educação destes dois países.

2.2.2 Profissionalização das (nas e pelas) organizações: as competências prescritas à formação