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RELAÇÃO ENTRE A VARIAÇÃO SEU E DELE E A GRAMATICALIZAÇÃO DE VOCÊ

PRONOMES DEMONSTRATIVOS LATINOS

2.3 RELAÇÃO ENTRE A VARIAÇÃO SEU E DELE E A GRAMATICALIZAÇÃO DE VOCÊ

Biderman (1972/73) afirma que a forma você foi tratamento intermediário entre e tu e Vossa Mercê. A forma você surgiu, provavelmente, no século XVIII; até meados do século XIX era usada no trato de superior com inferior; no Brasil você passou a substituir tu, em algumas regiões. Em estudos sobre as relações entre as estruturas sociais e os pronomes de tratamento, Biderman (1972/73) faz uma descrição sobre as formas de tratamento encontradas na Espanha, em Portugal e no Brasil nos séculos XVII e XIX. Nessa descrição, a autora tece considerações acerca da implementação de você na Língua Portuguesa. Leia-se trecho da própria autora:

Você como tratamento intermediário entre tu e Vossa Mercê aparece

provavelmente no século XVIII.[...]. Como coexiste no século XVIII com

Vossa Mercê e com valor ligeiramente diferente, não sei se teria derivado

da evolução de Vossa Mercê como pretendem alguns etimologistas [...] Quando se consideram as inúmeras variantes de Vossa Mercê levantadas por Plà Cárceres na literatura dos séculos XVI, XVII e XVIII, outra hipótese pode ser aventada. O tratamento de Vossa Mercê deve ser importado da Espanha.45 [...] Compare-se agora variantes espanholas como: voaçed,

vueçed, vassuncê, vuaçed, voazé, vuazé, vuezé, todas registradas por

Cárceres. Note-se quão vizinhas se encontram foneticamente de você.

Vassuncê do repertório de Cárceres também se encontra nos meios rurais

portugueses e brasileiros, a par com Vosmecê e ocê. Essa última hoje freqüente na fala urbana brasileira de vários níveis. Talvez você simplesmente represente uma daquelas variantes que corriam na Espanha senão em toda a Península Ibérica.46 (BIDERMAN, 1972/73, p. 362-3).

Conforme Menon (1995), no século XIV e no XV, com a queda do sistema feudal e a ascensão da burguesia, o rei de Portugal passou a ser tratado por Vossa Mercê, Vossa Senhoria e Vossa Alteza em lugar de Vós.47 Com mais modificações na hierarquia social, essas formas foram também exigidas pelos nobres a pessoas de categorias mais baixas, como forma de tratamento respeitoso. Com isso, principalmente a forma Vossa Mercê foi sendo empregada por todos, ficando para o rei apenas Vossa Alteza e Vossa Majestade. Equivalentes a uma locução nominal substantiva (Vossa + nome), essas expressões, embora tivessem o sentido de segunda pessoa, faziam com que o verbo fosse empregado na terceira pessoa. Ainda conforme Menon (1995), quando o Brasil foi colonizado, a forma

45

“No final do século XVI e primeira metade do século XVII, Portugal estava sob o domínio espanhol. Além disso, as relações entre a sociedade portuguesa e a sociedade espanhola sempre foram muito intensas e estreitas desde os tempos medievais.” (BIDERMAN, 1972/3, p. 364).

46

“Na sequência das etapas sucessivas, o usted espanhol ficou como forma de respeito, substituindo

vós. E você, ou substituiu a forma familiar tu (Brasil), ou ficou como intermediário entre a intimidade

(tu) e o formalismo (o senhor, V.Excia.) (Portugal).” (BIDERMAN, 1972/3, p. 363)

47

vós48 já estava caindo em desuso, daí o que chegou ao Brasil foi a forma Vossa Mercê. Embora Biderman saliente a possibilidade de que a forma você tenha coexistido com Vossa Mercê, com valor diferente, Menon registra que o pronome de tratamento Vossa Mercê sofreu um processo de redução, e você passou a ser a forma de tratamento utilizada em quase todo o país, competindo com tu. Para Lopes (2008), a competição entre as formas tu e você se intensificou no século XIX.

Ainda segundo Biderman:

Até meados do século XIX você circunscreve-se ao trato do superior ao inferior [...].49 Assim o atestam escritos de Machado de Assis, Manoel Antônio de Almeida, Martins Pena.

No Brasil ocorreu a substituição do tu por você, como forma de tratamento familiar e íntima, fato que se deve ter processado na virada do século XIX para o XX. A correspondência de Machado dá testemunho desse fenômeno social e linguístico. Até os anos 70 Machado usava tu com os íntimos, de modo geral. No final do século XIX e começo do XX serve-se quase exclusivamente de você. [...] Um século depois, nesse último quartel do século XX, o tratamento na 2ap está quase extinto no Brasil, apesar de vários vestígios. Um deles: o uso do pronome oblíquo te e dos possessivos

teu, tua, etc. no interior do sistema da 3ªp (você). (BIDERMAN, 1972/73, p.

364-5).

Embora Biderman tenha sinalizado, na década de 70, que mesmo se utilizando da segunda pessoa semântica, você, o paradigma dos possessivos mantém as marcas de segunda pessoa, teu e flexões, estudos contemporâneos têm demonstrado que a forma possessiva seu e flexões se especializou para a segunda pessoa semântica, representada por você.50

Conforme Menon (1995, p. 96),

[...] com a introdução de uma nova forma para as segundas pessoas, o paradigma verbal também sofreu modificações. Isso é resultado da contínua (im)perfeição do sistema linguístico: uma modificação em alguma parte do sistema sempre acarreta modificações em outra(s) parte(s).

48 “Em Portugal, há uma norma em que é corrente o uso do pronome possessivo vosso significando

“de vocês”. Não se usa mais o pronome vós – que despareceu de praticamente todas as variedades da língua e foi substituído, no plural, pelo pronome vocês. No entanto, essa norma lusitana mantém vivo o possessivo vosso – agora em outra chave gramatical, ou seja, em correlação com o pronome vocês. Nesse caso, o corriqueiro, o habitual, o normal é dizer: Para o

exame, vocês devem trazer os vossos livros. Já no Brasil, a norma, nesse caso, é variavelmente

o pronome seus ou a expressão de vocês. Dizemos, então: Para o exame, vocês devem trazer os

seus livros. Ou: Para o exame, vocês devem trazer os livros de vocês.” (FARACO, 2008, p. 42).

49

“1) critério de idade (pais a filhos, tios a sobrinhos); 2) de posição (magistrado a cidadãos comuns, professor a aluno); 3) iguais não íntimos, ou de relação assimétrica (homem e mulher, quando primos)”. (BIDERMAN, 1972/3, p. 364).

50

Conferir, por exemplo, Muller (1997a), Abraçado (2000). Esse aspecto será abordado no próximo capítulo.

Dessa maneira, é possível constatar que, num processo de gramaticalização, a forma, antes locução nominal, que nessa categoria requeria o verbo na terceira pessoa, passa a pronome. O pronome é de segunda pessoa. Com isso, a reestruturação do paradigma verbal fez com que se constituíssem duas formas de flexão para a segunda pessoa, uma com o morfema tradicional; outra com um morfema  de pessoa.

O sistema pronominal em uso no português brasileiro contemporâneo é exposto por Menon51 da seguinte forma (1995, p. 103):

PES PSUJ POBJ DIR POBJ IND POBJ PREP PPOS

1a s Eu Me Me Mim Meu, minha

2a s Tu, você Te, lhe, se Te, lhe, se Você, ti Teu, tua, seu, sua

3a s Ele, ela Ele, ela Ele, ela, lhe Ele, ela, si Seu, sua, dele, dela

1a p Nós Nos Nos Nós Nosso, nossa

2a p Você Vocês, lhes, se Vocês, lhes, se Vocês Seus, suas, de vocês

3ª p Eles, elas Eles, elas Eles, elas, lhes Eles, elas, si Seus suas, deles, delas

Quadro11: Sistema pronominal em uso52

Em se tratando dos possessivos, essa mudança no paradigma pronominal ampliou os contextos linguísticos de ocorrência da forma seu e flexões. A mudança instituída no paradigma dos pronomes pessoais provocou um rearranjo no uso dos pronomes possessivos, como forma de se evitar um tipo de ambiguidade, já que o seu e flexões seria usado tanto para P2, quanto para P3 e P6, conforme alguns teóricos (MATTOSO CÂMARA JR, 2001 [1970], 1975; OLIVEIRA e SILVA, 1982, PERINI, 1985, entre outros).

Com a introdução de você como segunda pessoa semântica, em lugar de tu, Mattoso Câmara (1972, p. 52) salienta que, da mesma forma que o lhe tornou-se ambíguo para a terceira pessoa propriamente dita, colocando-se em seu lugar a variante a ele estou lhe falando, estou falando a ele –, o possessivo seu tornou-se também ambíguo, e no seu lugar se foi intensificando o uso do dele, já que o seu passou a ser mais entendido

51

Além de Menon, outros autores também estudam a relação entre a gramaticalização de você e as alterações no paradigma pronominal do PB (ver também Vitral e Ramos, 1999; Lopes, 2008; Lopes & Duarte, 2003, entre outros).

52

como possessivo de você e de senhor. Mattoso Câmara, em seu artigo Ele como um acusativo no português do Brasil, publicado em 1972, já sinalizava que um dos traços marcantes do português brasileiro é que os pronomes possessivos podem ocupar todas as posições que os nomes ocupam (sujeito, complemento, adjunto entre outras), entretanto apenas algumas formas podem ocupar uma ou outra posição. Sobre o pronome de terceira pessoa, ele afirma:

A forma ele no português do Brasil se aproximou [dos nomes e dos demonstrativos], separando-se do sistema dos pronomes pessoais, onde há uma flexão casual. Diz-se, portanto ele anda, falo a ele, vejo ele, exatamente como Pedro anda, falo a Pedro, vejo Pedro, em vez de – ele

anda, me fala ou fala a mim e me vê. A inovação brasileira é, em última

análise, uma inovação de estrutura, dissociando o pronome da terceira pessoa do sistema causal dos pronomes pessoais (MATTOSO CÂMARA, 1975, p. 49).

Essas diversas possibilidades sintáticas para o pronome ele contribui também para que a forma dele funcione com frequência como possessivo no PB.

Diante do exposto neste capítulo, constata-se que o possessivo de terceira pessoa seu, originado no reflexivo latino sui, ampliou seus contextos de uso nas línguas românicas, passando a variar seus usos com o genitivo dos demonstrativos, tornando-se, por vezes, ambíguo. No Português Arcaico, passou a ser utilizado em construções pleonásticas, no intuito de se desfazer as possíveis ambiguidades. Nesse período também se identifica uma mudança, quando as formas átonas vão dando lugar às formas tônicas e á forma analítica dele, que deixa de atuar como reforço, passando a concorrer com o seu, como variantes. Com o passar do tempo, já no século XIX, com a gramaticalização de você, a forma seu passa a funcionar como possessivo de P2, momento em que se constata um aumento na frequência de uso da forma dele como possessivo de P3, justificada pelos traços que tornam o acesso ao referente mais eficaz. O seu se flexiona concordando com o nome ao qual se liga (o possuído), portanto não apresenta marca em relação ao referente (possuidor). Já a forma dele concorda em gênero e número com o referente (possuidor), daí ser mais específico para o processo de referenciação.

Considerando-se essa alteração no paradigma dos pronomes pessoais e suas implicações no paradigma dos possessivos, expõem-se, no capítulo a seguir, alguns estudos sobre os possessivos de terceira pessoa no português brasileiro contemporâneo.

3 OS POSSESSIVOS DE TERCEIRA PESSOA NO PORTUGUÊS BRASILEIRO