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Sobre a presença do artigo e do quantificador indefinido antes do possessivo

PRONOMES DEMONSTRATIVOS LATINOS

2.2 O POSSESSIVO DE TERCEIRA PESSOA NO PORTUGUÊS ARCAICO

2.2.3 Sobre a presença do artigo e do quantificador indefinido antes do possessivo

Outro aspecto tratado por Mattos e Silva diz respeito ao uso do artigo definido no sintagma do possessivo, conforme se registra no trecho a seguir:

[...] o possessivo pode ocorrer precedido do artigo. Nesse caso também há uma preferência em termos quantitativos: há 69% de casos em que o possessivo não está precedido do artigo em face de 31% de casos em que o possessivo está precedido pelo artigo. O artigo pode preceder o possessivo quer esse esteja seguido de nome substantivo, quer esteja como núcleo do sintagma nominal. (MATTOS E SILVA, 1989, p. 182).

Nos dados levantados nos DSG, Mattos e Silva identifica que o uso do artigo definido precedendo o possessivo é mais frequente quando esse possessivo é núcleo do sintagma. Para a ausência do artigo, no caso do substantivo, explica a autora que “quando o possessivo está seguido de nome substantivo, não observamos nenhuma razão para a escolha ou não do artigo, a não ser a de melhor definir o objecto designado pelo nome.” (p. 182). Verifica-se que, apenas no caso de possessivos substantivados, ou seja, o possessivo

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Bagno também denomina o PA de período medieval.

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Outro autor que se debruçou sobre a questão da posição dos possessivos no sintagma e sua relação com o artigo definido e o quantificador indefinido foi Cerqueira (1997, 2008). Embora o foco não tenha sido o período arcaico, é importante entender esse efeito no português contemporâneo. Isso será visto no capítulo 2.

desacompanhado de nome, o que se considera como pronome de fato, é que há necessidade de uso do artigo, conforme exemplo 2.3.35.

Sobre o artigo, Meier (1948) afirma que, pelo corpus analisado do período medieval, as línguas românicas já faziam uso do artigo definido antes do possessivo. No Português Arcaico salienta que já era comum o uso do artigo, indicando posse, sem ser acompanhado de possessivo. Ele ressalta que tal uso, passível de interpretação clara no português, não era usual em outras línguas românicas, necessitando nestas de uma forma explícita que desse o sentido de posse. Meier identifica o uso das duas formas no corpus e salienta o aspecto estilístico do uso do artigo sem possessivo. É possível considerar esse fenômeno como uma variação, tendo em vista que, no português contemporâneo, usa-se essa forma – artigo definido dando a ideia de vínculo, com elipse da forma possessiva – por uma questão estilística. Neves (2011, p. 477) registra que, na contemporaneidade, o artigo pode funcionar como possessivo no caso de posse inalienável: “Moveu lentamente os pés.”

Saliente-se que, conforme será visto adiante, Lacerda (2010) identifica, a partir do estudo em corpora do PA por ela levantados, que havia uma competição entre as formas átonas de terceira pessoa (sa, sas e se/ses) e o emergente artigo definido para ocupar a posição de determinante no sintagma. Com o tempo, o artigo passou a ocupar o lugar anteposto ao nome, fazendo desparecer as formas átonas (sa/sas e se/ses) e fixando as tônicas (sua/suas e seu/seus) em posição anterior ao nome.32 Isso também é visto em Cerqueira (1996; 2008) que ressalta a complexidade do sintagma determinante.

Mattos e Silva (1989) também apresenta, em sua descrição, a posição quando há no sintagma possessivo um quantificador indefinido. Nesse sentido, a autora ressalta o registro do possessivo em posição anterior ao nome substantivo, quando seu antecesssor é um quantificador indefinido. Não há indicação se esse uso é categórico, mas ela identifica 24 SN com esse comportamento, conforme trechos abaixo:

1.1.2 hũũ nosso meniho, 2.23.15 hũa sa ama delas, 1.1.2 hũũ seu clerigo d’avangelho, 1.4.2 hũũ seu abade, 1.13.6 hũũ seu amigo, 1.13.8 hũũ seu abade, 1.17.8 hũũ seu sobrĩho, 1.19.2 hũũ seu cavalo, 1.19.2 hũũ seu sobrĩho, 1.21.3 hũũ seu orto, 2.3.70 hũũ seu filho, 2.37.2 hũũ seu filho, 2.8.23 en hũũ seu sobrado, 2.14.4 hũũ seu rei deles, 2.22.4 hũũ seu grande logar, 2.23.6 hũũ seu logar, 2.25.2 hũũ seu monge, 2.27.3 hũũ seu discípolo, 2.27.8 hũũ seu aversairo, 1.2.35 algũũ seu discípolo, 1.5.44 sen nen hũũ seu dano, 2.37.2 algũũs seus discípolos, 1.9.11 outros seus companheiros, 2.1.52 outros seus bẽẽs. (MATTOS E SILVA, 1989, p. 183).

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Para efeito dessa análise, Lacerda desconsiderou as tônicas em posição pós-nominal, justificando que estas funcionariam como predicativo, e o objetivo da sua análise era verificar a competição das formas que ocupavam a posição de determinante. Há registro, entretanto, de que as formas tônicas pós-nominais se apresentavam em baixa frequência. Ressalte-se que no corpus analisado por Mattos e Silva, o DSG, as tônicas masculinas ocupavam posição anterior ao nome e as tônicas femininas pós-nominais tiveram baixa frequência.

Considerando-se o quantificador indefinido, observa-se uma nítida diferença em relação ao português brasileiro contemporâneo. Com o quantificador indefinido, a tendência no PB contemporâneo é o uso da forma tônica posposta ao nome, conforme estudo de Cerqueira (1996, 2010), que será visto no próximo capítulo.

Em relação ao quantificador definido, como em 2.37.8 “En aquel dia dous seus frades...”, Mattos e Silva ressalta que “Esse tipo de construção pode dar margem a duas interpretações: ou o numeral se refere à totalidade do que é designado pelo nome ou à parte dessa totalidade, como se interpreta nas sentenças com quantificador indefinido. Nestes casos, para nós, só o contexto possibilita se desfazer essa ambiguidade [...]” (p. 183-4). A autora ressalta que “Há um indício a favor de que essa estrutura – numeral + possessivo + nome – se refira a uma parte da totalidade do que e (sic) designado pelo nome.” (p. 184).

Aqui vale ressaltar algo significativo nesse corpus do PA que se relaciona ao uso do artigo definido e do quantificador indefinido. Mattos e Silva apresenta trechos do DSG em que é possível se identificar o uso do possessivo precedido de artigo definido e o uso do possessivo sem artigo: 1.8.19 “E maravilhando-se Juiãão, mandadeiro do papa, porque o seu homen tanto tardara, alçou os seus olhos e viu-o viir pola carreira com hũa cárrega de feo sobre seu colo.” (DSG, 1989:181). Ela informa, inclusive, com base em Ferreira (1987, p. 367), que nos séculos XIII-XIV já começava o emprego do artigo definido com adjetivos possessivos, principalmente quando em função substantiva, conforme exemplo: 1.2.47 “Cada hũũ recebeu o seu”; 2.3.35 ”[...] pelas fazendas dos outros senon pela sua.” (MATTOS E SILVA, 1989, p.179).33

Conclui-se que no PA tanto o artigo definido quanto o quantificador indefinido ocupam posição anterior ao possessivo e ao nome. Ressalte-se também que no DSG, corpus do estudo de Mattos e Silva, identifica-se uma alta frequência da forma tônica masculina e da forma átona feminina em posição anterior ao nome. Diferentemente dos corpora de Lacerda, o de Mattos e Silva não apresenta forma átona masculina.

De acordo com Mattos e Silva, no DSG, o possessivo de terceira pessoa ocorre tanto precedido quanto seguido pelo nome em situação adjuntiva, ou mesmo como núcleo de sintagma nominal, tornando elíptico o substantivo. Observa-se, entretanto, nesse corpus, uma maior frequência de uso do possessivo anteposto ao nome, como em 1.5.56 “[...] foi depois abade de muitos monges mais morou com muitas monjas e foi seu abade delas.” (MATTOS E SILVA, 1989, p. 177)

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Aspectos relacionados à frequência do uso do artigo definido no PA serão abordados mais adiante pelo estudo de Lacerda (2010).

O que chama a atenção nessas construções no PA, entretanto, é o fato de o possessivo de terceira pessoa, em geral, ser precedido do quantificador indefinido hum. Conforme Cerqueira (1996), o uso do possessivo com o antecedente indefinido, como ocorre nos exemplos citados anteriormente, favorece, no PB contemporâneo, que o pronome ocupe a posição posterior ao nome, como em “Um aluno seu” em lugar de “Um seu aluno”. Se se considerarem as mudanças ocorridas no PB, principalmente na segunda metade do século XIX, é possível inferir, mesmo sem análise de corpora, que a realização seria “um rei seu” em lugar de “um seu rei”. Esse fato é significativo na medida em que um dos levantamentos feito nas correspondências que constituem o corpus desta pesquisa objetivou identificar se o quantificador indefinido interferiria na posição do possessivo no SN, considerando-se as variantes seu e dele.

Outros contextos são informados por Mattos e Silva em relação ao PA, por exemplo: 1.2.35 “algũũ seu discipolo”; 1.9.11 “outros seus companheiros” (DSG apud MATTOS E SILVA, 1989, p. 182 e 185). Ambas com quantificadores, essas construções não são usuais no português contemporâneo, tendo em vista o sentido indeterminado do elemento anteposto ao possessivo. Na contemporaneidade, é mais comum se usar “algum discípulo seu” e “seus outros companheiros” ou “outros companheiros seus”.

É importante destacar aqui que, no latim, não havia o pronome de terceira pessoa, ele e flexões, nem artigo. Ambos se originam nos demonstrativos. Essas formas foram implementadas nas línguas românicas. Considerando-se esse fato, é fundamental se ter conhecimento de como esse paradigma se foi configurando na Língua Portuguesa.

2.2.4 A queda das formas átonas e o uso da forma dele como indicadora