• Nenhum resultado encontrado

SOBRE AS VARIANTES SEU E DELE: O QUE O CORPUS REVELA

POSSESSIVOS DA NÃO-PESSOA NO PORTUGUÊS BRASILEIRO

8 SOBRE AS VARIANTES SEU E DELE: O QUE O CORPUS REVELA

Verifica-se nos estudos apresentados neste trabalho, com corpora representativos da Língua Portuguesa em diferentes sincronias que as variantes do possessivo de terceira pessoa se comportaram/comportam de maneiras diversas. Nos corpora do PB contemporâneo, observa-se que, embora o dele esteja em ascensão, restrições, de natureza pragmática, semântica e morfossintática, inibem o uso dessa forma. Do ponto de vista pragmático, é preciso ter em conta o nível de formalidade da situação comunicativa, que, em geral, favorece o uso do seu. Numa abordagem semântica, alguns referentes restringem o uso do dele, favorecendo o seu – quando o referente é um SN quantificado (MULLER, 1997), quando o referente é introduzido pelos indefinidos “cada” ou “tudo” (BAGNO, 2012). Do ponto de vista morfossintático, a posição das variantes no SN possessivo depende do determinante (se artigo definido ou quantificador indefinido). No caso específico do seu, sua posição usual é pré-nominal; quando posposto, tem o sentido alterado.

Na trajetória desses pronomes, identificam-se mudanças de natureza semântica e morfológica. No que se refere ao aspecto semântico, o seu, de origem reflexiva, passa a assumir função não-reflexiva. O dele já no sistema passa a funcionar como forma desambiguizadora. Em relação ao aspecto morfológico, inicialmente, tem-se formas átonas e tônicas. As átonas passam a competir com os artigos definidos emergentes, pela posição de determinante. A forma tônica e a forma dele assumem a função de possessivo.

Seu e dele são variantes porque exercem a mesma função de possessivo. O seu, embora tenha se especializado como possessivo da segunda pessoa (P2), não deixou de funcionar como possessivo de terceira pessoa (P3). Embora tenha havido uma ampliação no uso, não é possível afirmar que o dele, na contemporaneidade, é categórico na terceira pessoa, porque existem ainda restrições de uso. No caso do SN quantificado (“Tem que cada um pegar sua lancheira”; “Todo mundo ali à beira da calçada tomando seus chopes, tomando sua cerveja”), o sentido não especificado do referente faz com que se opte pela forma seu, haja vista o dele inviabilizar esse sentido não determinado do referente, já que tem marcas que orientam para a especificidade. O seu e o dele são variantes, mas não ocupam o mesmo lugar no SN. O seu, em geral anteposto ao nome, funciona como determinante (especificador do nome) e é interpretado como argumento do verbo; o dele, sempre posposto, funciona também como um especificador do nome, mas, pela posição, como um predicativo.

No caso do seu, observa-se que de uso específico apenas como reflexivo, estende-se para contextos mais amplos (não-reflexivos). Isso ocorre desde o latim e se intensifica nas línguas românicas, chegando ao PA. Passou um longo tempo sendo utilizado em contextos mais amplos e, na contemporaneidade, tem seu uso restringido – o seu se especializa como possessivo da segunda pessoa, você, e, como possessivo da terceira pessoa, varia com o dele, sendo que esta forma, no PB contemporâneo, mesmo em contextos formais, tem demonstrado maior frequência. O único caso em que o dele não é intercambiável com o seu é quando seu referente é um SN quantificado, ou um quantificador indefinido (MULLER, 1997; BAGNO, 2012). Ressalte-se, entretanto, que, conforme Moraes de Castilho (2013, p. 259), a geração mais nova tende a usar o dele até nesses contextos, conforme exemplifica:

 Todo homem acha que a mulher dele / *sua mulher deve ser uma boa cozinheira.

Considerando-se a cadeia de referenciação e nela os possessivos de terceira pessoa como elementos anafóricos, tem-se que o uso de uma ou outra forma tem relação estreita com a possibilidade de recuperação do referente da maneira mais clara possível, ou seja, não deixando dúvidas para o interlocutor sobre o objeto do discurso.

8.1 O USO DO SEU PARA P2 E P3/P6

De posse de um corpus que expressa a escrita formal dos professores na Bahia do século XIX, portanto um registro mais próximo do padrão prescrito, buscou-se identificar a frequência do uso do seu e do dele, e os contextos condicionadores para a seleção dessas formas, considerando-se as variáveis linguísticas. O período em estudo é significativo porque o século XIX é o momento, ao mesmo tempo, de mudanças na gramática do português brasileiro, principalmente no que se refere ao paradigma pronominal, e de busca por um referencial que se constituísse como padrão da Língua Portuguesa no Brasil.

Conforme explicitado no capítulo 2, a introdução do pronome de tratamento você no paradigma dos pronomes pessoais representando a segunda pessoa comprometeu ainda mais a clareza na recuperação do referente ao se usar o pronome seu como o possessivo respectivo. Isso porque esse possessivo passou a ser usado tanto para a segunda quanto para a terceira pessoa. Nesse sentido, conforme Perini (1985), o uso da forma dele e flexões se tornou mais frequente para o referente de terceira pessoa, principalmente na fala, e, conforme Abraçado (2000), o uso da forma seu e flexões se

especializou para a segunda pessoa, quando o referente é você. Isso ocorre no português brasileiro contemporâneo. Veja-se um quadro com essas formas no PB contemporâneo:

PES PSUJ PPOS

1a s Eu Meu, minha 2a s Tu, você Teu, tua, seu, sua 3a s Ele, ela Seu, sua, dele, dela 1a p Nós Nosso, nossa 2a p Vocês Seus, suas, de vocês 3a p Eles, elas Seus suas, deles, delas

Quadro 20: Sistema pronominal em uso132

No corpus em estudo, em relação ao uso do seu se referindo à segunda ou à terceira pessoa do discurso, alguns aspectos foram observados. Embora para o interlocutor fosse utilizado um pronome de tratamento (V.Sa, V. Exa, Ilm0 Sr), portanto o possessivo correspondente seria, obrigatoriamente, o seu, o objetivo foi verificar se esse fato poderia fazer com que o escrevente utilizasse o seu para o referente de segunda pessoa (interlocutor) e, para não haver ambiguidade, usasse o dele para a terceira. Esse aspecto foi observado, considerando-se que, nos corpora constituídos por textos escritos por brasileiros nos séculos XVII a XVIII, analisados por Oliveira e Silva (1982), identificou-se o fator ambiguidade como motivador para a escolha da forma dele e flexões.

Nas correspondências dos professores primários do século XIX, ao longo das quatro décadas, constatou-se que, mesmo utilizando a forma seu para a segunda pessoa, o escrevente mantinha o uso do seu também para a terceira pessoa, conforme trechos a seguir:

15. Cumpre-me dizer a V. Sª, que já cançado de officiar aos Comissarios respectivos, a V. Sª me dirijo pedindo todos os objetos indispensáveis a uma Eschola primaria, p. nesta só existem a penas alguns bancos [...] e assim não poderá o Professor desempenhar o seu dever, também peço a VSa que por sua illustração procure melhorar a classe dos Professores [...]. (Francisco Estanisláo da Silva, Professor da Aula Pública de Camisão, 07/05/1857).

16. Tendo eu reassumido o cargo de Professor publico primário nesta