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4. DO CARÁTER DINÂMICO DAS RELAÇÕES ENTRE O INDIVÍDUO E O ESPAÇO

4.2. Relação autor-espaço-habitante(usuário)

A concepção de habitante vai, através dos tempos, se modificando e adquirindo novas nuances, de acordo com a evolução do conceito de uso, uma vez que a relação usuário/uso é amalgamada e interdependente; daí emerge a idéia de sujeito-usuário: um ser imbricado no processo histórico de construção de sentidos que, ao recriar as suas relações com o mundo, reinventa-o, produz novos sentidos e é produzido por eles. Assim, nesse processo de produção de sentidos, parece tornar-se, também, co-autor da obra.

Na arquitetura, o espaço, enquanto estrutura inacabada, depende da contribuição do habitante, que é instigado a completá-lo, deparando-se, nessa tarefa, com os espaços de certeza: os pontos mais explícitos da obra, as regras funcionais, a partir dos quais vislumbra o sentido global; e os espaços de incerteza: as passagens, os movimentos para o desconhecido, as relações interpessoais que emergem no/pelo espaço, que exigem do usuário mais participação, maior criatividade.

Pensar no usuário como co-autor é compreender que, apesar da ordem instaurada pelo espaço construído, este sempre revela significações plurais e móveis a partir das quais o usuário, construtor/produtor, pode inventar, deslocar, distorcer o sentido do espaço a partir de sua condição histórico-cultural, considerando que estar no espaço é envolver-se em uma prática social, saber-se envolvido em uma interação com o autor, que usa a linguagem - neste caso espacial - a partir de um lugar social marcado, em um determinado momento sócio-histórico.

Entende-se que um espaço arquitetônico só existe, com efeito, quando tornado presente pelo ato do uso ( ZEVI,1977; COUTINHO,1977); que não há uma autoridade suprema do autor em relação ao espaço que concebe, tampouco o espaço pré-existe à sua usabilidade; e o uso não é sinônimo de decodificação para aceitação passiva do espaço, mas atividade de desconstrução e reconstrução.

Por ser levado em conta na construção do projeto arquitetônico, afinal ele é a razão de existir do espaço, havendo diálogo entre autor e usuário, o usuário faz parte do processo produtivo, constituindo-se num co-autor, ao mesmo tempo que é personagem. Daí

ser válida a asserção de que o sujeito da enunciação é composto por enunciador e enunciatário, já que este último influi visceralmente na forma e no conteúdo. O usuário seria, nesse propósito, um destinatário implícito da mensagem, o ‗usuário ideal‘.

Ainda que se insista nesta diferenciação, não há dúvidas de que o espaço do usuário será inevitavelmente preenchido por um indivíduo ‗de carne e osso‘, em constante desenvolvimento e, conseqüentemente, um sujeito em construção.

Por usuário, portanto, depreende-se uma instância complexa. Sob o ponto de vista da enunciação, a instância ocupada por ele pode ser definida em dois aspectos: comunicação e produção. No tocante à produção enunciativa, como se viu, o usuário representaria um partícipe da produção projetual, recebendo o papel de co-autor. Isso se dá porque o autor, para atingir a eficácia de seu discurso, indubitavelmente necessita considerar seu cliente.

A atribuição de ―co-autoria‖ dada ao usuário é válida porquanto ele rege o rumo da constituição espacial, pois constitui a imagem à qual o autor se dirige. Nesta concepção de imagem, que não concebe o usuário real, mas uma entidade ideal, ele ganha um revestimento temático-figurativo, transformando-se em pessoa arquitetural13.

[...]A vivência arquitetônica se perfaz na fruição de alguém estar consigo e estar com outrem, de ser no âmbito afeiçoado a si e no âmbito afeiçoado a uma indistinta presença. No rotineiro da conduta urbana, o vulto preenche as horas com a versatilidade a que o obrigam os vão s de que participa, estilizando-se em cada recinto estilizador, dissolvendo-se , em maior ou menor grau, nas ocasiões em que se integra nos anônimos recheios (COUTINHO, 1998, p. 230)

Posteriormente, no uso propriamente dito, o usuário do espaço é responsável pela atualização do mesmo e pela produção de sentidos, dentro dos processos de compreensão e interpretação.

A idéia do outro dialógico que perpassa toda a obra de Bakhtin fica nítida nas análises sobre a autoria do romance polifônico e ao próprio movimento das vozes neste gênero, que se caracteriza pela livre movimentação das consciências das personagens.

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A personagem passa a ter a consciência de um outro, a ser um outro, não objetivado como no romance tradicional. Até mesmo o autor entra em diálogo com as outras consciências, tornando-se apenas mais uma voz no todo polifônico da obra.

―Dostoievsky não cria escravos mudos (como Zeus), mas pessoas livres,

capazes de colocar-se lado-a-lado com seu criador, de discordar dele e até rebelar-se contra ele‖ (BAKHTIN, 1992, p. 04).

Ou seja, há um diálogo entre as consciências, cujas vozes de outros podem ser evidenciadas quando passam a preencher os momentos de reticências, evasivas e outras marcas encontradas na análise das mesmas.

Em suma, a incompletude é característica do sujeito em cada pólo (eu-outro). Dito isto, a idéia de um sujeito origem e fonte do sentido é questionada, porque outras vozes lhe constituem, marcando sua subjetividade (BRANDÃO, 1998). Logo, o espaço discursivo é compartilhado com o outro e constituem-se, nesse espaço, tanto os sujeitos quanto o sentido. A heterogeneidade é constituinte e o sujeito bakhtiniano é essencialmente um intersujeito.

Dessa forma, o sujeito usuário é marcado espaço-temporalmente, sendo essencialmente histórico. Sua ação é produzida a partir de um determinado lugar e tempo e, logo, não está solto, antes pertence a quadros sócio-históricos, cenários. Há vestígios observáveis que são apreendidos nos acontecimentos enunicativos.

O autor participa deste diálogo além de organizá-lo. Sua participação está em criar personagens que ganham vida, mas não podem ser concluídas, pois vivem e resistem a uma objetificação. Tais personagens passam a participar com vozes próprias de diálogos

eu-tu. Segundo Bakhtin, a orientação da narração pode ser conduzida pelo autor, por um

narrador, ou qualquer personagem, contanto que o ―eu‖ do outro não seja objetivado, já que passa a ser sujeito, ainda que tenha sido criado por uma consciência exterior – a do autor. Aliás, essa condição de ―estar de fora‖ é posição essencial para a criação, confirmando a relevância da existência do autor, aqui considerado arquiteto.