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5 SABERES E PRÁTICAS DOCENTES NO ENSINO E NA

5.1 Saberes e Práticas: relações construídas no cotidiano

5.1.2 Relação Teoria e Prática: entre o dizer, o fazer e o ser

Nesta subseção, vamos tecer algumas discussões sobre as relações existentes entre os saberes teóricos e os saberes práticos nas ações dos professores. As ideias aqui debatidas serão importantes para entendermos como a professora colaboradora desta pesquisa mobiliza saberes disciplinares sobre produção, avaliação, revisão e reescrita de textos para colocar em prática seu ensino e para falar sobre ele nos encontros de autoconfrontação. Isso nos permitirá compreender que relações ela estabelece (e diz estabelecer) entre teoria e prática e como estas a constituem como professora de língua portuguesa.

Como discutimos acima, existiriam, pelo menos, quatro tipos de saberes que os professores mobilizam na sua prática de sala de aula. De acordo com a relação de distanciamento construída historicamente entre teoria e prática, esses saberes seriam divididos em dois grandes blocos: o bloco dos saberes que não seriam produzidos pelos professores e sim por pesquisadores especialistas (profissionais, disciplinares, curriculares) e o bloco dos saberes que seriam produzidos pelos professores (saberes experienciais), divididos errônea e dicotomicamente como se os saberes experienciais não fossem construídos a partir dos demais.

Assim sendo, pesquisadores e educadores apareceriam como dois grupos distintos, aos quais caberiam tarefas diferentes, sem muita relação entre si: aos primeiros, a produção, a seleção e a sistematização dos conhecimentos; aos segundos, a apropriação e a transmissão desses conhecimentos. Essa dicotomia infundada vem contribuindo para a tradicional separação das áreas de ensino e pesquisa (TARDIF, 2014).

Mas, e os professores? Como enxergam essa relação entre teoria e prática? A esse respeito, Chartier (2007) afirma, com base em suas pesquisas sobre o ensino da leitura e da escrita, que os professores dos anos iniciais normalmente rejeitam as inovações científicas que a academia faz sem validação da prática. Ou seja, os docentes preferem as informações dos textos acadêmicos que julgam imediatamente utilizáveis, ou seja, eles privilegiam as orientações sobre como fazer, em detrimento dos conhecimentos sobre por que fazer (explicações ou modelos teóricos). Assim, as escolhas teóricas que os professores fazem vêm das necessidades da sua prática, pois dependem do seu valor de uso: se forem úteis para dar conta dos objetivos que almeja, merecem ser mobilizadas; se não parecem válidas e se não funcionam, não têm valor de uso para a sua ação.

Em decorrência do modo tradicional e dicotômico de enxergar a relação entre teoria e prática, emergiram pelos menos dois modelos opostos para encarar as relações entre as práticas de ensino e os discursos acadêmicos na formação de professores: 1) o primeiro modelo acredita que o caminho para orientar de forma eficaz as escolhas didáticas e as práticas pedagógicas é uma correta transmissão dos saberes acadêmicos; 2) já o segundo modelo defende que os professores se formam também vendo fazer e ouvindo dizer, de modo que não devemos atribuir pura e simplesmente aos saberes teóricos a função de melhorar as práticas de ensino, embora estes tenham um valor essencial. Concordamos com Chartier (2007) quando ela discute que o primeiro modelo tem demostrado, há muito tempo, seus limites e fracassos, demandando um repensar sobre os modelos atuais de formação de professores. Nesse sentido, a seguir, através de um estudo de caso analisado pela pesquisadora, vamos discutir por que o segundo modelo – denominado saberes na ação – nos parece mais adequado para dar conta de compreender a relação entre teoria e prática que se consubstancia na formação e no cotidiano docente.

A despeito desse tradicional distanciamento entre teoria e prática (concretizado no primeiro modelo descrito acima), um estudo de caso realizado por Chartier (2007) mostrou que este distanciamento não passa de uma ficção teórica, não condizendo com a realidade. A pesquisadora, com o objetivo de verificar a validade concreta de um dos modelos (discutidos acima) de abordagem da relação entre prática de ensino e discurso acadêmico, procurou saber

como uma professora das séries iniciais (chamada Florence) teorizava reflexivamente sobre seu ensino da escrita no último ano da educação infantil (crianças entre 5 e 6 anos). O trabalho foi realizado em 1995 e 1996 e, nesses anos, a professora foi acompanhada durante a realização de oficinas de aprendizagem e de oficinas de produção livre que promovia com seus alunos.

Os resultados desse estudo de caso demostraram que, quando um professor prepara uma atividade de ensino, experimenta uma nova estratégia didática, fala sobre como ele ensina ou sobre como ele interage com seus colegas de docência, ele, sem querer e, muitas vezes, sem ter consciência, se relaciona com discursos profissionais que o envolvem. Assim, suas falas são sempre nutridas por discursos já existentes (seja para convergir com eles seja para divergir deles). Dentre tais discursos estão os saberes teóricos, os quais seriam, sim, abordados pelo professor, mas através do filtro da sua experiência e dos encontros com seus pares, focando as práticas de sala de aula. Desse modo, todas as informações que ele julgou interessantes sobre o fazer de sala de aula (sejam as que foram ouvidas dos seus colegas ou assistidas em palestras, até as que foram lidas em textos acadêmicos ou em publicações educativas) são selecionadas e retrabalhadas como “saberes para a ação”, antes de, efetivamente, serem usadas como “saberes em ação”.

Como explica Chartier (2007, p. 204), “cada um reformula, ininterruptamente, fragmentos de discursos pedagógicos na medida das ações que realiza, das situações pedagógicas que experimenta e dos procedimentos de trabalho que põe em uso”. Nesse processo, o professor pode fazer uso, ao mesmo tempo, de atividades muito distintas, as quais remetem a modelos até mesmo incompatíveis do ponto de vista teórico, mas que, do ponto de vista do uso prático dos saberes no cotidiano da sala de aula, não são contraditórios; pelo contrário, mostram-se coerentes e coexistem pacificamente, convergindo para uma melhor aprendizagem dos alunos.

Chartier (2007) denominou esse fenômeno de combinar práticas advindas de teorias diversas, presente na prática de muitos professores, de coerência pragmática. Segundo a autora, as escolhas que o professor faz em sua sala de aula são didáticas e pedagógicas, e nem sempre seguem uma lógica teórica, mas encontram sustentação na prática. Assim, acontece de às vezes o docente ter à sua disposição vários métodos e usar todos ou qualquer um deles para gerar resultados positivos. Isso demonstra que o professor não é seguidor de uma única teoria ou método, pois sua atuação é permeada por muitas variáveis que o levam a conciliar de algum modo teorias díspares para dar suporte a sua prática.

A autora comenta, ainda, que esse “retrabalho” dos pressupostos teórico- metodológicos acontece principalmente de forma coletiva, de tal modo que o discurso oral sobre as práticas de ensino possibilita que os professores se reconheçam como um grupo de trabalho, mesmo que, no dia a dia, cada um trabalhe sozinho.

Tardif (2014) reconhece relação semelhante estabelecida, pelos professores, entre teoria e prática. Ele afirma que os sujeitos, ao iniciarem suas atividades docentes, começam a compreender que os saberes profissionais (adquiridos na universidade) têm limites. Os professores reagem de formas diferentes a essa descoberta: alguns dizem rejeitar completamente sua formação anterior e defendem que a experiência docente é a única responsável pelo êxito do ensino-aprendizagem; outros reavaliam sua formação anterior, considerando que alguns aspectos foram úteis, mas outros nem tanto. De todo modo, eles procuram estabelecer uma distância crítica em relação aos saberes teóricos. E fazem isso julgando a pertinência e a adequação de sua formação anterior ou continuada com base nos seus saberes experenciais, de modo a atualizar os conhecimentos já adquiridos. Aliás, ele procede da mesma forma em relação às reformas e programas a que está submetido. Assim, notamos o papel essencial que adquire a experiência na mobilização de saberes acadêmicos por parte dos professores.

Tardif (2014) complementa a discussão dizendo que os saberes experienciais também assumem objetividade quando são relacionados criticamente aos saberes profissionais, disciplinares e curriculares: “a prática cotidiana da profissão não favorece apenas o desenvolvimento de certezas „experienciais‟, mas permite também uma avaliação dos outros saberes, através da sua retradução em função das condições limitadoras da experiência” (TARFID, 2014, p. 53). Assim, podemos concluir que os professores não rechaçam completamente os outros saberes que não são os experenciais. Ao contrário, eles tendem a agregá-los a sua prática, mas retraduzindo-os. A experiência é responsável, portanto, pela capacidade do professor de retomar criticamente todos os outros saberes: ele é capaz de revê- los, filtrá-los, selecioná-los, julgá-los, avaliá-los e, sobretudo, construí-los a partir do cotidiano. Dessa forma, fica claro que os professores não apenas testam ou reproduzem as teorias que lhes chegam, mas, com base nelas e a partir da sua experiência, são capazes de criar novos usos e ressignificar suas práticas.

5.1.3 Pensando em uma nova forma de abordar a relação teoria e prática na formação de