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2.1 As relações sociais na sociedade capitalista

2.1.2 Relações de gênero

Considerando a sociedade de classes e nesta a produção e reprodução das desigualdades sociais, pode-se localizar outra determinação fundamental das relações de exploração sexual de adolescentes. Esta determinação consiste nas relações sociais de gênero, ou seja, relações desiguais que viabilizam a violência de gênero e ao mesmo tempo encontram nela sua legitimação, embora esta, como salienta Saffioti (2004) não decorre apenas das relações de gênero, mas também das ligações de classe e etnia13, pois todas compõem a estrutura social, a totalidade das relações. “As relações de gênero ou relações sociais de sexo constituem categorias fundamentais para compreender a sociedade ampliando o debate de classes” (SEGNINI, 2010, p. 01).

Por gênero entende-se “a construção social do masculino e do feminino” (SAFFIOTI, 2004, p. 45), que ocorre no processo histórico14. Tem relação direta e primeira com as diferenças de sexo e por isso, embora seja uma categoria ontológica, está inscrita na natureza. Como refere a autora,

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“Ademais, o gênero, a raça/etnicidade e as classes sociais constituem eixos estruturantes na sociedade” (SAFFIOTI, 2004, p. 78).

14 Compreende-se, [...] que são construídos historicamente os papéis, as qualidades e as

características, ou ainda, as atividades ditas femininas ou masculinas, e não determinadas fisiológica ou naturalmente. Há assim uma construção sócio-histórica do gênero. São, portanto, os homens e as mulheres, na construção de suas relações sociais, que irão determinar a sua forma de ser, agir e pensar. Enfim, determinar a ideologia e o modo de produção e reprodução da sociedade (CISNE, 2012, p. 50-51).

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há [...] um vínculo orgânico entre gênero e sexo, ou seja, o vínculo orgânico que torna as três esferas ontológicas uma só unidade, ainda que cada uma delas não possa ser reduzida à outra. Obviamente, o gênero não se reduz ao sexo, da mesma forma como é impensável o sexo como fenômeno puramente biológico (SAFFIOTI, 2004, p. 135).

Nesse sentido, compreender o gênero enquanto uma construção social é de fundamental importância para perceber e analisar as diferenças existentes entre ser mulher e ser homem na vida em sociedade, visto que a identidade e os papéis assumidos por ambos não são determinados no nascimento. Como refere Chanter (2011, p. 53) “o gênero [...] é a maneira como organizamos o sexo”.

Tendo em vista a construção histórico-cultural do conceito gênero, destaca- -se que este

[...] refere-se às regras colocadas pela sociedade para mediar, impor e reprimir determinados comportamentos considerados nas relações postas entre homens e mulheres, mulheres e mulheres, homens e homens. Tais regras expressam as relações desiguais de poder estabelecidas entre homens e mulheres. E, visto que são relações construídas socialmente, são tidas como verdades, as quais se legitimam, se naturalizam e quase não são questionadas (AMARAL; FERREIRA; PEREIRA, 2013, p. 3).

Historicamente, as relações estabelecidas entre homens e mulheres foram permeadas pela desigualdade. O contrário disso podia ser observado no período anterior ao desenvolvimento da agricultura. Como refere Stearns (2007, p. 31) “o deslocamento da caça e coleta para a agricultura pôs fim gradualmente a um sistema de considerável igualdade entre homens e mulheres. Na caça e na coleta, ambos os sexos trabalhando separados, contribuíam com bens econômicos importantes”. Com o desenvolvimento da agricultura, os homens passaram a ser os principais responsáveis pela plantação, suprindo a maior parte dos alimentos e as mulheres passaram a se dedicar mais a gravidez e aos cuidados com as crianças.

Além disso, há que se destacar que o desenvolvimento da agricultura possibilitou a produção do excedente e com isso a preocupação dos homens em controlar a herança de gerações futuras. Consequentemente, mudanças ocorreram no casamento, surgindo assim a família patriarcal.

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Denominamos família patriarcal, genericamente, a família na qual os papéis do homem e da mulher e as fronteiras entre o público e o privado são rigidamente definidos; o amor e o sexo são vividos em instâncias separadas, podendo ser tolerado o adultério por parte do homem e a atribuição de chefe da família é tida como exclusivamente do homem (GUEIROS, 2002, p. 107).

Como refere Engels (2002, p. 75) “a primeira divisão do trabalho é a que se fez entre o homem e a mulher para a procriação dos filhos”. Dessa forma, com a preocupação em proteger as propriedades, garantindo-lhe a linha de herança, a mulher foi afastada da participação na produção social, restando-lhe o trabalho doméstico e o cuidado para com os filhos. Consequentemente, o homem passou a ser o principal responsável pelo sustento da família sendo lhe atribuído um poder e uma posição de dominador. Como refere Saffioti (2004, p. 44) em relação ao patriarcado, este “é o regime da dominação-exploração das mulheres pelos homens”.

Com base no exposto, percebe-se que as relações desiguais de gênero, ou seja, o poder e/ou o domínio do homem sobre a mulher teve como uma de suas principais determinações históricas a constituição da propriedade privada. Dali para frente, o poder masculino atravessou todas as relações sociais. Como bem ressalta Saffioti (2001) o gênero masculino tem hegemonia nas relações. Este, no exercício da função patriarcal, detém o poder de determinar a conduta dos demais.

Para exemplificar o quanto o poder masculino atravessa as relações sociais, Saffioti (2004. p. 62) compara a sociedade a um galinheiro, argumentando que quando uma galinha abre uma fresta na tela do galinheiro e escapa, “o galo continua dominando as galinhas que restaram em seu território geográfico”. No entanto, como ressalta a autora, “a ordem das bicadas na sociedade humana é muito complexa”, ou seja, não resulta apenas das relações de gênero, nas quais o homem é o dominador, mas também das relações de raça/etnia, em que o branco se afirma diante do negro e também das relações de classe, em que o rico domina e explora o trabalhador (SAFFIOTI, 2001, p. 117).

Ainda com base nesse processo histórico, Saffioti (2001, p. 126) reforça que a mulher não pode ser responsabilizada pela ordem patriarcal de gênero e por seus resultados, como por exemplo, a violência. Sobre violência de gênero, a autora destaca que esta “engloba tanto a violência de homens contra mulheres quanto a de

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mulheres contra homens, uma vez que o conceito de gênero é aberto” (SAFFIOTI, 2004, p. 44). Sabe-se, porém, que os maiores índices de violência de gênero são os praticados pelos homens contra as mulheres, pois “os homens estão, permanentemente, autorizados a realizar seu projeto de dominação-exploração das mulheres, mesmo que, para isto, precisem utilizar-se de sua força física” (SAFFIOTI, 2001, p. 121).

Nesse sentido, quando a violência de homens contra mulheres, sejam elas crianças, adolescentes ou adultas é compreendida sob a perspectiva de gênero, está se considerando a violência não na sua imediaticidade, mas a partir das diversas mediações históricas que atribuíram ao homem o poder de dominação e exploração e à mulher a subordinação e opressão. Vale lembrar novamente que a violência também está relacionada às desigualdades de raça/etnia e classe social.

Para que a violência, na perspectiva de gênero possa ser enfrentada,

há que se construir novas masculinidades de feminilidades baseadas em relações equitativas, horizontais e respeitosas. Mudar as relações no interior da família, dar às mulheres maior controle sobre os recursos materiais e simbólicos e sobre seu próprio corpo e oferecer-lhe recursos de apoio (MENEGHEL, 2009, p. 23).

Destaca-se também, que diante de um quadro histórico marcado por relações desiguais entre homens e mulheres, e principalmente por relações de violência, movimentos feministas tem contribuído para denunciar as diversas situações de subalternidade e de violação de direitos das mulheres. No que diz respeito à realidade brasileira, este movimento ganha maior força na década de 1970, período de Ditadura Militar, sobre o qual o movimento também resistiu.

A pretensão aqui não é esgotar a discussão sobre as relações de gênero, nem mesmo sobre a importância do movimento feminista no que diz respeito às diferentes estratégias de resistência empreendidas para enfrentar a realidade histórica de desigualdades entre homens e mulheres e da violência dela decorrente. No entanto, o enfrentamento desta dura realidade não pode se dar de forma isolada, localizada. É preciso enfrentar sim, a base da estrutura social, ou seja, a sociabilidade capitalista, pois esta tem a desigualdade na sua essência, enquanto que as demais expressões de desigualdades, produzidas e reproduzidas na vida em

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sociedade, dela decorrem. “A luta por direitos e as ações políticas efetivadas pelo movimento feminista foram e são fundamentais para explicitar as formas de opressão vivenciadas secularmente pelas mulheres. Assim, trata-se de um caminho estratégico que pode favorecer a construção de uma nova sociabilidade” (OLIVEIRA; SANTOS, 2010, p. 18).

Considerando esse processo de produção e reprodução das desigualdades sociais nas diversas dimensões da vida social, o próximo item irá discutir a categoria vulnerabilidade social, visto que todas as determinações da exploração sexual problematizadas até aqui, constituem-se em processos que aumentam a vulnerabilidade social dos sujeitos e por isso contribuem para a manifestação de diferentes situações de violação de direitos.