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6 A REABILITAÇÃO PROFISSIONAL EM CONTEXTOS DE

6.8 RELAÇÕES DE TRABALHO ANTES DO BENEFÍCIO

No capitalismo as relações de trabalho se dão de forma assimétrica, com relações de dominação e subordinação. Com os donos dos meios de produção de um lado e o trabalhador de outro, tais relações envolvem interesses contraditórios. Enquanto o primeiro procura extrair o máximo de trabalho do outro, sem elevar seus custos, o trabalhador tenta resistir a essa intensificação. No capitalismo, as relações de trabalho configuram-se como relações de assalariamento, em que o capitalista explora o trabalhador objetivando a extração do sobretrabalho e a consequente acumulação de capital (MARX, 1867/1983).

Algumas parcelas da classe trabalhadora vivem mais intensamente a exploração do trabalho, dependendo de sexo, idade, escolaridade e regionalidade. Dessa forma, é necessário compreender que o mundo do trabalho não está aberto para todos e todas; ele seleciona e oferece oportunidades para uma parte da população. A competitividade entre os trabalhadores e o estímulo à individualidade são conceitos-chave para a manutenção do processo produtivo estabelecido.

Dentre os reabilitandos pesquisados, a maioria relembra o trabalho de origem como se fosse algo “maravilhoso”. É como se não ocorresse tensão nas relações de trabalho. Seguem algumas frases que retratam essa realidade:

Adorava meu trabalho, me sentia útil (Tânia). Eu era muito feliz quando trabalhava (Tábata).

Trabalhei desde criança, tudo o que eu mais queria era voltar a trabalhar (Tomás).

Alguns entrevistados demonstram um sentimento afetivo, uma sensação nostálgica em relação ao trabalho que exerciam anteriormente, e que se rompeu há mais de dois anos. Em frases curtas foi percebido um sentimento como se o último emprego já tivesse esvaziado seu sentido, com o tempo: “gostava de trabalhar”; “queria continuar fazendo o meu trabalho”; “queria trabalhar e produzir”.

Todavia, essas falas não são a regra. Muitos entrevistados relatam cansativas jornadas de trabalho e baixo rendimento. Embora vários citem relações

de trabalho anterior ao benefício por incapacidade como satisfatórias, alguns têm opinião menos positiva:

Todos funcionários sofriam. Trabalhavam pesado, carregavam peso, o patrão era muito autoritário. Ele dizia diariamente: vocês são pagos pra quê? Se quiser pode pedir as contas. Eu chorava todo o dia com tanta humilhação (Tereza).

Sobre a narrativa acima “pode pedir as contas”, Dejours (2015) contribui com reflexões sobre a questão: se a organização do trabalho não traz doenças mentais específicas, o efeito crônico de uma vida mental sem saída mantido pela organização do trabalho tem consequências que favorecem descompensações psicossomáticas.

No caso da indústria em que o trabalho é submetido a um ritmo imposto, pode-se considerar que as relações hierárquicas são fonte de uma ansiedade que se superpõe ao ritmo, à produtividade, às cotas de produção, de rendimento, dentre outros problemas (DEJOURS, 2015).

Heloani e Capitão (2003) evidenciam a pressão constante sobre os trabalhadores e as ameaças frequentes de demissões que trazem consequências drásticas para todos aqueles que têm em seu trabalho sua única fonte de sobrevivência. As armadilhas impostas pela estrutura organizacional neoliberal transformam o trabalho não em uma forma de expressão de vida e de emancipação e sim em sua negatividade, isto é, em fonte de sofrimento.

A seguinte pesquisada também destaca o trabalho de origem como algo penoso, sem sentido positivo para o funcionário:

Meu trabalho era muito desgastante, ficava sentada o dia inteiro, por mais de 8 horas. Na costura só se pensa na produção, não tem interesse nenhum com o funcionário. Tinha que produzir, produzir [...] (Teodora).

A narrativa de Teodora engloba a articulação de três dimensões na atividade laboral: extensão, intensidade e produtividade. A extensão refere-se à duração da jornada, ou seja, se maior ou menor. A produtividade compreende todo e qualquer ganho de resultado obtido no processo de trabalho. A intensificação é o grau de envolvimento do trabalhador com o processo laboral; é uma jornada em que se exige, de forma genérica, mais trabalho (ALVES; BATISTA; MONTEIRO, 2012).

Têm sido aprofundadas as discussões sobre precarização a partir do viés das condições de trabalho, salário e emprego, porém Alves (2013) considera como uma das manifestações da precarização do trabalho a questão do adoecimento e a das doenças do trabalho, o que expressa o esmagamento do humano pelo capital. Para o autor, não é a atividade laborativa propriamente dita que faz adoecer, mas sim, o capital, que oculta a relação entre trabalho e doença e ainda culpabiliza a vítima pelo adoecimento.

Em algumas narrativas observou-se tendência a construir uma imagem de relações idealizadas com o papel do trabalho. Contudo, ao falarem na rotina do serviço, sobretudo aqueles que trabalham em linha de produção ou atividades braçais, ficou evidente essa contradição, fulgente no discurso de Tainara, que inicia seu relato de forma pouco convincente, com elogios, mas logo depois altera sua fala. Era muito bom trabalhar, gostava do que eu fazia [...] era bom também entre aspas, porque no final do dia estava muito cansada, sem ânimo para nada (Tainara).

Logo, fica claro que as relações com o trabalho não eram tão boas. De um reticente “gostava” para um efusivo “entre aspas”, a representação das relações de trabalho passa de um extremo para outro em poucos segundos. Nem todos fazem um caminho tão rápido de desidealização. Alguns têm dificuldade de relacionar os processos de trabalho em que estavam inseridos com o desgaste físico e psicológico. Em um momento apontam para um ótimo ambiente de trabalho e em outro demonstram insatisfação. Para Taís, “as amizades que eu tinha no meu trabalho eram muito legais, nem via o tempo passar. Cozinhava com amor. Tudo o que eu mais queria era voltar ao meu trabalho”. Na conclusão do pensamento, sinaliza “[...] o que prejudicou a minha saúde foi ficar muito tempo em pé” (Taís).

O processo de alienação subjetiva do trabalho vivo é um processo contraditório e complexo, que articula mecanismos de coerção/consentimento e de manipulação nas instâncias sociorreprodutivas, tendendo a dilacerar a dimensão física e subjetiva do trabalhador.

Para Alves (2013), os adoecimentos pelo trabalho atingem corpo e mente de homens e mulheres submetidos a relações sociais de trabalho capitalistas, caracterizadas pela subalternidade estrutural do trabalho ao capital.

Entre os pontos positivos destacados pelos entrevistados sobre as relações de trabalho elenca-se: “o trabalho me trazia alegria”, “não tenho nada para reclamar do meu trabalho”, “tinha muitos amigos no trabalho”, “o que eu sinto mais falta é da rotina do trabalhar”. Outros apontaram dificuldades: “a pressão do trabalho era uma dureza”, “as pessoas no trabalho não acreditavam que eu sentia dor”. Porém, a conexão direta entre trabalho e doença não foi percebida claramente nas narrativas.

O caráter conflituoso das relações de trabalho não deixa de existir por não ser manifestado de forma direta e aberta pelos trabalhadores, e o controle dos trabalhadores se dá, muitas vezes, pelo entendimento de que sem esse trabalho as condições podem sofrer maior retrocesso.