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Estudar famílias na periferia de Maputo

1.1. Relações familiares e recursos das famílias

O desenvolvimento das estratégias de sobrevivência e reprodução social ao nível das famílias depende, em grande parte, das relações existentes entre os seus membros. Nestas relações interferem, entre outros factores, as condições da existência material, social e cultural e expressam-se, de forma inter-relacionada, interesses materiais e emoções, uns e outras socialmente constituídos e estruturados de forma diferente em diferentes famílias (cf. Medick e Sabean 1988). Os membros das famílias não separam a emoção dos interesses materiais nas suas práticas diárias e na sua experiência vivencial. Consequentemente, se as relações familiares, as práticas e as estratégias de sobrevivência e reprodução social associadas se moldam na articulação permanente de interesses materiais e emoções, estes devem ser analisados na sua sistemática inter- -relação (cf. Medick e Sabean 1988). A análise da inter-relação entre a dimensão ―material‖ e a dimensão ―emotiva‖ constitui assim um dos aspectos essenciais a ter em conta nos estudos sobre famílias, pois ―as emoções são socialmente constituídas e não são apenas a expressão da experiência, mas também determinantes da experiência e da prática […] e as emoções e os interesses materiais […] advêm da mesma matriz‖ (Medick e Sabean 1988: 3).

A questão que se coloca consiste, como referem os autores citados, na construção de um corpo teórico e conceptual que permita captar as expressões emocionais no con- junto das práticas sociais e que permita analisar interesses materiais e emoções na sua reciprocidade, de forma a compreender as forças que moldam as relações entre os membros de uma família. Trata-se, pois, de captar, ―no mesmo momento analítico, a interpenetração de vários níveis de troca — as relações sociais criadas, organizadas e moldadas pelas pessoas com direitos ou obrigações em relação a outras pessoas ou coisas‖ (Medick e Sabean 1988: 12).

Segundo estes autores, noções antropológicas como as de ―direitos‖, ―deveres‖, ―obrigações‖ são essenciais, tal como a observação e a análise de rituais familiares, enquanto momentos privilegiados de troca e de mediação de emoções e de interesses materiais (nomeadamente os momentos de preparação de comida e as refeições). Outros aspectos, como a transmissão de bens materiais e/ou simbólicos (objectos, co- nhecimentos, crenças, nomes e mitos), alianças matrimoniais, circulação de bens e

pessoas (nomeadamente a circulação de crianças dentro da família alargada ou entre famílias) adquirem, em certos contextos, uma importância vital, moldando emocional- mente as relações entre parentes.

A análise da articulação entre as expressões emocionais e os interesses materiais contribui igualmente para clarificar os sentidos e significados que podem assumir os conceitos de ―poder‖, ―submissão‖, ―autonomia‖, ―fidelidade‖ e ―dependência‖ no contexto cultural e social em observação, esclarecendo-nos acerca das diferenças que existem frequentemente entre os valores culturais e as representações sociais e as práticas concretas onde quotidianamente se expressam relações de poder, autonomia e independência ou dependência. Podemos compreender a particular relevância desta ideia na análise das questões de género (tema central na análise das relações fami- liares), onde não fazia sentido falar de ―relações de poder‖ (autonomia ou dependên- cia) sem contextualizar a especificidade desta dinâmica relacional no caso particular que se estuda. Neste sentido, as relações de poder devem ser compreendidas não apenas em termos de uma avaliação objectiva (se é que tal é possível) da capacidade de controlo de recursos materiais e humanos, mas, igualmente, em termos da autoper- cepção que os membros da família têm do poder que exercem ou ao qual se submetem. Para compreender todas estas questões, as conversas que mantivemos com os diferentes membros das famílias que estudámos versaram assuntos muito diversos, procurando-se saber que actividades desenvolviam, quais as suas ambições (os seus sonhos), as escolhas e opções que fizeram e quais os constrangimentos sentidos, a sua experiência de vida em múltiplas dimensões existenciais e ao longo do tempo. Paralelamente, observámos os membros da família nos seus rituais comuns e rotinas domésticas. Participámos em convívios e em conversas. Preocupámo-nos, sempre, em situar cada um dos membros ―na família‖, na sua relação com os restantes membros e na sua relação com o exterior. Em suma, procurou-se observar o ―todo‖ e as ―partes‖ nas suas inter-relações.

Ao longo de toda a pesquisa procurámos situar a família e os seus diferentes membros no tempo, reconstruindo, para cada um, a sua ―história de família‖.10 Simultaneamente,

10 Cada membro da família tem a sua ―história de família‖, ou seja, interpreta à sua maneira

e por termos anteriormente verificado, na investigação que realizámos sobre famílias deslocadas de guerra em Maputo (cf. Bénard da Costa 1995), que a dispersão espacial era uma estratégia de sobrevivência e reprodução social recorrente, procurámos situar a família no ―espaço‖, de forma a compreender as relações que se estabelecem entre parentes que não residem na mesma ―casa‖. Esta contextualização temporal e espacial permitiu captar, de uma forma inter-relacionada, as dimensões envolvidas nas práticas e nas relações familiares na sua interacção com o contexto envolvente.

Outro aspecto, intimamente relacionado com tudo o que se tem vindo a referir neste capítulo e que considerámos fundamental analisar, foi o dos recursos disponíveis e que podem ser mobilizados pelas famílias ou pelos indivíduos no processo de sobrevi- vência e reprodução social. Este argumento sedimenta-se na ideia defendida por Bebbington segundo a qual

[os bens (assets)] ou o que eu chamo de capitais neste enquadramento — não são simplesmente recursos que as pessoas usam na construção de meios de subsistência: são bens que lhes dão a capacidade de ser e de agir […] são também a base do poder dos actores para agirem e para se reproduzirem, contestarem ou modificarem as normas que regem o controlo, a utilização e a transformação dos recursos (1999: 2022).

Na sua análise, Bebbington distingue cinco tipos de recursos ou capitais: os produzidos, os humanos, os naturais, os sociais e os culturais — dos quais se destacam os simbólicos —, considerando, como já referimos, de igual importância os recursos disponíveis, os meios de os mobilizar, defender e manter, e a capacidade de os transformar em rendimentos, dignidade, poder e sustentabilidade (cf. Bebbington 1999: 2022 e 2028-29).

A presente dissertação socorre-se igualmente do quadro teórico e conceptual do mesmo autor (1999: 2022-23), utilizando o conceito de recursos num sentido amplo: os recursos não são apenas os meios através dos quais os indivíduos constroem as suas vidas, mas também são o reflexo e os componentes do sentido de vida, criados pelos próprios indivíduos através das suas estratégias. Os conceitos de ―acesso‖ e de ―capital social‖ constituem elementos-chave em toda a análise deste autor, pois considera que

Para a determinação das estratégias de subsistência, o acesso a outros actores é conceptualmente mais relevante do que o acesso aos recursos materiais, uma vez que essas relações se tornam praticamente mecanismos sine qua non, por meio dos quais os recursos são distribuídos e reclamados e por meio dos quais as lógicas

sociais, políticas e de mercado mais vastas, que comandam o controlo, uso e trans- formação dos recursos, são reproduzidas ou modificadas (Bebbington 1999: 2023).

Toda a problemática dos recursos tem de ser analisada de uma forma processual e dinâmica e numa dupla perspectiva: a da família e a dos indivíduos que a compõem. Numa família há recursos comuns e partilhados, ou mobilizados, por todos os seus membros de igual forma e outros recursos que são preteridos ou subaproveitados. Há recursos comuns que têm uma ―distribuição‖ desigual pelos diferentes elementos da família e que pode variar no tempo e no espaço e de acordo com os referentes culturais que os membros da família são capazes de mobilizar. Há também recursos que são mo- bilizados por uns dos membros da família, mantidos por outros e transformados por outros ainda. Face aos recursos disponíveis são definidas estratégias baseadas em opções que podem ser irreversíveis e determinantes para a sobrevivência e existência futura da própria família. Por outro lado, não podemos esquecer que os membros de uma família dispõem por vezes de recursos individuais que podem mobilizar para ser- vir interesses exclusivamente pessoais e não do grupo, ou que pode verificar-se a situa- ção oposta. Por último, e uma vez que ao longo da história de uma família os recursos disponíveis se alteram, tal como acontece com a posição relativa de cada um dos mem- bros da família face aos mesmos, a análise deve ser feita numa perspectiva diacrónica. Em conclusão, salientamos que, para se compreenderem as estratégias de sobre- vivência e reprodução social das famílias que habitam na periferia de Maputo, a investigação tem de incidir necessariamente: (i) nas relações e nas dinâmicas internas da família, analisando interesses materiais e emoções na sua reciprocidade; (ii) nas relações entre a família e o contexto; (iii) nos recursos disponíveis (na família e externos à família); (iv) nos processos através dos quais a família e/ou os indivíduos que a compõem mobilizam os recursos disponíveis.

Mesmo cingindo o estudo ―apenas‖ às estratégias de sobrevivência e reprodução social das famílias, é impossível analisar todos os elementos (relações, dimensões, recursos, dinâmicas e processos) que integram este complexo ―edifício‖. Há que fazer opções analíticas e destacar para a investigação apenas os elementos que se afiguram como essenciais para a problemática em estudo. De entre estes, destacamos:

— a estrutura familiar: formas de organização (dispersão ou concentração), hierarquias de coordenação;

— as relações familiares: graus de coesão e de desestruturação, identidades e processos de identificação simbólicos;

— as diferentes actividades geradoras de bens ou rendimentos: trabalho assalariado e não assalariado no sector formal e informal, produção de subsistência;

— os recursos humanos disponíveis, as suas respectivas capacidades e o seu grau de mobilização (idade, estatuto, saúde, educação);

— os recursos que se relacionam com o património (entendendo-se este termo no sentido mais amplo possível);

— as redes sociais em que a família está integrada, ou às quais pertencem indivíduos da família.