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Moçambique, Maputo e os ―bairros de caniço‖

3.1. Ruralidade e urbanidade

Como se poderá verificar nos capítulos que se seguem, e como já mencionámos, a dispersão geográfica dos membros de uma família e a existência de uma ―migração circular‖53 entre o campo e a cidade constituem algumas das características essenciais

das estratégias de sobrevivência e reprodução social das famílias estudadas.

Migrações, mobilidade e separação de famílias por períodos mais ou menos longos não constituem fenómenos novos em África (cf. Hance 1970, Little 1974, Tabutin 1988, Stren e White 1989). Estes fenómenos, particularmente as migrações e o ―exôdo rural‖, em estreita relação com os processos de urbanização, têm merecido especial atenção por parte dos estudiosos (cf. Lipton 1977 Cobridge 1982, Coquery-Vidrovitch 1988, Gugler 1988). Da mesma forma, desde a Segunda Guerra Mundial, as chamadas ―teorias do desenvolvimento‖ têm abordado as relações entre o meio rural e o meio urbano.

Numa primeira fase e até finais dos anos 60, estas teorias são dominadas pelos teóricos da modernização e, para estes autores (Smelser 1964, Rostow 1964, Levy Jr. 1967, Coleman 1968), o desenvolvimento deriva da industrialização e esta última está intima- mente associada à urbanização, sinónimo da modernização da sociedade. A industriali- zação, como ―motor‖ do desenvolvimento económico e social dos países, é a ―palavra de ordem‖ e a população rural é considerada como ―mão-de-obra‖ e reserva de tra- balho para a indústria e para a agricultura comercial. Esta noção de uma economia dualista que domina as estratégias de desenvolvimento em muitos países vai ser seve- ramente criticada pelos teóricos da escola da dependência nos anos 60 e 70 (Frank 1967, Dos Santos 1971, Amin 1976).

Os teóricos da dependência criticam a teoria da modernização, nomeadamente argumentando que o crescimento urbano se baseia na exploração do mundo rural e que poderia levar ao subdesenvolvimento e não ao desejado crescimento económico

53 De acordo com Han van Dijk, Dick Foeken e Kiky van Til: ―A migração temporária é fre-

quente na África subsariana, sobretudo na forma de migração sazonal ou circular. A migração sazonal está geralmente associada ao tipo rural-rural, enquanto que a migração circular tem um carácter rural-urbano-rural. Contudo, nem sempre a distinção entre ambas é clara, já que a migração circular também pode ser de natureza sazonal‖ (2001: 12).

(cf. Jerve 2001: 91). A tese do urban bias é defendida por Michel Lipton (1977 e 1988), que argumenta:

É geralmente necessário ter uma agricultura em grande escala e desenvolvida para se poder ter um desenvolvimento alargado e bem-sucedido de outros sectores […]. Excepto em casos de países tão afortunados que tenham ouro ou petróleo, a po- breza é um obstáculo à industrialização rápida e generalizada (1988: 49).

Durante as décadas de 70 e 80, as agências de desenvolvimento começaram a reorientar as suas prioridades para o desenvolvimento rural. Os teóricos do desenvolvimento, nesses anos, inspirados pelos exemplos japoneses e sul-coreanos, defendiam que os investimentos deveriam concentrar-se prioritariamente no sector agrícola. Os investi- mentos na agricultura e o consequente aumento da produção e da produtividade agrí- cola permitiriam cobrir as necessidades alimentares de uma população urbana em cres- cimento acelerado, possibilitando ainda o aumento do poder de compra no meio rural, o que se traduziria num crescimento da procura de produtos industriais e de know-how. A conjugação destes factores estimularia o crescimento económico e o desenvolvi- mento urbano. Esta teoria inverte a perspectiva dos teóricos da modernização, pois apresenta o desenvolvimento urbano como consequência do desenvolvimento rural (cf. Jerve 2001: 90-92).

Embora estas teorias sejam opostas, ambas apresentam modelos onde as relações entre o mundo rural e urbano são centrais. Este facto influenciou os investigadores que se debruçam sobre a problemática do desenvolvimento, pois os estudos na década de 90 (cf. Baker 1990, Baker e Pedersen 1992) têm centrado a sua análise na dinâmica destas relações e na sua interdependência e simbiose. No entanto, contrariamente ao que seria de esperar, e como Jerve salienta,

O discurso sobre a pobreza centrou-se bastante menos na ligação rural-urbano. Os estudos desenvolvidos tendiam a apresentar uma imagem estática de duas categorias de pobreza, urbana e rural. […] Os recenseamentos registaram informa- ção socioeconómica relativa aos agregados, classificada de acordo com o local de residência desses agregados. Os guiões dos recenseamentos não estavam prepa- rados para apreender o facto de as unidades familiares em sociedades sob tensão ou em rápida mutação poderem adoptar um vasto leque de estratégias, incluindo a de ter um pé na economia rural e o outro numa economia urbana, ou mesmo estrangeira (2001: 92).

Não tem sido apenas nos estudos sobre pobreza que as populações urbanas e rurais africanas têm sido analisadas e compreendidas como se entre elas existisse um fosso intransponível. Até há bem pouco tempo as populações rurais e as populações urbanas eram consideradas como essencialmente diferentes. Tal decorria da adopção de um quadro analítico dualista e dicotómico que considerava estes dois mundos e as pessoas que os habitam como realidades espacialmente separadas, mas também opostas e mu- tuamente exclusivas, nas suas características culturais e sociais.

Dentro desta perspectiva teórica dualista, a urbanização está intimamente associada ao crescimento económico, à riqueza, à modernização, à inovação, à mudança e ao indivi- dualismo. O mundo rural é associado à ―tradição‖, à continuidade e, de alguma forma, ao comunitarismo (cf. Andersson 2001: 6). Por último, os indivíduos que vivem nestes mundos são apreendidos enquanto elementos de unidades de análise estanques e de fronteiras bem delimitadas: os agregados familiares.

Porém, tal não significa que o movimento de pessoas tenha sido descurado. Pelo contrário, e como se salientou, a análise dos movimentos migratórios entre o campo e a cidade em África caminha a par com a análise do processo de urbanização que este continente tem sofrido e que tem sido intenso.54 A maioria destes estudos centra-se no

processo de urbanização e nas mudanças demográficas e de comportamento que supostamente daí decorrem. Algumas excepções, como, por exemplo, Jean Marc Ela (1983), tentam compreender as ―permanências‖ que explicam a manutenção de com- portamentos ―rurais‖ e ―tradicionais‖ em meio urbano em África. A dada altura, este autor afirma: ―Talvez o africano nunca se tenha sentido à vontade na cidade dos brancos. Ele vive aí como no mundo dos outros. A cidade não lhe pertence‖ (1983: 71). Assim, o ―africano‖ ou é considerado ―urbano‖ e essencialmente distinto nos seus comportamentos, valores e modos de vida do africano rural, ou então ―a cidade não lhe pertence‖, habita-a, criando nela ―espaços de ruralidade‖: ―tudo se passa como se as aglomerações urbanas fossem na realidade uma sucessão de grandes aldeias que envolvem a cidade europeia‖ (Ela 1983: 49).

54 Para além dos autores e trabalhos mencionados (Hance 1970, Little 1974, Cobridge 1982,

Coquery-Vidrovitch 1988, Tabutin 1988, Gugler 1988, Stren e White 1989, Balandier 1963, Ela 1983) podemos ainda referir Jamal e Weeks 1988, Gapyisi 1989, Carr-Hill 1990, van Dijk, Foeken e van Til 2001, Baker 1990, Tacoli 2001, Daley 2001.

Este dualismo tem impedido o estudo do ―movimento‖ dos actores sociais. Ou, melhor dizendo, dos actores em movimento: entendendo este movimento como parte do actor e das suas estratégias, como um continuum e não como uma ruptura entre mundos ou entre tempos e espaços. ―O movimento, i.e., o serem móveis, não é uma ruptura com o seu passado ou um colapso do seu meio social normal. Pelo contrário, estes movimentos são parte integrante das suas vidas quotidianas‖ (van Dijk, Foeken e van Til 2001: 14).

Todavia, este tipo de análise dualista em África tem-se confrontado com algumas outras dificuldades. A taxa de urbanização elevada de muitos países africanos não é acompanhada pelo crescimento económico desses mesmos países e, para a maioria dos urbanos africanos, ―ser urbano‖ não significa ser mais rico, mais moderno, mais individualista ou simplesmente assalariado. Por isso a cidade africana já foi definida como um ―sistema generalizado de carências‖ cuja ―incoerência é ultrapassada graças a diversas soluções como o ‗sector informal‘ ou os sistemas de trocas (de pessoas, bens ou dinheiro) entre os meios urbano e rural‖ (Gendreau e Le Bris 1990: 100).

Desta circulação constante de pessoas entre o mundo rural e o mundo urbano e da própria especificidade espacial e arquitectónica das cidades africanas55 deriva uma

dificuldade analítica: encontrar na cidade africana indivíduos que se ―encaixem‖ nas classificações dicotómicas clássicas ou — ainda mais complexo — encontrar famílias onde estas características sejam partilhadas pelo grupo.

As análises dicotómicas e estruturalistas da realidade que consideram o mundo urbano e o mundo rural como esferas distintas e mutuamente exclusivas nas suas caracte- rísticas económicas, sociais e culturais têm menosprezado o nível dos actores que se movem e circulam entre estes espaços (geográficos, culturais, sociais e económicos) e para quem estas oposições, ao nível das práticas sociais, fazem pouco sentido. A grande maioria das pessoas e famílias contactadas no contexto dos nossos estudos opera em ambas as esferas e a oposição dicotómica entre o mundo urbano e o mundo rural não parece ser particularmente pertinente para compreender a forma como estas

55 Esta especificidade consiste numa estrutura dualista de herança colonial que compreende a

―cidade de cimento‖ e extensas áreas circundantes, periurbanas e periféricas, normalmente não planificadas, carenciadas de infra-estruturas e serviços, expandindo-se em extensão e não em altura e onde se praticam por vezes actividades agrícolas.

famílias organizam as suas estratégias de sobrevivência e reprodução social. As redes sociais em que os seus membros circulam ligam de forma íntima e num continuum o mundo rural e o mundo urbano. Esta circulação entre espaços e este movimento faz parte da sua vida e é por neles se movimentarem que conseguem viver. Como salienta Morten Jerve,

Para além disso, a migração circular entre as esferas rural e urbana aumentou, tal como aconteceu com o número de agregados e famílias — muitos dos quais são pobres — que operam em ambas as esferas […] há também dados que atestam que o apoio de base rural constitui um elemento importante do modo de vida dos pobres de contextos urbanos (2001: 89).

Vários autores, sobretudo os que se debruçam sobre o meio urbano, constataram esta evidência, mas a maioria apenas refere de passagem a importância dos recursos rurais nas estratégias de sobrevivência das famílias urbanas. Se existem muitos estudos sobre o chamado ―exôdo rural‖ e, de uma forma geral, sobre os movimentos migratórios entre o mundo rural e o mundo urbano em África, existiam, até recentemente, poucos estudos aprofundados que ajudassem a percepcionar a real importância das activi- dades realizadas em meio rural na sobrevivência das populações urbanas. Uma das importantes excepções a esta regra é o estudo pioneiro de Jamal e Weeks (1988) que fala do hiato rural-urbano em rápido desaparecimento (vanishing rural-urban gap). A consciência desta lacuna e de que ―as pessoas não pensam de acordo com os modelos bipolares que os cientistas desenvolveram para elas‖ (Bruijn, van Dijk e Foeken 2001: 3) levou alguns autores56 a tentarem ultrapassar os dualismos e as dico-

tomias que os conceitos clássicos pressupunham, procurando encontrar outros conceitos e outros termos que captem, de forma mais satisfatória, a dinâmica da realidade tal como ela é vivida e experimentada todos os dias pelos actores sociais, nas suas práticas e estratégias de vida. Surgem, assim, as seguintes expressões: modos de

56 Refere Wim van Binsbergen que ―Em África, a sociedade aldeã ainda constitui o contexto no

qual muitos dos urbanitas actuais nasceram e para o qual alguns irão quando se reformarem, aí ficando até morrerem. Até há pouco tempo, a dicotomia entre cidade e aldeia dominava a antropologia africanista. Hoje admitimos que, tendo em conta o constante movimento de ideias, bens e pessoas entre a aldeia e a cidade, bem como a crescente continuidade económica, institucional, política e económica entre ambas, essa dicotomia perdeu muito do seu valor explicativo. A cidade e a aldeia tornaram-se complementares, se não mesmo alternativas convergentes na vivência social dos africanos de hoje; a sua diferença tornou-se uma diferença de grau, já não é absoluta‖ (2000: 7).

vida multi-espaciais, culturas em viagem, mobilidade das formas e representações ideológicas da mobilidade (multi-spatial livelihoods, traveling cultures, mobility of forms e

ideological representations of mobility, cf. Bruijn, van Dijk e Foeken 2001: 3).

No entanto, importa lembrar que o abandono de uma perspectiva analítica dualista não implica a aceitação de uma perspectiva indiferenciada da realidade. Entre o mundo rural e o mundo urbano existem inúmeras diferenças a diversos níveis, mas essas diferenças traçam-se num continuum, não pressupõem fossos intransponíveis entre realidades, diluem-se e afirmam-se de uma forma dinâmica, através de múltiplos elementos: pessoas, produtos, ideias, imagens e imaginário, símbolos e ideologias (cf. Binsbergen 2000: 7).

Finalmente, convém distinguir a percepção que os investigadores têm desta inter- -relação (urbano-rural) e a percepção dos actores sociais sobre essa mesma realidade. O facto de estes últimos não pensarem ―de acordo com modelos bipolares‖ não significa que a dicotomia entre campo e cidade não seja relevante, na medida em que molda a conceptualização que os actores têm da sua vida e da sua experiência. Como refere Binsbergen,

A imagem idealizada da aldeia representa aqui um contexto imaginário (que já não se encontra nas aldeias concretas de hoje), onde a produção e a reprodução são viáveis, fazem sentido e são levadas a cabo por pessoas que — organizadas segundo linhas etárias e de género, bem como de liderança histórica (―tradicional‖) — se tornam uma comunidade efectiva por meio de sistemas de parentesco, simbolismos, rituais e cosmologias que permanecem. Nesta configuração, o que é vital é que o ritual tem a capacidade — em grande medida através de meios não verbais — de criar uma concepção dos corpos dos membros do grupo residencial segundo a qual estes contêm ou têm neles inscrito um sentido comum, uma identidade comum, e apesar de o corpo se mover no tempo e no espaço esta marca indelével permanece, para ser transportada para novos contextos (2000: 7).

Em conclusão, podemos referir que a análise dicotómica que aqui criticámos e que dis- tingue nas suas características económicas, sociais e culturais as populações rurais das populações urbanas não nos permite a compreensão das estratégias, práticas, valores e identidades dos actores sociais que são objecto do presente estudo. A identidade das famílias não se compreende sem o referente fundamental que constitui a ―terra de ori- gem‖ e, efectivamente, muitos dos membros destas famílias distribuem-se por estes es- paços geográficos distintos, entre os quais existe por vezes uma permanente circulação

de pessoas e bens. A forma como esta distribuição e circulação se processa será o tema em análise no próximo capítulo, onde tentaremos compreender estas famílias simulta- neamente rurais e urbanas no seu habitat, nos seus modos de vida e nas suas identidades.

3.2. Naturalidades e percursos, entreajuda familiar e relações com a