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Estudar famílias na periferia de Maputo

1.3. Valores, moralidades e lógicas plurais

Todos os homens, ontem como hoje — herdeiros dos mesmos pressupostos e das mesmas exigências —, convivem com o desconforto do cruzamento dos dois impulsos, incon- fundivelmente sentidos: o da fidelidade e o do interesse (Casal 2001: 123).

O desenvolvimento de estratégias de sobrevivência e reprodução social das unidades familiares constitui um processo complexo que se estrutura essencialmente a partir das relações que se estabelecem entre membros de uma família e das condições sociais e materiais em que vivem. Estas relações envolvem ―trocas‖ de diversas dimensões que se processam tanto no seio da família como com o exterior.16 Essas trocas, de diversa

ordem, natureza e tipo, onde se transaccionam bens materiais, pessoas, poderes, afec- tos, símbolos e signos, são regidas por códigos normativos e sistemas de valores que importa decifrar para se compreenderem as questões que se relacionam com a proble- mática desta tese. Torna-se, assim, necessário reflectir em torno de questões que permitem

Compreender a lógica do valor, dos valores, que polarizam a vida social: o valor dos homens e o valor dos objectos, isto é, de um lado, a honra, a fidelidade, a aliança, a palavra livre, verdadeira, a dádiva, e a generosidade… e, do outro lado, o cálculo, o interesse, o contrato, a dúvida, a mercadoria […] a lógica desta oposição de valores afecta, ontem como hoje, todos os homens; o homem experi- menta, sem confusão, dois tipos de constrangimentos: o constrangimento da honra e da fidelidade e o constrangimento do interesse e do cálculo, o constrangimento do valor dos sujeitos e o constrangimento do valor dos objectos (Casal 2001: 102).

Estas questões adquirem particular pertinência quando se analisa as estratégias de sobrevivência e reprodução social ao nível das famílias que implicam acções, compor- tamentos e atitudes onde ―interesses‖ e ―cálculo‖ coexistem de forma articulada com solidariedades e reciprocidades. No contexto social em análise, a sobrevivência e a

16 Refere Pierre Beaucage: ―Pode-se dizer que a noção de troca, ao lado das noções de estrutura

e de função, funda toda a antropologia social do século XX. Para nos convencermos basta percorrer os trabalhos que marcaram a época: a monografia de Malinowski sobre as cerimónias do kula ([1920] 1963), o estudo comparado de Lévi-Strauss sobre os sistemas de parentesco ([1949] 1967) ou a obra de Leach sobre a organização política das terras altas da Birmânia (1964)‖ (1995: 1).

reprodução social tornam particularmente visíveis as inter-relações de comporta- mentos e atitudes regidos por ―interesses‖ e por ―lógicas de mercado‖ com comporta- mentos ―solidários‖ regidos pela ―lógica da dádiva‖. A articulação entre estas dimen- sões é patente a diversos níveis e a sua análise exige uma reversão do discurso antropo- lógico que tendencialmente (sobretudo até à década de 60) construiu uma oposição entre as chamadas ―lógica de mercado‖ e ―lógica da dádiva‖ (Geschiere 1994: 110). Numa primeira abordagem, tendo em mente a ―dádiva‖ e o ―mercado‖ e as relações e os valores normalmente associados a estes sistemas de trocas, podemos distinguir dois tipos de comportamentos que, apesar de diferentes, se articulam nas práticas e nas estratégias das famílias estudadas. O primeiro tipo de comportamentos, predominante nas ―trocas‖ que os membros das famílias desenvolvem com o ―exterior‖ (mercado), envolve atitudes que são dominadas essencialmente por ―interesses‖ e ―lógicas mercantis‖. Nestas ―trocas‖ os membros das famílias desenvolvem uma série de expe- dientes que muitas vezes implicam o recurso a vários esquemas que os próprios designam por ―desenrascanço‖ e que podem em certos casos ser considerados, no contexto social em questão, pouco éticos — mentiras, fraudes, roubos, crimes, vio- lência, prostituição, enganar o próximo (sendo ele familiar, vizinho ou amigo) —, mas que podem também ser ignorados, aceites ou até louvados.17 O segundo tipo de

comportamentos, marcados por relações de reciprocidade (dádiva) envolvem ―trocas‖ que se processam no interior da família e que pressupõem uma ética em que pre- dominam os valores da verdade, da honestidade, do altruísmo e do respeito pelo próximo. Sem estes últimos valores, a confiança no ―outro‖ seria impossível, tal como seriam impossíveis de estabelecer e manter interdependências e reciprocidades que constituem o fundamento da existência de qualquer unidade, grupo ou rede social. Não confundamos no entanto a natureza distinta destes pólos com uma suposta exclusividade. Pelo contrário, não existem elementos ―puros‖ e eles são perma- nentemente articulados estrategicamente pelos indivíduos que podem ter ―interesse‖

17 Durante os trabalhos de campo foi possível ouvir comentários em que o roubo, a mentira e o

engano do próximo eram desculpados e valorizados como características essenciais do bom negociante e a frase ―estão a desenrascar-se‖ legitimava muitos desses comportamentos. Constatou-se igualmente que a prisão era considerada como um processo que visava simplesmente enriquecer os guardas e agentes da autoridade que têm de ser subornados para que o preso recupere a liberdade.

em ser ―solidários e verdadeiros‖ e simultaneamente estabelecer ou manter relações de reciprocidade por puro ―cálculo‖ ou egoísmo.

A análise da gestão e do equilíbrio desta oposição de valores é complexa e ultrapassa a explicação analítica fornecida pela noção de ―lógicas múltiplas‖ avançada por Olivier de Sardan (1998: 125) e de ―pluralismo moral‖ de Martin (1991: 332). Não estamos perante uma acção que possa ser avaliada apenas em função de diferentes lógicas e por isso considerada simultaneamente ―boa‖‘ e ―má‖ face à situação que a determina. Estamos perante acções humanas que, como quaisquer outras, são marcadas por uma gestão permanente da escolha de valores muitas vezes contraditórios, independen- temente do maior ou menor grau de ―pluralismo moral‖ que as possa explicar. Exemplificando, não estamos apenas perante uma sociedade onde a dádiva coexiste com lógica mercantil e onde é possível explicar comportamentos ―aberrantes‖ de mercado através de lógicas de solidariedade. Estamos perante uma sociedade onde, como em muitas outras, a dádiva pode espelhar simultaneamente reciprocidades e jogos de cálculo, solidariedades e lógicas mercantis. Da mesma forma, nas trocas mercantis podem transparecer articulações complexas onde os interesses materiais se conjugam com elementos afectivos e simbólicos. Assim, no seio de uma mesma família, ou entre famílias aliadas, as ―lógicas de mercado‖ coexistem com as relações de reci- procidade (contribuições e redistribuições) que se criam e estabelecem, implicando uma articulação de valores complexa e por vezes contraditória: a confiança, a verdade e a solidariedade a par com o cálculo, a desconfiança, a mentira e o puro interesse material (monetário).18

Normalmente, existe uma predominância de um certo tipo de comportamentos e valores face a determinadas relações e momentos de troca que permite estabelecer dife- renças entre reciprocidades e interesses, dádiva e mercado, honra e contrato. Existem também diferenças entre comportamentos solidários baseados em relações de con- fiança e comportamentos movidos por ―interesses egoístas‖, onde o utilitarismo e a ―desconfiança do outro‖ são intrínsecos à relação estabelecida. Porém, face à multipli-

18 Peter Geschiere desenvolve uma interessante análise sobre as articulações que se processam

entre as relações de parentesco/reciprocidade e as relações de mercado/monetarizadas e afirma: ―É especialmente para garantir a sua posição na esfera da ―afeição‖ que um homem é obrigado a ganhar dinheiro. Sem dinheiro ele não pode prestar provas nas negociações que constituem o ponto culminante dos ritos de parentesco‖ (1994: 91).

cidade de lógicas em presença no contexto em análise, onde coexistem diversos quadros ideológicos de referência que criam uma pluralidade moral, os compor- tamentos dos actores tendem a traduzir, por um lado, uma articulação cada vez maior de valores contraditórios e, por outro, uma maior diversificação de atitudes face às diferentes situações e aos diferentes tipos de relações sociais que estabelecem.19

Todo este processo é articulado de forma complexa, dinâmica e por vezes ambígua pelos actores que o protagonizam e é, além disso, socialmente ―aceite‖ e, obviamente, passível de concretização. A aceitação social da contradição entre práticas onde trans- parecem valores antagónicos não significa que estejamos perante um contexto social ‗‗amoral‖ (cf. Martin 1991: 332). Significa apenas que, para a maioria da população que interage neste contexto, é ―legítimo‖ que os actores, perante certas oportunidades, circunstâncias, indivíduos, grupos ou redes sociais, desenvolvam comportamentos que, noutras situações ou perante outros interlocutores, são considerados, por essa mesma população, ―imorais‖. Significa igualmente que esses comportamentos podem ser interpretados de múltiplas formas de acordo com diferentes representações sociais e culturais possíveis no contexto e que, por isso, podem, de acordo com estas diferentes lógicas a diferentes níveis, ser e não ser condenáveis socialmente. Significa também que, face ao ―pluralismo moral‖ da realidade social em análise, a natureza das relações sociais existentes, entre indivíduos ou grupos, é um dos elementos fundamentais que condicionam o julgamento valorativo de certas acções ou comportamentos ao nível das representações sociais.

Por outro lado, a aceitação social desta contradição de valores decorre também da sua ―normalidade‖ e ―necessidade‖. Ou seja, no contexto em análise, a maioria dos actores partilha dificuldades similares e desenvolve com os outros actores relações díspares, de durabilidade variável (os ―aliados‖ de hoje podem ser os ―inimigos‖ de amanhã), onde se expressam as contradições referidas. E são estas relações e estes comportamentos

19 Olivier de Sardan acrescenta o seguinte a propósito deste assunto: ―A coexistência de regras e

valores múltiplos não é, evidentemente, um fenómeno unicamente africano. Mas as sociedades pós-coloniais do continente negro caracterizam-se por uma pluralidade particularmente grande de normas. Elas são o resultado da história recente do continente: à imensa diversidade de situa- ções pré-coloniais sobrepôs-se um sistema jurídico, administrativo e político a diferentes veloci- dades tão característico da colonização, depois um Estado pós-colonial moldado parcialmente por referências ocidentais e parcialmente por referências soviéticas e que em quarenta anos conhece sucessivamente partidos únicos, regimes militares e convenções nacionais‖ (2000: 13).

que lhes dão a possibilidade de, como os próprios referem, ―desenrascar-se‖, ou seja, vencer as dificuldades quotidianas e sobreviver.20

A concretização destas práticas é possível porque existem inúmeras redes sociais (entre as quais destacamos as igrejas) onde os actores se podem inserir e por entre as quais, efectivamente, circulam. A mobilidade espacial dos actores, a flexibilização das estru- turas familiares, a pluralidade de grupos aos quais se pode pertencer e o carácter efé- mero de muitas destas relações de pertença são características que facilitam a circu- lação e possibilitam as contradições de valores nas práticas dos actores.

Assim, a imprevisiblidade, a insegurança e a complexidade social resultam também das práticas sociais dos actores cujo comportamento é ditado pelas circunstâncias do quotidiano do contexto em que se inserem. Da mesma forma, dentro de um grupo, rede ou unidade social, os actores desenvolvem, nas suas práticas e estratégias de sobrevivência e reprodução social, atitudes controversas que oscilam entre o reforço e a manutenção de alianças antigas baseadas na interpretação de códigos normativos ―ancestrais‖ e práticas ―inovadoras‖, que podem ser, ou não ser, socialmente aceites, mas que se o são, pressupõem a coexistência de diferentes códigos normativos e/ou a transformação dos códigos normativos ancestrais. E ambas as coisas acontecem e, com elas, a mudança social.

Dentro da família, a transformação ―normativa‖ possibilita uma certa liberdade e versatilidade comportamental que acompanha e também cria situações imprevisíveis que fazem parte do quotidiano. Neste último caso, os papéis de cada um dos membros da família podem ser alterados e as articulações entre fidelidades antigas e interesses presentes são objecto de múltiplos jogos que põem a descoberto inesperadas relações de poder. Paradoxalmente, é esta última atitude (de criação e inovação) que garante muitas vezes a segurança, pois através dela a família, e cada um dos membros indivi- dualmente, consegue de facto sobreviver e reproduzir-se socialmente. Mas a segurança do grupo, neste caso a família, só existe quando é suportada por referências ―normativas plurais‖ que sustentam as práticas inovadoras.

20 Como salienta Theodore Trefon, ―Os meios — corrupção, roubo, extorsão, conluio, desfalque,

As contradições entre fidelidades e interesses fazem parte de qualquer ser humano. Mas a imprevisibilidade do contexto social, associada a uma ―pluralidade particu- larmente grande de normas‖, dilata, por vezes de forma excessiva e incontrolável, essa contradição. Nestas circunstâncias, as referências normativas que possibilitam a existência de atitudes inovadoras e dinâmicas deixam de fazer sentido e quebram-se as ―fidelidades‖ que elas próprias instituíam. Quando esta articulação se quebra, inviabiliza-se a eficácia social dessas atitudes inovadoras. Neste caso, os actores que as protagonizam ou são marginalizados pelo grupo que os abandona à sua sorte, ou se marginalizam eles próprios, abandonando o grupo, inserindo-se se possível noutros grupos ou desenvolvendo processos de autodestruição (como o excesso de consumo de álcool ou drogas, ou a loucura). Outra hipótese para estes indivíduos é saírem do seu contexto social e desenvolverem novas relações sociais e/ou eventuais processos de ―individuação‖ noutras regiões. Em qualquer dos casos, estes actores sociais são destituídos (na prática ou formalmente) do poder que detinham face aos restantes elementos do grupo e excluídos do lugar social que ocupavam. Este processo pode no entanto ter retrocessos, pois, em última análise, a sua evolução depende sempre da interpretação que os indivíduos fazem das suas próprias atitudes, das atitudes dos restantes elementos do grupo e da forma como interpretam as múltiplas referências normativas que regem as relações familiares.