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5 EXPERIÊNCIAS VIVIDAS NA ESCOLA DO TEATRO BOLSHOI NO BRASIL:

5.1 ENSINO

5.1.1 Filosofia de ensino

5.1.1.2 Metodologia

5.1.1.2.1 Relações pessoais

A relação professor/aluno na ETBB é visivelmente vertical, em que um dos polos (professor) detém o poder de decisão, como a metodologia utilizada nas aulas, as avaliações, a escolha dos elencos para os espetáculos, a forma de interação em sala de aula, entre outros. No outro polo (aluno) cabe a aceitação e submissão. É um receptor passivo. Desta forma, podemos dizer que as relações sociais nas aulas de dança na ETBB, mais especificamente nas aulas de dança clássica e dança contemporânea são quase que suprimidas, o que para Mizukami (2013) é coerente com as metodologias tradicionais de ensino. Entretanto, percebemos que os alunos, principalmente do núcleo de dança contemporânea, desejam instaurar uma relação ativa com seus professores e, ainda, que a aula de dança na ETBB possa ter e ser uma experiência de afeto positivo para todos. Esta experiência conforme Espinosa (2011) resulta na expansão da potência do ser, na construção de conhecimentos adequados sobre a natureza afetiva comprometida com a busca do bem estar comum a todos.

Nos depoimentos obtidos dos alunos deste núcleo, percebemos que na maioria das vezes os alunos são afetados mais por tristezas do que por alegrias. O testemunho do aluno Marcos ressalta que algumas posturas dos professores deixam os estudantes magoados e desestimulados:

Temos de ter uma mente muito forte pra ficar aqui, verdade, porque às

cara. Nem fala seu nome, olha e não te corrige. Mesmo que tu acertou

[sic] o passo, ele olha para o de trás, e falar parabéns pra ti nada... Pra você ficar com raiva! É inacreditável! Eu não sei qual é o método deles aqui na

escola, pra tentar ensinar, mas podes ter certeza que não funciona. Não pra todo mundo. Funciona para alguns, mas não é um funcionar bom,

é tipo forçando a competição, pra ser melhor do que outro. O nosso

próprio professor de clássico disse que adora fazer competição com a gente. Só que com a nossa turma não funcionava isso.

Para o aluno, as atitudes são violentas. As dificuldades no relacionamento professor-aluno influenciam diretamente o processo de ensino-aprendizagem. A aluna Carina diz que: “[...] eu não sei se é um dos melhores lugares pra formar boas

pessoas sabe? Eu acho que a Escola deixa a gente muito competitivo [...], acho um clima muito ruim, sabe? Às vezes um com o outro aqui dentro”. Amanda acredita que

acontece muita injustiça na ETBB, muitas vezes em função de relacionamentos, pois ela julga que existem os preferidos dos professores. Já o aluno Roberto sugere que:

“indicaria que... que os professores tivessem um acompanhamento com psicólogos [...]”, e acrescenta que isso “seria de muita ajuda para eles saberem como lidar com cada tipo de aluno. Ser mais abrangente na forma, mais abrangente não, mais específico na forma de lidar com cada aluno didaticamente [...]”.

Como vimos nestes depoimentos, todos externalizam algum tipo de descontentamento com os professores da ETBB. Verificamos que a insatisfação não está diretamente relacionada com a severidade por parte destes durante as aulas, mas sim pela sua falta de atenção com alguns alunos, bem como, pela ausência de um bom relacionamento entre professor e aluno. Na opinião dos estudantes, este afastamento é prejudicial ao processo de aprendizagem. Para eles, o cuidado do professor com o aluno é fundamental no processo de aquisição de habilidades e competências necessárias à formação em dança. Tais depoimentos nos levam a pensar sobre o papel e a importância do professor no dia a dia com seus alunos, para que uma relação de confiança seja estabelecida. Nessa perspectiva, o professor é o deflagrador de um processo que se inicia nele próprio e se estende aos alunos. Também observamos, principalmente a partir das análises das transcrições das entrevistas dos bailarinos do núcleo de dança contemporânea, que a falta de diálogo entre a gestão da instituição, o corpo docente e o corpo discente é outro ponto negativo na ETBB. Os ditos sugerem que as posições dos alunos, seus desejos e seus problemas são desconsideradas na relação com a escola.

Para tentar amenizar a situação, a professora Carla justifica dizendo que, em termos de relacionamento pessoal com os alunos, os professores da ETBB cometem alguns erros por não terem formação em pedagogia. Comenta, ainda, que há tentativas de melhorar este aspecto:

Eu tento fazer isso o tempo inteiro, acho que é um pressuposto básico no

ensino. Apesar de que temos diversidades culturais bem grandes entre os

professores, que são brasileiros e russos, existe isso. Então tem uma

forma de pensar dos russos, e tem uma forma de pensar dos brasileiros. Então eu acho que a maneira como lidar com o aluno é muito importante para fazer com que ele se torne um bailarino profissional,

com certeza. Faz toda a diferença [...] o tentar fazer correto, a gente está buscando [...].

A professora Roberta acredita que a ETBB nos últimos anos está melhorando nesse aspecto, pois considera que quando era aluna da Escola as dificuldades eram maiores em termos de relacionamento com os professores, principalmente com os russos. No papel de aluna, ela tinha medo de falar e pedir explicações. Hoje em dia, acredita que eles estão mais acessíveis: “Eu acho que agora olhando assim como

professora, eu acho que eles têm um pouquinho mais de liberdade, porque os professores já, como estão um tempo aqui na escola, eles já se adaptaram um pouquinho mais, né?”. Isto é um problema que se verifica no mundo da dança

clássica em geral.

Numa reflexão acerca do tema em questão, a renomada professora americana Susan Stinson revela: “Assim, compelida a olhar com mais atenção, reconheci que havia muito no ensino da dança que não era apenas banal, mas também desumanizador e muito perigoso” (STINSON, 1998, p.24). Os alunos da ETBB criticam os professores, sem citar nomes, por sua postura “desumanizadora”, mas valorizam uma única professora que atua na contracorrente:

A professora Sabrina110, que acho que foi a única professora do bem

que eu conheci aqui dentro de verdade. [...] é uma das melhores

professoras que tem aqui! Ela estudou dança, sabe? E trabalha formação

humana também, que é importante quando vamos pensar em ter formação

de bailarino” (Aluna Carina).

A aluna completa dizendo que ela “é maravilhosa, [...] é a única que é a mais

humana assim, sabe? Que não se deixa levar pelas coisas da escola, ela bate

110

muito o pé aqui na escola [...]”. Também o aluno Marcos faz ponderações similares,

reforçando o carinho e afeto dos alunos pela mesma profissional:

[…] a professora Sabrina. Que mulher maravilhosa, meu Deus! Ela é a pessoa mais iluminada desta escola com certeza. Tipo, ela que faz a gente

ter vontade de continuar aqui, de dançar, [...] Mas ela é maravilhosa, de conversar, de te entender, e de te fazer entender as coisas sem imposição […] (Aluno Marcos).

As considerações de Marcos sugerem que em muitos momentos os alunos pensam em desistir de estudar na ETBB pela falta de incentivo, de bom relacionamento e atenção por parte da maioria dos professores. Consideram tal ambiente desmotivador, como se vê: “[…] parece que eles combinam, que raiva” (Marcos). Este aluno clama por um modo de atenção que diz respeito ao cuidado dos professores com todos os alunos presentes em sala de aula, e não somente aos “preferidos”. Ele diz: “Sempre existe um preferido da turma. É a pessoa que ele

observa mais durante o ano, então acho muito difícil ver o crescimento de todo mundo deste jeito sabe?” (Marcos). A aluna Carina acrescenta: “[…] toda vez que for aquela coreografia, vai ser aquela pessoa, é raro eles trocarem as pessoas, falar agora: não, vamos testar fulano”.

Vislumbramos uma mistura de sentimentos de satisfação por estudar na ETBB com sentimentos de insegurança, de impotência, de não ter controle de situações dentro da Escola. Tal confusão parece ser algo comum na vida desses adolescentes que saem muito cedo de suas casas, deixam para trás famílias e amigos em busca do sonho de ser bailarino profissional. As falas dos alunos apontam claramente para uma necessidade pessoal relacionada à falta de carinho, afetividade e preocupação dos professores para com eles. Isso fica implícito quando exaltam somente uma mesma professora, por ser atenciosa, humana e incentivadora, conforme vimos em suas falas.

Os professores contratados pela ETBB para as aulas de dança clássica são russos (5), ucraniano (1) e brasileiros (5) com formação técnica pela mesma metodologia de ensino, enquanto a professora de teatro (1), que é a que eles falam com tanto carinho, tem uma formação artística e acadêmica na área de atuação (graduação, especialização e mestrado). Claro que formação universitária não é garantia de ensino humanizador, no sentido de dedicar atenção a todos os alunos de forma igualitária, porém, trata-se de uma experiência que coloca o indivíduo em

contato com diferentes literaturas e oportunidades de ação, as quais influenciam suas ações pedagógicas, para além de repetir com os alunos modos padronizados de ensino, ou seja, repetir a mesma metodologia que era praticada por seu próprio mestre. Por outro lado, o fato de ter uma formação em teatro, área onde a disciplina sempre foi encarada de modo muito diferente relativamente à dança clássica, é certamente relevante neste caso.

Se pensarmos que as crianças, para além do fato de estarem longe de casa, passam 4 horas do dia na escola de ensino regular, pegam o transporte da ETBB para irem para sede da escola almoçar, e depois ficam 4 horas em aulas de dança, podemos assegurar que estas crianças necessitam, sim, de afeto. Trata-se de uma rotina exigente, com muitas responsabilidades. Neste momento da vida, elas estão se construindo como seres humanos para além de bailarino e, portanto, por meio de suas experiências com o outro, elas se constituirão cognitiva e afetivamente. A emoção está presente em todas as instâncias da atividade educativa e trabalhá-la é condição para uma “educação integral”, conforme previsto no PPP da ETBB. As referências emocionais podem exercer influências positivas ou negativas na formação do aluno, e no caso dos alunos do núcleo de dança contemporânea parecem ser mais negativas, principalmente no que tange ao relacionamento com seus professores de dança clássica e contemporânea. Carvalho (2005) diz que as trocas sociais e emocionais apresentam grande peso sobre a construção e percepção de nós mesmos, e acrescenta que “não se pode ignorar a influência que um ser humano exerce sobre o outro, seja ele como público, aluno ou simplesmente alguém que está ao nosso lado” (p. 29).

Estas percepções foram de menor importância para os alunos do núcleo de dança clássica, porém no caso de Roberto, essa relação de distanciamento entre professor e aluno, que muitas vezes chega a ser uma relação ditatorial e que invalida a individualidade do aluno, marcou-o particularmente, levando-o a desabafar e recomendar uma intervenção por parte da direção e coordenação da ETBB. Estaria este aluno pedindo socorro, ao constatar que os professores não conseguem cumprir seus papéis educacionais ao atuar com diferentes crianças e suas variadas necessidades de aprendizagem? Estaria ele se colocando contra o processo de homogeneização da instituição? Ou revelando que as práticas de alguns profissionais podem deixar adolescentes com traumas e medos? O estudante

solicita uma atitude atenta dos professores em relação a cada aluno, que eles tratem cada encontro como sendo único e possibilitem que todos saiam satisfeitos das aulas.

O processo educativo em dança na ETBB é centrado no desenvolvimento de bailarinos virtuosos, o que na perspectiva dos alunos entrevistados não é suficiente, pois desejam atenção ao aprimoramento das potências humanas. O desenvolvimento das relações humanas ocorre mais fora das salas de aulas, entre os alunos, sem a presença dos professores.

A coordenadora acredita que são vários os momentos em que os alunos podem interagir entre si e fortalecer a sociabilização, como nos intervalos entre as aulas, na hora do almoço, ao final do período enquanto esperam pelo transporte escolar, entre outros. Como identificamos em sua fala:

[...] outro momento, por exemplo, é na troca de turno. Então quem já almoçou está esperando a van, nós temos um espaço que tem uma televisão e na televisão não passa programa a gente sempre coloca vídeos de balé. Eles estão conversando e trocando, um faz um passo o outro olha e repete, isso eu vejo como uma forma positiva de sociabilização. Essa sociabilização é tão forte nesse espaço Bolshoi, e ele começa a pertencer ao aluno como minha casa [...].

[...] Chega julho, você pode vir aqui, esse negócio é cheio de aluno, impressionante, é que julho tem férias escolares no exterior, e em alguns lugares também tem o momento que não é alta temporada, sendo assim eles vem pra cá, ficam uma semana aqui, daí às vezes eu pergunto ‘sua família está aqui?’, e eles ‘não, não estou aqui só’. [...] uma coisa bem forte, muito forte.

Nesse contexto, percebemos que as aulas de danças populares surgem como uma boa alternativa para o aprimoramento nas relações interpessoais, primeiro, por permitirem que os alunos possam fazer aula em um ambiente mais descontraído; segundo, por oportunizarem aos alunos uma liberdade corporal e um contato próximo com seus colegas nas aulas e nas coreografias; e terceiro, por oportunizarem maior conhecimento sobre a cultura popular do Brasil, que é resultado de relações de muitos povos. Desta forma, a dança popular estabelece um quadro de relações em que os alunos partilham contributos fundamentais para uma formação integral e emocionalmente sadia.

A coordenadora Bernadete acredita que nas aulas de dança popular é um momento propício para que os alunos desenvolvam sua relação com os colegas e professores. O processo de socialização é favorecido. Em sua fala:

Nas aulas de dança popular acontece muito, esta disciplina é fantástica. É um momento em que eles conversam, conversam, porque até mesmo na ementa da disciplina diz assim: fazer um inventário pessoal, saber aonde

eu vou, porque eles trazem muitas coisas consigo.

Esta possibilidade de poderem conversar nessas aulas distancia-se das posturas adotadas pelos alunos nas aulas de dança clássica e contemporânea, e pode ser para além de um momento de socialização, um fator de reconhecimento da diversidade que existe no Brasil. Identificamos uma prática da professora de dança popular durante os meses antes da avaliação final, que oportunizou este relacionamento pessoal e troca de informações entre os alunos, como podemos verificar: “E a gente pegou o Maracatú, aí eu fiz o seguinte: eu dividi em grupos e

mandei eles pesquisarem movimentos diferentes do nosso Maracatú aqui da escola”.

Durante as observações das aulas de dança popular e nas conversas com os alunos do núcleo de dança contemporânea, percebemos que os grupos formados nas aulas de danças populares coincidem com os grupos de amizades fora do contexto Bolshoi, e que existem algumas rivalidades entre os alunos, principalmente no que tange a escolha dos elencos. A fala do aluno Marcos destaca essa situação de relacionamento entre eles:

Entrevistador – E como é a ligação entre vocês?

Entrevistado – Olha todo mundo diz que nós somos muito ligados,

apesar de nossas brigas, mas é que em nossas aulas precisamos sempre uns dos outros, para ligar os movimentos, e meninos e meninas fazem juntos. Já no clássico não, as aulas são separadas dos

meninos e das meninas. Por isso somos sempre mais unidos, eu acho.

Apesar de que agora não é mais tão unida rsrsr.

Entrevistador – Por quê? O que aconteceu?

Entrevistado – Sabe? É que agora a gente tem voz. A gente nunca falava

nada, e agora as coisas mudaram. Nós falamos a real pro [sic] grupo, pois pros professores nem adianta. Eles meio que nos esnobam,

digamos assim. É perder tempo, digamos assim. Final do ano passado a gente estava quase se matando rsrsrsr, ninguém conseguia olhar na cara de ninguém. A gente chegava aqui tipo assim, vou te matar hoje rsrsrsr. Mas é muita injustiça sabe?

Este mesmo aluno completa ao falar sobre o trabalho em grupo realizado no núcleo de dança contemporânea:

[...] porque trabalhamos sempre em grupo. E a nossa turma por mais que no final do ano passado a gente tava se matando, quando a gente dançava a gente sempre procurava uma união entende? Sempre quando a gente dança, a gente se junta, faz oração de mãos dadas, fala um pro outro que

você é importante e tal [...], [...] e nós no contemporâneo e popular precisamos sempre uns dos outros sabe?

Para este aluno é nas aulas de dança popular e dança contemporânea que ele e seus colegas de turma sentem-se mais estimulados e seguros, o que a nosso entender é positivo no processo de formação. Verificamos que em sua fala ele acaba por exercitar sua criticidade apontando de forma contextualizada o que lhes agrada e o que não lhes agrada na ETBB. É um bom exercício de formação cidadã, o que vai de encontro ao que é proposto pela escola.

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