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Parte I: Percurso Epistemológico

1. Subjetividade e Gênero: referências para a observação do Grupo das Meninas e suas

1.3. Relações sociais de gênero – relações constituintes de subjetividades

Desde o início temos observado que tomamos o processo de constituição da subjetividade como processo que se dá em função de um intricado jogo de relações sociais necessariamente

situadas cultural e historicamente. Por esta razão atentamos para o estudo das transformações sociais e tecnológicas do mundo do trabalho a que educadores(as), sociólogos(as), historiadores(as) e cientistas políticos, entre outros, em diversas partes do mundo, têm se dedicado. Gohn (2007, p. 41) observa que as Ciências Humanas há muito tempo vêm colocando no foco da análise a “crise do paradigma dominante da modernidade”. A autora aponta como destaque das inquietações acadêmicas as “transformações societárias decorrentes da globalização”, as “alterações nos padrões das relações sociais em função do avanço das novas tecnologias” e as “inovações que têm levado ao reconhecimento de uma transição paradigmática”.

Se tomarmos como paradigma a construção histórico-social o modelo das sociedades primitivas, havia a divisão social do trabalho uma vez que o coletivo prevalecia sobre o individual, pois tinha a subsistência como seu objetivo. Com o avanço dessa sociedade, foi se estabelecendo a divisão sexual do trabalho, em que a mulher estava destinada a garantir a manutenção da agricultura e o trabalho de criação dos utensílios de barro como vasilhames para o armazenamento e cozimento dos alimentos. Neste momento a sociedade já avançava para o modelo patriarcal e a organização da família (TOLEDO, 2003, p.21).

É fundamental esta abordagem, pois desmistifica a discussão de que a mulher é inferior por natureza, bem como a ideia de que é submissa e frágil por sua conformação biológica. Ao

contrário, é educada para ser oprimida, e saber qual é o seu “lugar” na sociedade. Discutir a situação da mulher a partir da divisão sexual do trabalho traz em si a necessidade de pensar o

quanto a construção da opressão e do papel da mulher são frutos de uma construção histórico- social, como aborda Toledo (2003, p.23): “O marxismo, durante toda a sua existência, desde os primeiros escritos de Marx e Engels, vem lutando para demolir esta concepção e demonstrar que a opressão da mulher na sociedade não tem um fundamento natural mas histórico e social.”

Outro aspecto importante para pensarmos o objeto deste estudo é o papel que cumpre a educação desde os primórdios, mas, principalmente a partir do século XX e as instituições religiosas, ou seja, a condição da mulher na sociedade será também localizada no contexto do

desenvolvimento da História da Educação. Portanto, há que se considerar todos os conflitos e contradições das mudanças da sociedade bem como os determinantes socioeconômicos decorrentes da formação capitalista e seus desdobramentos éticos, políticos e estéticos que influenciam as concepções de educação como um todo, principalmente num país ainda semicolonial com forte presença dos valores cristãos. Não é de se desprezar o papel que cumprem as escolas confessionais, principalmente no que se refere à formação das professoras.

Durante séculos a mulher foi tratada como uma subordinada do pai e/ou marido, vista sempre como objeto sexual do homem, quase que sua propriedade. No geral, educadas no ambiente doméstico com tarefas do cotidiano (lavar, cozinhar, criar os filhos), no espaço privado e distante da educação formal.

A exclusão da mulher do espaço educativo pode ser uma das explicações da ausência da educação feminina, as primeiras Escolas Normais eram destinadas somente ao sexo masculino. No Brasil, as mulheres só adquiriram o direito à educação em 1827, por meio de escolas segregadas que apresentavam currículos distintos de acordo com o sexo. Para as moças, para quem o ensino superior era proibido, restava um ensino menos aprofundado nas Ciências e voltado às “prendas domésticas”.

O processo de feminização do magistério de instrução primária intensificou-se com a instalação das escolas normais quando se iniciou o processo de profissionalização da atividade de magistério e, concomitantemente, um processo de reserva de mercado desta atividade para a mulher. Este fenômeno ocorreu, principalmente, no magistério do ensino primário, uma vez que tanto no secundário como no nível superior a predominância masculina manteve-se por longo tempo, como também observaram Nóvoa (1991) e Enguita (1991).

No entanto, na ideia do progresso vindo com a República brasileira, a educação formal passa a ser uma política de Estado, e o ensino primário, mesmo ainda prevalecendo a educação via instituições religiosas e prioritariamente masculinas, passa a ser responsabilidade do Estado (CARVALHO, 1997, 24).

O espaço de educação da mulher no lar prevaleceu com “a ideia de que homens e mulheres estariam predeterminados, por sua natureza, a cumprir papéis opostos na sociedade: ao homem, o mundo externo, à mulher, por sua função procriadora, o mundo interno” (ALVES, 1982, p. 55), o que valorizaria cada vez mais o papel da mulher como “rainha do lar”, esposa e

mãe, além de educadora. Até o currículo era diferenciado, foi dada uma importância menor às disciplinas da área de exatas.

Assim, entre outros temas, motivam a ação dos(as) pesquisadores(as) a busca pela compreensão dos condicionantes da divisão sexual do trabalho e sua relação com as desigualdades nas relações de poder que se estabelecem entre homens e mulheres neste contexto, a relação entre a vida produtiva e o processo de produção da vida material, tanto quanto os processos envolvidos na produção de valores subjetivos que sustentam a construção de tais contradições. A compreensão sobre os processos constitutivos das subjetividades e dos modos de vida entram no foco das investigações acadêmicas. A identidade das mulheres, o reconhecimento do sujeito-mulher, a questão do gênero enquanto elemento constituinte, tanto da própria subjetividade como das relações sociais, também têm sido objeto de discussões orientadas para a construção de uma sociedade mais justa, onde diferenças possam não ser convertidas em desigualdades.

Mulheres são sujeitos de relações sociais, que se constituem internalizando e constituindo sentidos próprios para a cultura onde organizam sua sociabilidade. Contudo, um estudo sobre mulheres, ainda que como este não se proponha a discutir sobre as demandas atuais dos movimentos feministas, será sempre de alguma forma decorrente dos esforços realizados por eles. Portanto, não podemos seguir sem estabelecer alguma relação entre esta investigação e estudos produzidos no seio do feminismo. Para tanto, reconhecemos a fertilidade deste movimento, seu vasto universo de produções teóricas, bem como a diversidade de aspectos relacionados à existência das mulheres contemplados em seus estudos e a pluralidade de referenciais epistemológicos implicados na interpretação dessas realidades.

Cabe situar que todos estes questionamentos referentes ao feminino, aos lugares, às posições, às condições e às posturas reservadas às mulheres em nossa sociedade têm sua origem também nos marcos históricos dos conflitos vividos desde o século XIX. Conflitos que decorreram tanto do reconhecimento do sujeito moderno que, de acordo com Habermas (1990, p.24) foi tomado como aquele capaz de refletir, deliberar e operar individualmente, desde que regido por leis racionais e universais –, quanto do questionamento sobre os direitos fundamentais do homem e do cidadão. Mas, estes questionamentos sobre o sujeito feminino tomaram força e conduziram ao desencadeamento do próprio Movimento Feminista a partir do momento em que foram sintetizados na II Conferência de Mulheres Socialistas, em Copenhague (1910) – ocasião

em que representantes de 17 países reunidos aprovaram as propostas de Clara Zetkin para conclamar as mulheres do mundo todo a lutarem pela paz e pelos direitos das mulheres. Ficou marcada aqui a origem do Movimento Feminista, que se fortaleceu, ampliou e diversificou-se ao longo das décadas seguintes na Europa, tendo seu ápice em manifestações e engajamento político nas décadas de 1960 e 19707.

Ao longo da década de 1940, foi gestada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que foi promulgada em 1948. Entendemos que este documento também ofereceu importantes subsídios para o fortalecimento dos movimentos feministas e para o desenho de suas bandeiras. Entretanto, é preciso destacar que este documento foi produzido e assinado pelos países representantes das Organizações das Nações Unidas, que

é uma instituição internacional formada por 192 Estados soberanos, fundada após a 2ª Guerra Mundial para manter a paz e a segurança no mundo, fomentar relações cordiais

entre as nações, promover progresso social, melhores padrões de vida e direitos humanos. Seus membros são unidos em torno da Carta da ONU, um tratado

internacional que enuncia os direitos e deveres dos membros da comunidade internacional (ONU-BRASIL, 2011).

Portanto, esta Declaração, por ter sido adotada e proclamada em Assembleia Geral das Nações Unidas, assumiu um caráter de acordo internacional entre os países ocidentais, os quais em boa parte vinham saindo com suas economias devastadas após um longo período de guerras – Primeira e Segunda guerras mundiais. Estas informações, antes de qualquer coisa, devem nos colocar diante de um cenário de dúvidas quanto ao real objetivo deste documento que inflamou as lutas em defesa de direitos humanos no mundo todo, incluindo aí, o das mulheres. Não seria prudente permitir que a razão judaico-cristã, presente na formação cultural dos países do ocidente, nos conduzisse a um olhar ingênuo que faria entender que, após o saldo de oito milhões de mortos na Primeira Guerra Mundial e quarenta e seis milhões de mortos na Segunda, de repente, como num passe de mágica, os mesmos países envolvidos nos conflitos passassem a se preocupar com “a paz e a segurança no mundo, com as relações cordiais entre as nações, com a promoção do progresso social, dos padrões de vida e dos direitos humanos” (ONU-BRASIL, 2011). Como se, enfim, seres humanos tivessem passado a ser vistos! Acreditamos que seja criterioso e sensato nos colocarmos com certo distanciamento. Com isto, podemos perceber a necessidade dos países de economia capitalista de unirem-se neste acordo, naquele momento, a

fim de estabelecerem parâmetros que os permitissem voltar-se a si mesmos, e reconstruírem-se internamente, tanto no que referia às suas estruturas econômicas, como às estruturas políticas e sociais. Então, a Declaração Universal dos Direitos Humanos serviu naquele momento, e serve até os dias de hoje para organizar e defender um modus operandi das relações referenciadas nos valores que sustentam o modo capitalista de produção da vida material.

As lutas vivenciadas pelo Movimento Feminista, sua defesa dos direitos políticos e de cidadania das mulheres, do direito à história e à memória, à liberdade, igualdade e, respeito às

suas singularidades, também são fundamentalmente constituídas por estes marcos políticos e conflitos de proposições.

Assim, é possível entender que na busca de compreensão e construção de sentidos para a gênese das desigualdades entre homens e mulheres, bem como para a produção de instrumentos teóricos e práticos que permitissem superá-las, o movimento feminista tenha visto emergir, em seu interior, discursos explicativos oriundos de matrizes referenciais bastante diversas8. Joan Scott (1994), por exemplo, apurou – conforme estudo que realizamos anteriormente sobre suas análises (MELO, 2001) – a existência de, pelo menos, três grandes tendências teóricas engendradas pelo movimento feminista no campo das Ciências Sociais para explicar a origem das desigualdades e apontar possibilidades para sua superação – as teorias do patriarcado; as abordagens de orientação marxista; e as teorias de orientação psicanalítica.

O conceito de gênero foi produzido como a própria ferramenta com a qual estes deslocamentos poderiam passar a ser operados pelas próprias mulheres. Deste modo, conforme verificamos em estudo anterior9, entre os significados construídos, desde então, para categoria

gênero, destaca-se aquele que diz que gênero se refere à "organização social da relação entre

sexos" (SCOTT, 1990, p.5). E, neste sentido, o gênero é “visto como elemento constitutivo das relações sociais, baseadas em diferenças percebidas entre os sexos e, como sendo um modo básico de significar relações de poder” (SCOTT, 1990, p.5). A dimensão relacional do conceito de gênero é uma característica importante deste instrumento. Perrot (1995) argumentou em defesa de uma produção acadêmica que, antes de se dedicar às análises históricas a partir do privilegiamento do sujeito, problematizasse justamente a dimensão da relação entre os sexos.

8 A. Nye (1995) apresenta um aprofundamento sobre os diferentes marcos políticos e os conflitos entre as proposições teóricas que atravessam os discursos que constituem os movimentos feministas em Teorias Feministas e

as Filosofias do homem.

Scott (1990) complementou esta observação, acrescentando que nenhuma compreensão em separado dos homens ou das mulheres poderia alcançar a complexidade da definição recíproca de ambos.

Gênero refere-se, portanto, às relações de poder entre mulheres e homens, mulheres e mulheres, homens e homens implicando, necessariamente, uma rejeição ao determinismo biológico no que diz respeito às definições quanto aos papéis ou lugares que homens e mulheres assumem na sociedade, como apresentamos acima. As reformulações relacionadas à questão epistemológica implicam a política, a organização da sociabilidade e da vida cotidiana, são, portanto pertinentes ao universo da subjetividade e, também ao das relações sociais de um modo geral.

As teóricas feministas perceberam a necessidade de repensar o próprio modo de conceber a história. Scott (1994) afirmou que já não era suficiente acrescentar novos temas, recorte, ou enfoques à produção do conhecimento histórico, considerando a possibilidade de já se terem alcançado o limite possível de transformações nas relações sociais operando dentro dos mesmos marcos referenciais que engendraram as situações de desigualdade. Para a autora, transformações radicais na organização da sociabilidade reivindicavam um "reexame crítico das premissas e dos critérios do trabalho científico existente" (SCOTT, 1994, p.6).

Autonomia e emancipação, com isto, não se referem ao um processo de construção de si, ou, do encontro do sujeito em si, pois, sua dependência e o seu rompimento já são percebidos por ela como precedentes e condicionantes da própria formação do sujeito.

Diante de tudo, percebemos que a trajetória de estudos sobre as mulheres teve início desde a fundação do pensamento moderno, com a inauguração de uma ideia de sujeito que representou anseios e despertou o interesse de muitos que passaram a reivindicar para si o direito de sê-lo também. Assim o fizeram as mulheres. Reivindicaram reconhecimento à sua subjetividade, questionaram o estatuto desigual de sua subjetividade perante a dos homens. Perceberam que seu próprio universo também era por demais diverso e constataram a necessidade de romper com desigualdades produzidas entre si próprias. Seguiram num compromisso crítico com o questionamento da ordem social que terminaram por reivindicar (ou seguem reivindicando) a dissolução do próprio estatuto que as motivou ao longo de todo este percurso.

A partir destas considerações, pensamos o Grupo das Meninas, que tiveram sua formação na década de 1950 e 1960 (desenvolvido na apresentação) nas primeiras turmas do curso normal em Amargosa, interior da Bahia, bem como a caracterização socioeconômica das estudantes, o contexto social e político de suas condições objetivas inseridas no universo social da cidade, o quanto suas trajetórias contribuíram para a mudança de sua condição de submissão e opressão ou de reprodução a ideologia histórico-social e econômica a partir do exercício de sua profissão.