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4.1 13 UM TECIDO BORDADO, QUASE TERMINADO (28/08)

5. BUSCANDO OS FIOS DA MEADA

5.1. Desempenho profissional

5.1.2 Relatos familiares e profissionais: mãe, pai e Amália

Amália nasceu em Rinoceronte, onde pai e mãe trabalhavam juntos numa metalúrgica: (...) ele conheceu a minha mãe numa indústria. O fato de trabalharem no mesmo lugar poderia facilitar a compreensão e o respeito de um pelo trabalho do outro. Entretanto, a realidade do trabalho paterno não era pela mãe acatada do mesmo modo. Nas palavras de Amália:

(...) eu sei que foi no emprego, assim, que eles se conheceram.

Tinham mais ou menos o mesmo... não podia desmerecer a qualificação de um e de outro por que eles eram mais ou menos o mesmo tipo de funcionário, de empregado. Só de repente mudava a habilidade manual, mas trabalhavam em torno do mesmo produto, tu entende?

Amália não sabe ao certo os motivos pelos quais a mãe denunciava o pai como um funcionário qualquer, medíocre. Na fábrica, ele não era percebido da mesma forma. Ao contrário, tinha qualificações profissionais que poderiam facilitar-lhe ascensão na empresa. Neste sentido, pensar este demérito materno como verdadeiro pode ser um equívoco grave. O que não parece existir é um apelo à ambição, à ascensão funcional. O pai, muito correto, muito exato, muito metódico, não é visto nem pela esposa e nem pelos colegas de profissão como um “exemplo” a ser seguido, no sentido de que ele não buscou se qualificar, nem melhorar suas habilidades, já que tinha condições para tal. Em seu ofício, manteve-se estático. Isso pode ser bem percebido em duas falas de Amália:

Então ele ficou uns 25 anos na mesma função, no mesmo escritório, no mesmo endereço. Acho que na mesma mesa, só deve ter trocado as cadeiras, pelo que ele conta. Assim, acho muito interessante conversar com ele sobre a vida profissional dele (...) Foi nessa empresa que ele ficou até praticamente se aposentar.

(...) o fato de que todos os colegas, aqueles que passaram por

ele sabiam da competência dele no trabalho (...) e... brigavam muito com ele, por que ele não fazia um curso superior pra administração... pra poder crescer dentro da própria empresa, pra poder gerenciar o setor ou pra poder receber em função daquilo que ele fazia (...)

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Neste sentido, o pai parecia corresponder ao tipo de funcionário esperado para a época, que seguia uma carreira modelada pela empresa, uma vez que não era aguardado que ele se motivasse em busca de qualificação. Este tipo de funcionário correspondia muito ao padrão esperado, daqueles cujo retrato deveria ser colocado na parede para que todos pudessem sentir orgulho e imitá-lo, se possível. Conforme os modelos atuais de carreira, este típico operário está em “extinção17”.

Atualmente, as empresas esperam que cada um busque qualificação visando melhorar suas habilidades, para que então o funcionário seja bem aproveitado pelo empreendedor, e não o contrário, ou seja, que a empresa lhe ofereça subsídios para a sua promoção, como já bem apontado por Bastos (1997). O que Amália relatou sobre como os outros viam seu pai é compreensível, pois o modelo cultural de empregado internalizado por ela é de alguém que procura crescer dentro da empresa e não de quem fica parado, aguardando oportunidades ou a época da aposentadoria. Ainda a respeito da profissão paterna, que é para Amália motivo de orgulho, sua mãe desmerecia continuamente este ofício, afirmando que o tipo de trabalho que o pai ocupava era para insanos. Nas palavras de Amália: (...) meu pai é todo controlado, todo exato, e isso é perfeito pro que ele

desempenhava. (...), e a minha mãe sempre colocou isso, como o mundo dos horrores: Pro teu pai tudo é contabilidade, Deus me livre, isso é coisa de louco.

Apesar de todo o discurso materno que marcava este tipo de ocupação como a

preterida, ela não tem para Amália o mesmo sentido, o que descobre somente alguns anos mais tarde, num dos cursos que freqüentou quando foi micro-empresária. Em suas palavras:

Eu gosto e eu descobri isso... não por que ele [referindo-se ao pai] tenha me mostrado. Absolutamente, nada. Ele nunca me mostrou um relatório como de lançamentos, por mais simples que fosse, isso depois eu por necessidades fui estudar (...) fiz no SEBRAE (...).

Nos relatos, Amália diz que o pai havia trabalhado na mesma empresa até praticamente sua aposentadoria, junto aos mesmos móveis, durante anos seguidos; já Amália, por outro lado, não permaneceu por muito tempo, numa única função, nem mesmo nos bancos de escola, não ficava em casa junto de sua irmã, não terminou seus estágios do magistério, não terminou os cursos que iniciou anteriormente, e além disto, não sabe se terminará o que iniciou aqui nesta cidade. Porém seu pai conhecia o próprio ofício com

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empenho. Era minucioso inclusive com tarefas que competiam aos outros, deixando lista de atividades ou conferindo tudo que deveria ter sido executado pela esposa durante a permanência dele no trabalho. Como ela mesma mencionou:

Meu pai deixava uma lista de tarefas que ela tinha que fazer e ela cumpria, mas sofria horrores com isso, porque ela se sentia humilhada com aquela lista de tarefas. Então, quando ele chegava em casa, como eles estavam brigados, ficavam uns dois dias entendido e um mês brigando (Risos). Ele chegava, não falava com ela, não perguntava como é que tinha sido o dia dela, não conversava com a gente. Ele pegava o raio da lista de tarefas: Fez isso, fez aquilo, fez

aquele outro, que horas a Amália almoçou, que horas a Daniela almoçou. Que horas que a Amália tomou o remédio, que horas que... tudo ele controlava e a minha mãe se sentia

subjugada, humilhada, desacreditada, tudo.

(...) se ele entrasse na cozinha e tivesse alguma coisa fora do

lugar... e ele era muito meticuloso, tipo assim, o bule não pode estar em cima da pia, o escorredor não pode estar não sei aonde, o pano não pode estar dobrado dessa maneira (...).

Amália percebe as características apontadas em relação ao pai meticuloso, regrado como necessárias e importantes para a prática diária no trabalho desempenhado por este, mas quando se trata de regras em relação à família, todo o rigor é visto como exagero. Isso demonstra ter havido um cuidado excessivo, que pode ter desencadeado toda espécie de insegurança e descrédito da esposa em relação a seu papel bem definido na relação que ambos estabeleceram, em que a mulher é a cuidadora do lar, e o homem o seu provedor. A este respeito, Gonçalves (2002), afirma que:

Esta forma de organização de origem burguesa baseia-se na divisão sexual do trabalho, na qual os homens/pais têm o dever de ser provedores do grupo familiar, e as mulheres/mães, as cuidadoras. (...) Eis aqui a divisão sexual do trabalho que corresponde ao modelo nuclear, monogâmico e conjugal. (p. 10).

Neste sentido, por acréscimo, seu pai foi assumindo o papel de fiscalizador das atividades que competiam à mãe, as tarefas domésticas. Possivelmente, tenham sido estas as primeiras formas de controle sobre a vida dos outros por Amália aprendidas, as quais conseqüentemente, acabou repetindo na relação com sua mãe.

O comportamento de Amália também parece ter correspondido durante anos à concepção de pai construída pela mãe. Porém, ela disse que, ao estar ainda casada com Fábio, passou a se relacionar de outro jeito com seu pai, reconhecendo nele e na relação que mantinha com ele um pai diferente daquele que sua mãe apresentara em sua infância e durante boa parte de sua adolescência, um pai que na verdade era um desconhecido. Como ela mesma mencionou:

De uma certa maneira ele está mais próximo agora, mas eu tive oportunidade ainda durante meu primeiro casamento, lá pelos meus 18 anos, que foi uma época que eu que eu estive doente... assim foi um ano que eu não fiz muita coisa am... meu pai... eu conheci meu pai ali que até então eu tinha, eu tive, mas não tive com aquela carga afetiva com a coisa de dar atenção de conversar e tal. (...) Eu conheci o meu pai acho que a partir dos meus 18 anos, de poder falar as coisas com ele claramente. O que eu sinto, o que eu fiz, o que que eu não fiz, a opinião dele assim e o... muita coisa eu acho que eu tô conhecendo.

Esse reconhecimento em relação ao pai foi sendo mencionado em outros encontros e reforçando o estabelecimento de um laço afetivo que agora lhe é extremamente significativo e prazeroso. Nas palavras de Amália:

(...) E uma coisa muito interessante que eu penso assim em...

função do meu pai, eu tenho uma ótima relação com ele hoje. Essa experiência toda que a gente troca e essas coisas que ele me conta da vida dele, e ele é meu mentor como eu falo. Quando eu tenho uma decisão, eu narro o fato pra ele e escuto a opinião, assim. Eu acho ele muito convincen... (...) É essa coisa boa assim, meu... meu pai. Eu tenho um pai maravilhoso que é meu tipo o meu segredo.

Cabe ressaltar que esta aproximação entre pai e filha é uma conquista de ambos, e, foi uma construção que, segundo Amália, iniciou-se principalmente na época de sua separação com Fábio e, que atualmente acabou sendo reforçada através da relação profissional mantida por eles. Unbehaum (2000, citado por Gonçalves: 2003, p. 82-83) chama atenção para esta questão e a relaciona com o ciclo de vida do homem, informando que principalmente na época da aposentadoria, há um relaxamento das obrigações da função de provedor, no qual o homem pode permitir viver mais livremente da pressão desta

posição, e do fantasma de uma demissão, que pode influenciar diretamente o sustento familiar. E mais, ele ainda menciona que essa modificação do comportamento paterno pode

ser reforçada levando em consideração que durante a época da aposentadoria os sujeitos acabam se tornando mais frágeis e dependentes, no caso de Amália o pai tornou-se seu

escravo, como ela mesma denunciou: Meu funcionário é meu pai, meu escravo. Escravizei ele pro resto da vida.

Atualmente, o pai tornou-se um amigo, um aliado, o mentor em quem ela pode confiar. Esta oportunidade acabou acontecendo, para ambos, principalmente depois que Amália resolveu retomar a construção da pousada e manter seu pai como administrador de seu patrimônio, transformando-o, como ela disse, afetivamente, em seu escravo, escravo de seu empreendimento. Como ela mesma relatou carinhosamente:

(...) entre uma coisa e outra, passo por Bicho-Preguiça por

que às vezes sobra alguma coisa pr’eu fazer. Também muito difícil meu pai dar conta de tudo. (...)

Agora meu pai tá de férias. Dei... eu dei férias pra ele. Né, já que eu não tenho funcionário lá, né?

Tais afirmações deslocam a questão da paternidade anteriormente mencionada, e que conforme Gonçalves (2002), denotam um sinal explícito de que as mudanças nas

organizações familiares e nas pautas que sustentam a tradicional divisão sexual do trabalho vêm ocorrendo (...) imagens que denotam novos comportamentos associados ao lugar social do pai. (p. 12).

Torna-se importante salientar que mesmo não sendo a questão sexual do trabalho foco desta pesquisa, ela permeia a vida de nossa informante. Além do que, o pai que na infância era percebido por ela como bicho-papão, de quem ela mencionou ter estabelecido um vínculo afetivo comprometido pela severidade paterna, acabou tornando-se na idade adulta figura importante, sendo atualmente o administrador de seus negócios imobiliários.

Em relação ao trabalho de sua mãe, (trabalho) do qual a informante se apropriou por “imposição”, ou por “necessidade”, Amália diz o seguinte:

(...) eu comecei a freqüentar o salão e comecei a me envolver

com a parte do salão e ao mesmo tempo em que eu comecei a me envolver, veio a necessidade dela [referindo-se a mãe] de fazer o negócio dela dar certo, pela necessidade que ela

tinha. Porque ela tava praticamente se separando e ela queria a todo custo, o mais rápido possível, ter condições de arcar com todas as despesas que competiam ao meu pai. Aí, então, foi assim que ela percebeu que eu tinha condições de trabalhar na loja dela.

Percebe-se que é na interlocução que Amália reconstrói significados a seu respeito, bem como o que concerne à sua mãe e ao que esta afirmava sobre o pai. Ouvindo sua própria história sendo contada, Amália consegue encontrar uma outra realidade: a sua própria. Ela obtém a interpretação que lhe é possível, o que acaba propiciando um encontro diferente consigo mesma. Pode falar do pai como seu mentor, seu amigo, e não como um

bicho-papão.

Amália percebeu que esse modo de conceber o pai foi determinado pelo que ele representava para sua mãe, pela relação que ambos estabeleceram, e não pelo vínculo que obteve com ele sem interferência de uma terceira pessoa. A este respeito, Rocha-Coutinho (1998) diz que a linguagem é (...) constitutiva da própria realidade, ela reflete, reforça e

constitui modos de organizar e interpretar a realidade, pois é tanto mediadora das relações interpessoais, quanto uma força na perpetuação das relações sociais que a sustentam. (p. 324-325). Para Amália seu pai acabou tornando-se o que ele representava

para sua mãe, com quem ela mantinha estreita relação.

Nossa informante encontra também na e pela linguagem não-verbal, outras formas de perpetuação das relações sociais. Como ela mesma mencionou:

(...) toda vez que eu ligo pra minha mãe, eu fico mais triste. (...) Fico chateada de falar nisso. Porque [Amália faz uma pausa grande em sua fala, um silêncio marcante] ela não

rompe com essa coisa de me cobrar, como se eu tivesse obrigação de tá controlando a vida por ela, entende? (...) Eu ando em volta e não digo nada. Enrolo e não consigo ser direta e não consigo dizer nada pra que se mude a situação e acabo desligando o mais rápido possível. Pra, tipo assim, não preciso falar nisso agora, mas eu vejo que eu não... isso é uma coisa que me entristece.

Bohoslavsky (1977) afirma que há vários motivos para que o silêncio aconteça. Ele pode estar expressando: o término de um assunto; hostilidade ou agressividade, contra o

sinal para continuar sua fala; reflexão a respeito de algo; ou ainda cansaço. Neste sentido, em cada momento que o silêncio irrompe a fala, ele não é um vazio de informação, uma brecha no discurso sem nenhum significado, mas certamente representa algo. No caso da fala anterior de Amália, este parece estar representando reflexão e uma certa angústia por não saber como agir em relação às solicitações de sua mãe. Ela parecia ansiosa e aflita por falar daquilo com que não conseguia lidar diariamente, denunciando o vínculo que lhe atrapalhava e imobilizava constantemente. Ao preferir desligar o telefone, acaba deixando de falar, de se comunicar, pois não conseguia enfrentar e lidar de outro modo com essa realidade sufocante.

Porém, percebe-se que ao narrar sua história de vida, Amália parece conseguir re- significar os ditos maternos. Pode-se perceber isto no encontro do dia 28/05, já quase ao final do trabalho, quando Amália pronunciou o seguinte:

(...) como é difícil, am... eu me dar conta e quando eu penso

alguma coisa relacionada, assim, pai, mãe, criação, educação, a minha concepção em função do histórico da minha... do meu passado em função da família. Como é difícil eu fugir daquele padrão que foi estabelecido pela minha... principalmente, pela minha mãe. Aquelas idéias que ela passou, assim tipo, ela construiu meu pai monstro, né? (...) E tudo era ruim e era uma pessoa difícil de conviver, que era um burro, que era um tolo, que era isso, que era aquilo. Às vezes, como é difícil, e muitas outras coisas, da própria realidade dela, da história, de muitas coisas que nós vivemos juntas como é difícil eu ter noção do que é realidade e do que é o mundo que ela construiu, sabe? E não consigo entender por quê.

Nas palavras proferidas por Amália, pode-se perceber como é sofrido reviver determinadas passagens de sua vida. Ao dar-se conta de que há mais de uma realidade, ou de que a esta é interpretada por cada um a sua maneira, de modo extremamente particular. Parece haver um re-conhecimento, uma re-apropriação de suas relações familiares, de sua relação com os outros entes significativos, e do que isto possa representar em sua própria história de vida. Como afirmou Molon (1999), a constituição do sujeito não termina como prerrogativa de aspectos meramente intra ou interpsicológicos, mas sim no processo

dialético de ambos, e ainda o que é mais expressivo, ocorre por meio do outro e da palavra numa dimensão semiótica, acontecendo na e pela relação.

Para Amália gostar do ofício do pai não representaria exatamente um problema, mas escolhê-lo para si poderia representar uma batalha interna a mais a ser enfrentada.