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O Renascimento e a inserção das pessoas com deficiência no pensamento moderno

Capítulo I Um olhar na história: a deficiência no mundo ocidental e a inclusão

1. A deficiência

1.2 A deficiência na história

1.2.2 O Renascimento e a inserção das pessoas com deficiência no pensamento moderno

Entre os séculos XVI e XIX, no mundo ocidental, alterações nos contextos político, econômico, social, científico e cultural, geraram novos valores. A eclosão de ideias e de questionamentos sobre a ordem vigente no período acabou por mudar o modo de enxergar o ser humano e a sociedade. É nesse contexto que são destituídas monarquias; que se desmonta a hegemonia religiosa; que se altera o modo de produção e que se modifica a organização social com o surgimento de uma nova classe, a burguesia e, posteriormente, junto com ela, o proletariado (Vicentino, 1997).

Grandes nomes como René Descartes (1596-1650), John Locke (1632-1704), Isaac Newton (1643-1727), François Marie Arouet conhecido como Voltaire (1694-1778), entre outros, aclamavam a necessidade da razão acima de todas as coisas, da dominação da “luz diante das trevas” (Vicentino, 1997).

Diante de todas essas alterações, nos mais variados setores da sociedade, passa-se a defender o ideário de que os indivíduos não são iguais e que essas particularidades deveriam ser respeitadas. A percepção das individualidades humanas não vem como algo para beneficiar a maioria, mas a minoria dominante, que , apropriando-se desse conceito, legitima a desigualdade social e a segregação dos “diferentes”.

É nessa concepção de diferenciação dos indivíduos que surgem e se proliferam os primeiros hospitais psiquiátricos que, apesar da proposta de cuidar e educar as pessoas com déficit cognitivo, acabam por assemelhar-se ao regime dos asilos e conventos no que se refere ao confinamento e à exclusão social, podendo ser comparados a verdadeiras prisões ou depósitos de seres humanos, muitas vezes esquecidos pelos seus familiares e pelo restante da sociedade. É também nessa conjuntura que as relações sociais com a deficiência diversificam- se através das opções da institucionalização integral e muitas vezes definitiva, do tratamento médico ou da busca por estratégias de ensino para a pessoa com deficiência (Ribeiro, 2006; Monarcha, 2010).

Nesse período, a educação da sociedade, antes dominada pela Igreja, passa também a ser oferecida pelo Estado. Essa educação tinha como um dos principais objetivos a preparação da mão-de-obra que iria atender ao nascente capitalismo. Esse modelo de produção não incluía a deficiência, portanto não era de interesse social a educação dos indivíduos com necessidades especiais. Apesar do desinteresse social pela educação das pessoas com Necessidades Educativas Especiais (NEEs), surgem nesse período as primeiras ações

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educativas para essas pessoas, que caminham no sentido contrário à exclusão. Essas ações se voltam para a tentativa do ensino de meios que favoreçam a participação desses sujeitos, com limitações físicas e mentais, na sociedade. Como exemplo, pode-se citar as várias tentativas, e muitas com sucesso, de ensinar aos indivíduos com deficiência auditiva a se expressarem e se integrarem na sociedade através de uma linguagem específica. (Santos, 2002; Schewinsky, 2004).

1.2.2.1. A educação dos surdos

É nesse período que surgem as primeiras iniciativas na busca de mudar as características da relação da sociedade com as pessoas com deficiência, através da educação. Dentre as pessoas que buscaram essa mudança está Jacob Rodrigues Pereira, português, filho de judeus, que, em 1747, conseguiu ensinar surdos congênitos a se comunicarem. Jacob, refugiado na França por conta da Santa Inquisição, baseou-se nos estudos e técnicas desenvolvidas pelo seu predecessor, o monge beneditino Pedro Ponce de Leon (1520-1584), que, ainda no século XVI, na Espanha, desenvolveu uma metodologia na educação de surdos a qual incluía datilologia (representação manual das letras do alfabeto), escrita e oralização, e criou uma escola de professores surdos (Goldfeld, 2002).

Os estudos de Jacob também foram colocados em prática na instituição mais antiga de educação de surdos em Portugal, a Casa Pia. Fundada no século XVII com o objetivo de cuidar dos mendigos e das crianças órfãs desvalidas, essa instituição, na primeira metade do século XIX, passa também a cuidar e educar crianças surdas.

Seguindo os passos de Jacob e aperfeiçoando o método desenvolvido por ele, evidenciam-se as técnicas do Abade Charles Michel de L’Epée, em 1750, na França. Pessoa bastante importante na história da educação dos surdos, “L’Epée e seu seguidor Sicard acreditavam que todos os surdos, independente do nível social, deveriam ter acesso à educação, e esta deveria ser pública e gratuita” (Goldfeld, 2002, p. 29).

O século XVIII é encarado como o período mais fecundo da educação de surdos. Nessa época, ela teve um significativo crescimento tanto em nível quantitativo, com o aumento do número de instituições de ensino voltadas para pessoas surdas, como qualitativo, pois, através da língua de sinais, os surdos podiam aprender e dominar diversos assuntos e exercer várias profissões (Goldfeld, 2002).

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Segundo Sacks (1989), citado por Goldfeld (2002), esse período, na história dos surdos, representou uma rápida diminuição na negligência e na obscuridade em relação a essas pessoas, proporcionando-lhes cidadania e emancipação. Com a real possibilidade de estudarem e se comunicarem, as pessoas com deficiência auditiva foram capazes de conquistar rapidamente posições de eminência e responsabilidade dentro da sociedade, tornando-se escritores, engenheiros, filósofos e intelectuais surdos. Posições sociais antes inconcebíveis para essas pessoas se tornaram, subitamente, possíveis.

Tais ações para a educação de pessoas surdas foram, nos períodos subsequentes, tão bem sucedidas que estimularam a busca de novas formas para lidar com outras necessidades especiais, como foi o caso das deficiências mental e a visual.

1.2.2.2. A educação da pessoa com déficit cognitivo

J.J. Guggenbuhl, médico, iniciou um trabalho voltado para a educação de pessoas com déficit cognitivo a partir da observação de um desses indivíduos que rezava em frente de uma capela. Segundo ele, “si ha sido posible ensenarle una plegaria, se dijo, es porque puede ser educado con una formación adecuada y completa” (Guasp, 1998, p. 20). Foi com esse pensamento que J.J. Guggenbuhl tornou-se referência no tratamento de pessoas com deficiência intelectual no século XIX, sendo ele integrante de “un movimiento encabezado por jóvenes médicos românticos y entusiastas que actúan contra la opinión de las autoridades establecidas a favor de una acción educativa para los discapacitados en general y para los deficientes mentales, en particular” (Guasp, 1998, p. 19). No centro para o ensino e tratamento médico de crianças com deficiência mental, fundado por ele em 1840, a preocupação era proporcionar a seus pacientes a possibilidade de desenvolver a capacidade intelectual, dispondo de todos os métodos existentes no período. Foi com esse pensamento e o êxito de sua prática, que sua obra se difundiu rapidamente pelo mundo.

1.2.2.3. A educação dos cegos

No caso da deficiência visual, Valentin Haüy é a principal referência. Inspirado no trabalho de Charles Michel de L’Epée com os surdos, Valentin criou a primeira escola para cegos que foi fundada em Paris, em 1784. Um de seus alunos, Louis Braille, que perdeu a visão aos três anos de idade, criou, em 1824, um sistema de leitura tátil que, além das letras,

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tinha também números e notações musicais. Esse sistema de leitura foi batizado posteriormente em sua homenagem como sistema Braille. Graças a ele, atualmente já existe máquinas de datilografia, teclados para computadores e um sistema de som associado a programas de computadores destinados ao uso de pessoas com deficiência visual (Januzzi, 2006; Fontana & Vergara, 2006).

Apesar de todos esses avanços no tocante à educação das pessoas com deficiência nos séculos XVIII e XIX, o Ocidente se deparou, no final do século XIX, com o surgimento de uma renovação nos conceitos de segregação, que também incluía os indivíduos com necessidades especiais. Surgiam as ideias sobre a Eugenia.

1.3. A Eugenia e a Deficiência

O termo eugenia vem do grego e significa “bom em sua origem”. Na realidade, a prática da eugenia vem acompanhando a humanidade desde tempos mais antigos. Em Esparta, as mulheres mais pujantes em sua beleza e saúde eram selecionadas para serem as genitoras de crianças robustas e sadias. Caso isso não ocorresse, ou seja, a criança nascesse com sinais de debilidade ou algum tipo de má formação, suas leis permitiam que as vidas desses recém- nascidos fossem sacrificadas, sendo, segundo Mai & Angerami (2006), por exemplo, lançados do alto do monte Taigeto (abismo de mais de 2.400 metros de altitude).

Apesar da existência dessa pré-seleção em algumas sociedades, ainda nos períodos que antecederam a era cristã, foi somente no final do século XIX que a eugenia foi organizada como “ciência”.

Francis Galton (1822-1911) idealizou o conceito de eugenia fundamentado no estudo das características humanas que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações, sejam elas físicas ou mentais:

E foram esses os sentidos assumidos ao final do século XIX quando, em 1883, Francis Galton procurou enunciar essa preocupação em torno do bom-nascimento com o termo eugenia. Utilizando-se dos conhecimentos de Malthus, Lamarck, Darwin e das ideias circulantes na Inglaterra da época, Galton definiu eugenia como o “estudo dos fatores físicos e mentais socialmente controláveis, que poderiam alterar para pior ou para melhor as qualidades racionais, visando o bem-estar da espécie” (Mai & Angerami, 2006, p. 252).

As ideias eugênicas, segundo Mai e Angerami (2006), Black (2003) e Magnoli (2009), se difundiram primeiramente na população inglesa pós-Revolução Industrial, na qual a procriação das classes pobres sobrepujava a das classes mais ricas. Esse processo de transição

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demográfica provocou o receio dos mais afortunados e dos intelectuais da época que temiam que o excesso, na população de pobres e doentes, classificados como não aptos para a reprodução, pudesse ameaçar a ordem vigente no período, além de provocar uma degeneração biológica nas gerações futuras. A proposta sugerida para minimizar o impacto da natalidade dos pobres na população, que posteriormente se tornou a principal estratégia assumida pelos defensores da eugenia, foi o controle reprodutivo dos indivíduos nas diferentes classes sociais. Apesar de os ideais eugênicos terem se estruturado na Europa do século XIX, foi no século XX, no continente Americano, mais especificamente nos Estados Unidos da América, que a eugenia ganhou maior ênfase.

A eugenia norte-americana se estruturou a partir do imaginário social da pureza biológica da sociedade branca originária dos colonizadores anglo-saxões. Dessa forma, imigrantes latinos, asiáticos e pessoas com deficiência representavam uma ameaça à manutenção de uma linhagem superior. Foi respaldado nessa “pureza biológica” que, na década de 1920, foi criada, nos Estados Unidos, uma rede de eugenistas, associações e instituições cientificas, sendo várias delas financiadas por grandes corporações como Fundação Rockefeller, que dominaram as políticas de saúde pública nesse país. Esses intelectuais e instituições eugênicas:

Utilizando-se do respaldo social e da moderna ciência da hereditariedade, ... conseguiram aprovar um grande número de leis e códigos constitucionais, como a esterilização compulsória, o birth control, a proibição dos matrimônios inter-raciais e o controle rigoroso da imigração. Paul Popenoe, Harry Laughlin e Frederick Osborn, entre outros, acreditavam que a legislação eugênica livraria o Estado do gasto de milhões de dólares com doentes que superlotavam as instituições públicas e protegeria o país contra a reprodução da massa de “indesejáveis” que “poluíam” o “sangue e a moral da nação branca e civilizada” (Souza, 2007a, p. 365).

Além da esterilização forçada, método que tornou infecundo cerca de 60.000 americanos, e da proibição dos casamentos inter-raciais, também foram defendidas e utilizadas nesse período, como forma de evitar o nascimento de indivíduos portadores de características socialmente indesejáveis, medidas como o aborto, a eutanásia de bebês com defeitos congênitos e a segregação, em instituições, de pessoas com deficiência intelectual e física (Souza, 2007a). A expansão desse movimento eugenista não se limitou apenas aos Estados Unidos, mas embasou, por exemplo, as ações discriminatórias do III Reich. Segundo Black (2003) as ideias dos eugenistas americanos inspiraram Adolf Hitler que assumiu o poder na Alemanha em 1924. Ao promover o “aperfeiçoamento” da raça ariana, Hitler, além das medidas antinatalistas citadas anteriormente, utilizou o assassinato como meio de conseguir os objetivos eugenistas. Essa eliminação dos indivíduos geneticamente

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indesejáveis, entre os quais não se enquadravam apenas os judeus mas ciganos e pessoas com deficiência física e intelectual, era feita através da eutanásia:

... não se entenda aqui o falso conceito difundido de morte misericordiosa para doentes terminais que sofrem, mas o entendimento eugenista de “morte indolor”, que não causasse consternação. O método mais comentado entre os eugenistas era o da câmara letal, ou câmara de gás (Black, 2003, p. 401).

As atrocidades que ocorreram na Alemanha tiveram, durante um longo período, o respaldo norte-americano, traduzido na omissão de ações que impedissem os horrores cometidos durante a II Guerra Mundial (II G. M.). Segundo Black (2003) e Magnoli (2009), apesar de, após a II G. M., as ideias eugenistas terem sido desacreditadas como ciência e condenadas como postura política, a última lei de esterilização americana, na qual se incluíam indivíduos com deficiência cognitiva e física, só foi revogada na década de 1970.