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República Populista (1946-1964): práticas da regulação nacional produzidas na Era Vargas

No documento Kelli Consuêlo Almeida de Lima Queiroz (páginas 101-105)

CAPÍTULO 2 – REGULAÇÃO NACIONAL DE INSTITUIÇÕES E CURSOS DE GRADUAÇÃO (1930-2002)

2.2 República Populista (1946-1964): práticas da regulação nacional produzidas na Era Vargas

No decorrer dos dezoito anos de República Populista, em seus diferentes governos39, o projeto nacional desenvolvimentista do Estado brasileiro apropriou-se da educação superior para importante prática social em atendimento da lógica do capital. Isso se fez, entre outros motivos, pela continuidade da expansão de instituições privadas e/ou pela criação de universidades estaduais, em ambos os casos com diversidade de cursos profissionalizantes para maior satisfação da elite e de grupos candidatos a esse nível educacional.

Nessa perspectiva, os processos de autorização e reconhecimento das instituições e seus cursos foram mantidos, em sua função político-ideológica e quanto aos procedimentos em conformidade com o Decreto n. 421/1938. Essa contradição é bem sinalizada por Vieira (2008, p. 109) quando afirma que “os primeiros anos de redemocratização relevam elementos de contradição que expressam uma sintonia com contexto político da Era Vargas”.

Essa situação pode ser evidenciada nos dados do quadro 10, a seguir:

39 De outubro de 1945 a março de 1964, seis presidentes conduziram a República Populista, a saber: Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), Getúlio Vargas (195x-1954), João Fernandes Campos Café Filho (1954-1955), Juscelino Kubitschek (1956-1961), Jânio Quadros (1961-1961) e João Goulart (1961- 1964).

N. dos

decretos Textos Fundamentos legais Governos

30.236/1951

Concede reconhecimento ao Curso de Ciências Econômicas da Faculdade de Ciência Econômica da Paraíba

Art. 87, item I, da Constituição Federal de 1946 Art. 23 do Decreto- Lei n. 421, de 1 de maio de 1938 Getúlio Vargas 38.390/1955

Reconhece os cursos de Filosofia, Matemática, Letras Clássicas e Letras Neo-Latinas da Faculdade Católica de Filosofia da Bahia, mantida pela União Norte Brasileira de Educação e Cultura, com sede na cidade de Salvador, capital do Estado da Bahia

Nereu Ramos

41.797/1957 Concede reconhecimento aos cursos de Engenharia Civil e Engenharia Mecânica

da Escola de Engenharia de São Carlos KubitschekJuscelino

47.738/1960 Concede autorização para o funcionamento do Curso de Bacharelado da Faculdade de Direito Clóvis Bevilacqua

Quadro 10 – Autorização e reconhecimento de cursos de graduação nos anos de 1950 e 1960 Fonte: elaboração da autora com base nas informações contidas na Coleção de leis do Brasil – 1950.

A inexistência de regulamentações específicas com elementos inovadores para a regulação nacional da educação superior pode ser indicativa de que, para o Estado, os princípios e modelos desse nível educacional atendiam seus interesses. Nesse caso, o desobrigavam da produção de uma política de oferta e manutenção de instituições e cursos superiores pelo poder público, com caráter menos elitista e mais universal.

Assim, a função precípua do Estado na regulação nacional foi legalmente reafirmada, reforçada pelo art. 87, inciso I da Constituição de 1946, que sacramentava a competência privativa do Presidente da República em sancionar, promulgar e fazer publicar as leis e expedir decretos e regulamentos para a sua fiel execução.

Em tal perspectiva, a educação superior pelo setor privado continuava em expansão, constituindo-se pela heterogeneidade institucional. A criação de cursos nas áreas liberais e formação de professores, descentralizando-se da capital para o interior do Brasil foi importante instrumento para a ampliação da oferta da educação superior.

Com efeito, a defesa pela universidade pública e deselitizada se constituía na principal pauta de luta de professores e estudantes da educação superior. O

engajamento dos estudantes40 na luta política em defesa de maior participação do Estado na oferta desse nível, ao mesmo tempo que denunciava a expansão do setor privado pela ação das elites locais, dava prosseguimento a uma reivindicação histórica de intelectuais liberais a partir dos anos de 1920 (CUNHA, 2007; DURHAM, 2003).

Nesse contexto, a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB n. 4.024, de 20 de dezembro de 196141, exigência da CF de 1946 e resultado de confronto de posições e conciliação de interesses, não confirmou a luta dos professores e estudantes; ao contrário, seu pragmatismo ratificou os interesses dos grupos privatistas pela propagação da campanha pela liberdade de ensino.

A esse respeito, concordamos com Romanelli (2010, p. 185) quando afirma que essa lei, “embora tão discutida e com potencial de ter modificado substancialmente o sistema educacional brasileiro, contraditoriamente, faz prevalecer a velha situação”.

No art. 66 da LDB n. 4.024/1961, ainda que a educação superior tenha sido assumida pelo objetivo da pesquisa, do desenvolvimento das ciências, letras, artes e da formação de profissionais de nível universitário, não foi capaz de imprimir mudanças, uma vez que ratificou a coexistência de instituições universitárias e não universitárias e sua relação público-privado.

O art. 5º dessa lei representou a conquista privatista no campo da educação superior, por algumas razões: (i) confirmação da liberdade de ensino, assegurando aos estabelecimentos de ensino públicos e particulares legalmente autorizados adequada representação nos conselhos estaduais de educação, e o reconhecimento, para todos os fins, dos estudos neles realizados; (ii) mudança na composição da administração do ensino com a criação do Conselho Federal de

40 Durante os anos de 1950 e 1960, o movimento estudantil brasileiro tem como pauta de luta a necessidade de um Estado mais financiador e comprometido com a oferta do ensino superior público.

41 Em cumprimento à exigência prevista no art. 5º, inciso XV, alínea “d” da Constituição Federal de 1946, a elaboração da primeira lei de diretrizes e bases da educação nacional durou quatorze dos dezenove anos do período denominado República Populista. Esse tempo de tramitação no Congresso Nacional deveu-se aos intensos conflitos políticos e ideológicos sobre, entre outros aspectos, o direito à educação, a oferta e desenvolvimento dos diferentes níveis do ensino na perspectiva do público e privado e os recursos da educação. Sua promulgação ocorreu em 20 de dezembro de 1961, com a edição da Lei n. 4.024. No período de três anos, teve dois regimentos aprovados pelo Presidente da República: o primeiro em 07 de outubro de 1963 e o segundo em 26 de dezembro de 1966, respectivamente nos governos de João Goulart e Castelo Branco.

Educação (CFE), órgão normativo que substituiu o então Conselho Nacional de Educação.

Com a criação do CFE, o Estado colocou nas mãos desse órgão o poder inaudito de elaboração dos dispositivos legais para a definição dos processos de autorização e reconhecimento dos cursos ofertados tanto por instituições federais42 quanto privadas. Tais disposições propiciaram a atuação centralizadora desse órgão, notadamente na produção da Reforma Universitária de 1968, como veremos posteriormente na seção 2.3 deste capítulo.

Entre suas múltiplas atribuições do CFE, três explicitavam, literalmente, seu papel na definição de normas para a regulação nacional das instituições e seus cursos: (i) decidir sobre o funcionamento dos estabelecimentos isolados de ensino superior, federais e particulares; (ii) decidir sobre o reconhecimento das universidades, mediante a aprovação dos seus estatutos e dos estabelecimentos isolados de ensino superior, depois de um prazo de funcionamento regular de, no mínimo, dois anos; (iii) pronunciar-se sobre os relatórios anuais dos institutos referidos nas alíneas anteriores.43

Em verdade, a Lei n. 4.024/1961 assegurou a continuidade dos processos regulatórios de autorização e reconhecimento das instituições e seus cursos superiores, mas não prescreveu as condições nem a sistemática para tais ações. Essa omissão nos faz afirmar, usando a expressão de Sampaio (2000), que a ‘moldura legal’ produzida antes da promulgação dessa lei teve sua vigência estendida até 1964.

42 Conforme art. 9, § 2º dessa lei, a autorização e a fiscalização dos estabelecimentos estaduais isolados de ensino superior era responsabilidade dos conselhos estaduais de educação na forma da lei estadual respectiva.

43 As demais atribuições eram opinar sobre a incorporação de escolas ao sistema federal de ensino, após verificação da existência de recursos orçamentários; indicar disciplinas obrigatórias para os sistemas de ensino médio (artigo 35, § 1º) e estabelecer a duração e o currículo mínimo dos cursos de ensino superior, conforme o disposto no artigo 70; promover sindicâncias, por meio de comissões especiais, em quaisquer estabelecimentos de ensino, sempre que julgado conveniente, tendo em vista o fiel cumprimento da lei; elaborar seu regimento a ser aprovado pelo Presidente da República; conhecer dos recursos interpostos pelos candidatos ao magistério federal e decidir sobre eles; sugerir medidas para organização e funcionamento do sistema federal de ensino; promover e divulgar estudos sobre os sistemas estaduais de ensino; adotar ou propor modificações e medidas que visassem à expansão e ao aperfeiçoamento do ensino; estimular a assistência social escolar; emitir pareceres sobre assuntos e questões de natureza pedagógica e educativa que lhe fossem submetidos pelo Presidente da República ou pelo Ministro da Educação e Cultura; manter intercâmbio com os conselhos estaduais de educação; analisar anualmente as estatísticas do ensino e os dados complementares.

Essa contradição tecida na conjuntura político-social da República Populista só é superada no período da Ditadura Militar (1964-1985), mediante a elaboração de inéditos instrumentos de regulação nacional, pelo propósito afirmado por Saviani (2005, p. 37): “o espírito do projeto militar do ‘Brasil Grande’ e da modernização integrava o país ao capitalismo de mercado associado-dependente”.

No documento Kelli Consuêlo Almeida de Lima Queiroz (páginas 101-105)