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1. REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

1.6 Representações sociais e sua relação particular com a ciência

As representações sociais, como já foi definido, caracterizam-se como um saber que tem uma relação particular com o conhecimento científico e com a época histórica em que se encontra a humanidade hoje. Para compreender-se o processo de divulgação científica, na ótica da teoria das representações sociais, é essencial salientar-se as interfaces que a representação faz com a ciência dentro da sociedade contemporânea.

Nossa sociedade contemporânea caracteriza-se por uma intensidade e fluidez das trocas e comunicações, pluralidade e mobilidade sociais e pelo reconhecimento da ciência como uma instituição relevante (Jodelet, 2000). Neste contexto, Moscovici (2003) afirma que o fato de as tradições não terem tempo de se sedimentar e se tornarem imutáveis leva o homem a ter que continuamente reconstituir o senso comum. Neste processo, há uma necessidade de se criar um elo entre a(s) ciência(s) e as crenças em geral (que são abstratas)

10 Moliner, P. La représentation soc iale comme grille de lecture. Tese de doutorado. Université de Provence,

e as atividades concretas dos indivíduos, como indivíduos sociais. Desta forma, emergem as representações sociais, caracterizando-se como um tipo de saber dinâmico e que dá suporte às relações sociais permitindo aos homens compreender, explicar e posicionarem- se frente aos fatos e idéias com os quais se deparam, em relação às descobertas científicas e a historia (Jodelet, 1986).

Enquanto por meio da representação social o homem transforma o não familiar em familiar (Moscovici, 1982), a ciência caracteriza-se de forma oposta buscando tornar o familiar em não-familiar:

“No pensamento social a conclusão tem prioridade sobre a premissa e nas relações sociais, conforme a fórmula adequada de Nelly Stephane, o veredicto tem prioridade sobre o julgamento. Antes de ver e ouvir a pessoa, nós a julgamos; nós a classificamos e criamos uma imagem dela.” (Moscovici, 2003, p. 58) “O contraste com a ciência é marcante. A ciência caminha pelo lado oposto; da premissa para a conclusão” (...) “o objetivo da ciência é tornar o familiar não familiar em suas equações matemáticas, como em seus laboratórios.” (Ibidem, p. 60)

Verificando a tensão que se cria com esta oposição, Moscovici (1982) afirma que com o surgimento da ciência, dois universos se formaram: o universo reificado e o universo consensual. Esta divisão simbólica separou os homens em cientistas e homens comuns, em “especialistas” e “leigos”. No universo reificado, o universo da ciência, os cientistas possuem uma forma específica de conhecer o mundo: a pesquisa e a teorização. A partir da lógica científica, da precisão e da coerência interna, os cientistas tornam-se “especialistas” conhecendo profundamente determinadas áreas do saber. No universo consensual, o universo do “senso comum”, o “homem comum” em suas interações cotidianas, produz saberes difusos, não respondendo a uma mesma lógica e coerência interna em cada grupo social.

Os universos consensual e reificado formam dois tipos distintos de realidade, cada um com sua própria lógica, limites e atributos. Investigam o mundo de maneiras diferentes, particularmente no que se refere à causalidade e explicação. No universo reificado, a “causalidade científica” afirma que todo efeito é explicado por uma causa, tendo por pressuposto que esta é uma análise objetiva dos eventos, de forma independente dos fenômenos sociais, culturais e históricos. Já no universo consensual, a “causalidade social”

depende de nossas representações sociais, que guiarão a forma como percebemos os eventos e atribuímos causas e efeitos. (Purkhardt, 1993)

No processo de divulgação das teorias científicas, segundo Moscovici (1982), é levado para o leigo o “não familiar” e este se apropria destas teorias ligando as novas informações às informações que já possui, ao seu sistema de crenças e valores e ao seu vocabulário, gerando assim a representação social. Ela permite aos grupos um sentido de continuidade de discurso em frente a esta defasagem de compreensão na passagem de informações entre os dois universos. A falta de informação e mesmo a característica de “incerteza da ciência” favorecem a emergência de representações (Jodelet, 2000).

Atualmente, alguns teóricos e pesquisadores (Purkhardt, 1993; Bangerter, 1995) têm criticado aspectos na divisão entre universo consensual e universo reificado, tal qual foi concebida por Moscovici. Tais críticas têm contribuído de diversas maneiras para o desenvolvimento da teoria.

Bangerter (1995), propõe que se repense a correspondência direta entre universo reificado e ciência, versus universo consensual e senso comum. Para este autor, há aspectos consensuais e reificados dentro da própria ciência de forma que a representação social não está presente apenas na interface entre a ciência e o público em geral, “mas também dentro da própria ciência” (p. 72).

Para entender as idéias propostas por Bangerter, cabe diferenciar-se o que ele concebe por conhecimento científico e ciência. Bangerter (1995) afirma que quando se fala em conhecimento científico fala-se em um conhecimento que se pretende desligado do viés subjetivo ou das idiossincrasias do grupo de cientistas que o produziu, um conhecimento “objetivo”. A respeito da ciência, no entanto, fala-se de um grupo de pesquisadores que não é homogêneo, é dividido em subgrupos e que sofrem pressões ecológicas semelhantes às dos não-cientistas. Se as representações sociais estão presentes no conhecimento que circula entre diferentes culturas e subgrupos, porque não concluir que elas estão presentes inclusive entre os diferentes subgrupos de cientistas?. Segundo Bangerter, “parece trivial pressupor que a representação social não só funcione na interface entre a ciência e o público em geral, mas também dentro da própria ciência”11(1995, p.72).

11 Tradução do autor: “it seems trivial to assume that social representatiopns do not only function at the

Com esta revisão, Bangerter pretende contribuir com os estudos de Representações Sociais ao afirmar que a ciência não produz um conhecimento fundamentalmente diferente de outros tipos de conhecimentos. Ele acredita que somente a partir deste ponto de vista, “seremos capazes de descobrir as reais diferenças entre ciência e senso comum” (1995, p. 75).

Purkhardt (1993) por sua vez, considera que a divisão que Moscovici faz entre universo consensual e reificado, ao colocar ciência e senso comum como duas formas completamente contrastantes de realidade, traz problemas para sua teoria. Para a autora, esta completa distinção é herança dos escritos sociológicos de Durkheim, que via o sagrado e o profano como modos de conhecer o mundo completamente diferentes – um como um conhecimento objetivo independente do contexto e cultura (o profano), e outro como um conhecimento construído socialmente (o sagrado).

Um primeiro aspecto que Purkhardt (1993) sugere que seja revisto, refere-se às concepções de universo consensual e reificado de Moscovici. Para a autora, estas concepções abarcam duas epistemologias antagônicas e contraditórias: um empirismo positivista na concepção do que é universo reificado e um construtivismo social na concepção de universo consensual. Neste sentido, levando em conta a tese de Moscovici de que todo conhecimento é socialmente construído, as representações sociais deveriam ser incluídas no campo da ciência de forma que a abordagem construtivista deveria ser aplicada a ambos, senso comum e ciência. Um segundo tópico diz respeito à relação entre ciência e senso comum. Purkhardt (1993) afirma que não há uma direção dominante de influência entre ciência e senso-comum como Moscovici sugere (ciência sobre o senso-comum), mas uma interação contínua entre ambos os universos.

Um terceiro ponto relaciona-se à demarcação entre universo consensual e reificado diante da diversidade de disciplinas científicas, e diante do fato de que nem mesmo a ciência por si mesma é claramente definida. No Brasil, por exemplo, em uma pesquisa sobre ciência e tecnologia com pesquisadores de diferentes áreas, constatou-se que grupos de diferentes áreas (ciências humanas, tecnológicas, etc.) diferem entre si a respeito do que seja ciência, possuindo representações sociais da mesma relacionadas a sua formação acadêmica e área de trabalho (Nascimento-Schulze e cols, 2003a). Em geral, afirma Purkhardt (1993), há concordância sobre a física, química e biologia enquanto ciências,

“mas e sobre a economia, sociologia, antropologia ou geografia?”12 (p. 90). Como se poderia demarcar tão claramente universo consensual e reificado, se nem mesmo entre os cientistas está bem definida a distinção entre o que é ciência e o que não é?

Para Purkhardt (1993) a noção de universo reificado não é um componente essencial e nem útil á teoria, de forma que não deveria, ou precisaria ser utilizado. A ciência é um conhecimento construído ativamente, por interação social com outros cientistas, utilizando-se dos processos de comunicação (conferências, revistas científicas...) em um contexto histórico e cultural. Desta forma, ela seria concebida de uma melhor forma dentro da dinâmica das representações sociais do que nos termos “a-sociais e estatísticos do universo reificado”13 (p. 93). Para a autora, a teoria das representações sociais “constitui uma psicologia social do conhecimento que não é só aplicável à transformação do senso comum, mas também à própria ciência”14(p. 111).

12 Tradução do autor: “..what about economics, sociology, anthropology or geography?” 13 Tradução do autor: “...asocial and statistc terms of the ‘reified universe’”

14 Tradução do autor: “... constitutes a social psychology of knoledge that is not only applicable to the