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2 Mídias Pós-Vanguardistas e Ciência da

2.4 Reprodutibilidade e Ressignificação

Tudo que está morto palpita. Não apenas o que pertence à poesia, às estrelas, à lua, aos bosques e às flores, mas também um simples botão branco de calça a cintilar na lama da rua... Tudo possui uma alma secreta, que se cala mais do que fala. Wassily Kandinsky Similar relação entre os sistemas modelizantes e cultura é teorizada por Regiane Oliveira (2005), segundo a semiótica russa:

Para se constituir enquanto tal, um sistema é composto tanto por invariáveis, que impedem a dissipação do todo, quanto por variáveis, fruto das trocas operacionalizadas com outras esferas sígnicas. É pelo diálogo entre diferentes sistemas e pela contínua reordenação de um todo que podemos apreender a modelização de um sistema da cultura. (OLIVEIRA, 2005, p.01)

Oliveira constata que existe uma correlação operacionalizada entre os códigos vinculados a este sistema sígnico, vista a intensa interação entre esses dois elementos: “Isto porque, é na materialidade das mensagens produzidas por um sistema que podemos apreender traços de uma unidade cultural específica e da semiosfera que a envolve” (OLIVEIRA, 2005, p.01). Aponta a abrangência do conceito de textos*, que extrapola a codificação da linguagem verbal e procura na raiz etimológica do latim, -textu, significando tecido– a sua definição como arranjos e entrelaçamentos que formam entidades estruturadas. (2005, p.02).

De acordo com a semiótica russa, estas mensagens são denominadas textos culturais, e sua abrangência conceitual vai muito além da codificação na linguagem verbal. A palavra texto deriva do latim textu, e significa tecido. Ou seja, em todo texto, é possível reconhecer algum arranjo, algo que foi entrelaçado, formando uma entidade estruturada. Desta forma, os textos culturais constituem as mensagens criadas pelos sistemas, nas quais, é possível reconhecer o modo como se deu a combinação dos elementos que formam um todo estruturado de sentido. Os arranjos presentes nos textos culturais também evidenciam a metalinguagem operacionalizada numa estrutura sígnica e as trocas informacionais realizadas entre diferentes sistemas. (OLIVEIRA, 2005, p.02)

A definição expandida do conceito de texto e textualidade coincide com a de Shukman (apud Santaella), anteriormente citada, no sub-capítulo Mídias pós-vanguardistas, Semiótica e Cultura, em que se incluem os “métodos estabelecidos pelos quais a comunidade preserva a sua memória e seu sentido de identidade”. Mas, a definição de Oliveira explicita claramente que, na complexidade da interação, há um processo de ressignificação, reordenação de ambas as esferas em uma contínua ciclicidade entre criação de novos parâmetros de ordem, padrões e crenças, e rupturas dos códigos culturais e de representação nos sistemas sígnicos:

Conforme McLuhan, a ressignificação de um sistema pelo outro pode propiciar processos de reversão ou ruptura, na qual um meio sofre profundas modificações “Uma das causas mais comuns de ruptura em qualquer sistema é o cruzamento com outro sistema [...]. (MCLUHAN, 1964, p.57 apud OLIVEIRA, 2005, p. 07).

Esta proposição interessa particularmente a condução da presente análise, à medida que se enfocam as intersecções contemporâneas entre as mídias pós-vanguardistas, informação e conhecimento e a criação de produtos, sejam eles objetuais ou conceituais. Oliveira, tratando e analisando peças da mídia impressa faz referências à inegável influência dos sistemas elétricos/eletrônicos de informação gerados pelas novas tecnologias, que remodelaram o secular sistema de impressão em suporte papel:

De acordo com Marshall McLuhan, uma das mais significativas alterações geradas pela tecnologia elétrica54 na cultura contemporânea refere-se à

mudança ocasionada nos processos associativos e perceptivos, uma vez que, pelos feixes de luz elétrica, os meios eletrônicos propiciam uma visão inclusiva e participativa do mundo. Quando nos referimos a esta visão inclusiva, estamos aludindo a uma forma comunicativa introduzida pela tecnologia elétrica que, dentre outros aspectos, possibilita um envolvimento sensorial mais amplo dos indivíduos com os meios e, em decorrência, com o próprio mundo. Esta participação promovida pela eletricidade propiciou o surgimento de meios que prolongam mais de um sentido, exigindo assim uma maior interação sensorial do receptor com os canais comunicacionais elétricos, do qual resulta uma mudança dos processos associativos e perceptivos, que são acelerados em virtude da alta carga informacional que deve ser ordenada. (OLIVEIRA, 2005, p. 06, nota nossa).

Compare-se a citação de McLuhan (1964) com o Le Conquete de l’ubiquite de Paul Valery (1931), que encabeça e enseja o ensaio de Walter Benjamin (1936): A Obra de Arte

na Época de sua Reprodutibilidade Técnica (The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction, aqui representado a partir da tradução do original em alemão para o inglês, de

2005). A percepção de que o sistema de informação e comunicação se entrelaça ao sistema das tecnologias que o propiciam, passando por reestruturação significativa por meio de um processo de rupturas e reorganizações55, já é registrada no início do século XX nestes dois

autores clássicos.

Nossas artes foram desenvolvidas, seus tipos e usos foram estabelecidos, em tempos muito diferentes do presente, por homens cujo poder de ação sobre as coisas era insignificante em comparação com o nosso. Mas o impressionante crescimento de nossas técnicas, a adaptabilidade e precisão que elas conquistaram, as idéias e hábitos que eles estão criando, criam uma certeza que profundas mudanças são iminentes no ofício anciente da Beleza. Em todas as artes existe um componente físico que não pode mais ser considerado ou tratado como costumava ser, que não podem permanecer inafetados pelos nossos modernos conhecimento e poder. Pelos últimos vinte anos nem assunto, nem espaço, nem tempo têm sido o que era desde tempos imemoriais. Nós devemos esperar grandes inovações que irão transformar toda a técnica das artes, afetando, portanto, a invenção artística e talvez mesmo proporcionando uma surpreendente mudança na nossa noção de arte. (VALERY, Pièces sur L’Art, Le Conquete de l’ubiquite, 1931, apud BENJAMIN, 2005, p.01, tradução nossa).

54 [...] "o misticismo de McLuhan algumas vezes o conduziu a esperar, como tinha Teilhard esperado, que a civilização eletrônica se provaria um salto espiritual à frente, e colocaria a espécie humana em um contato mais próximo com Deus" (p. 125). (p. 125). (Wolf, p. 125, 1995. Regent University 2005, tradução nossa) : http://www.regent.edu/acad/schcom/rojc/mdic/mcluhan.html).

55 O que Lotman define como semiosfera, ou espaço sígnico abstrato - onde ocorrem as trocas informacionais realizadas entre diferentes sistemas, apreendido somente pela materialidade dos textos - é a inter-relação entre diferentes linguagens de um sistema.

Walter Benjamin56, relendo Valery, afirma que a forma do senso de percepção muda com a forma de existência humana. Para ele, a maneira como o senso de percepção humano está organizado -o medium pelo qual ele é efetuado- é determinado não somente pela natureza, mas também pelas circunstâncias históricas (BENJAMIN, 2005, p.06, tradução nossa) e, naturalmente, pela intermediação tecnológica propiciada pelos contextos históricos de sua inserção:

Evidentemente abre-se para a câmara uma natureza diferente daquela que se abre para o olho nu – pelo menos porque um espaço inconscientemente penetrado é substituído por um espaço conscientemente explorado pelo homem. [...] A câmara nos introduz à uma ótica inconsciente como a psicanálise aos impulsos inconscientes. (BENJAMIN, 2005, p.19, tradução nossa).

No início do século XX, Benjamin presenciou enormes rupturas e analisou a incorporação dos seus novos parâmetros de ordem, revolucionários do sistema de comunicação social, bem como o espocar de uma nova era: a era da reprodução massiva. Foi a partir das rupturas radicais do início daquele século que os sistemas interligados no processo comunicacional se auto-reorganizaram em novas redes, tornando-se, muitas vezes, grandes corporações, com o controle midiático global hoje conhecido.

A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica enfoca a fotografia e o cinema do início do século XX como temas contrapostos à pintura e ao teatro. Benjamin centra sua análise na qualidade essencial de reprodutibilidade dos primeiros, com sua decorrente característica de direcionamento para as massas (termo que em 1936 tem, logicamente, outro peso e significado) e a reativação significativa das imagens, propiciada pelo sistema:

Ao fazer muitas reproduções substitui-se a existência única pela pluralidade de cópias. E, ao permitir a reprodução encontrar o contemplador ou ouvinte em sua situação particular, ela reativa o objeto reproduzido. (BENJAMIN, 2005, p.05, tradução nossa)

Por reativar pode-se entender, dentro da atual perspectiva da teoria da auto- organização, que estas imagens manipuladas reorganizam-se secundariamente em novos sistemas, pelos quais são inseridas em uma situação de ressignificação por meio de ações criativas inusitadas, patrocinadas pelas novas tecnologias. Além de considerar as infinidades de reproduções de imagens em revistas, mídia impressa, que diferem essencialmente das

56 História, modernidade, o surgimento da cultura de massa em uma inter-relação de arte e tecnologia, bem como literatura dos séculos dezenove e vinte eram de particular interesse para Benjamin. The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction é provavelmente o mais influente ensaio de Benjamin, no qual ele localiza uma mudança de status da arte tradicional, quando meios técnicos de reprodução como fotografia e cinema começam a dominar a imaginação das massas do público. (European Graduate School EGS, 2005, p.01, tradução nossa)

imagens vistas pelo que ele denomina olhar desarmado, Benjamin analisa a expansão da percepção e a própria recriação de uma nova espacialidade a partir da cultura cinematográfica:

Nossos bares e nossas ruas metropolitanas, nossos escritórios e salas mobiliadas, nossas estações de estradas de ferro e nossas fábricas pareciam ter-nos trancado de forma definitiva. Então veio o filme e invadiu este mundo aprisionante, despedaçado pela dinamite em um décimo de segundo, de maneira que agora, no meio de suas amplas ruínas e escombros, nós calmamente e aventuradamente vamos viajar. Com o close up o espaço se expande, com a câmara lenta o movimento é estendido. O engrandecimento de uma tomada não faz mais preciso aquilo que em qualquer caso era visível, apesar de pouco claro: ele revela novas formações estruturais totalmente novas do assunto. (BENJAMIN, 2005, p. 18, tradução nossa).

Segundo esta perspectiva, o olho que apreendeu a ver por meio de novos hábitos criados pelas mudanças econômicas, sociais, políticas e culturais, por novas descobertas e invenções, entre as quais se incluem as novas tecnologias, desenvolve uma capacidade perceptiva que é capaz de destruir a “aura” (BENJAMIN, 2005, p.05, tradução nossa)57 de um

objeto, anteriormente cultuado pela sua unicidade. Produz-se uma percepção cujo sentido da equivalência das coisas cresceu a tal grau que é extraído mesmo de um objeto único, por meio da reprodução.

Pois as tarefas que encaram o aparato humano da percepção nos pontos de mudança da história não podem ser resolvidas por recursos ópticos, ou seja, por contemplação, sozinhos. Elas são dominadas gradualmente pelo hábito, sob a direção da apropriação tátil. A pessoa distraída, também pode formar hábitos. Mais, a habilidade de dominar certas tarefas em um estado de distração, prova que sua solução tornou-se uma questão de hábito. Distração, como apresentada pela arte apresenta um controle dissimulado a um grau no qual novas tarefas tornaram-se solucionáveis por apercepção. (BENJAMIN, 2005, p.05, tradução nossa).

O ensaio de Benjamin é citado, ainda hoje, como uma das referências clássicas nas questões levantadas pela reprodutibilidade, opondo-se à obra única, inacessível ao corpo social como conjunto. Por outro lado, de acordo com Benjamin, “por meio dos meios técnicos de reprodução de um trabalho artístico, sua adequação para exibição cresceu de tal forma que a transformação quantitativa entre seus dois pólos tornou-se uma transformação qualitativa de sua natureza” (BENJAMIN, 2005, p.09, tradução nossa).

57A autenticidade de uma coisa é a essência de tudo o que é transmissível do seu começo, abrangendo desde sua duração substantiva ao seu testemunho da história que ela experienciou. Desde que o testemunho histórico está baseado na autenticidade, o primeiro, também, é colocado em risco pela reprodução, quando duração substantiva deixa de acontecer. E o que é realmente colocado em risco quando testemunho histórico é afetado é a autoridade do objeto. Poder-se-ia incluir o elemento eliminado no termo “aura” e mais a frente dizer: que o que fenece na era da reprodução mecânica é a aura do objeto de arte. Este é um processo sintomático cuja significação aponta para além das fronteiras da arte. (BENJAMIN, 1936, p.05, tradução nossa).

A massa é uma matriz da qual todo comportamento tradicional em relação às obras de arte propõe-se atualmente em uma nova forma. Quantidade foi transmutada em qualidade. A massa de participantes, grandemente aumentada, tem produzido uma mudança na maneira de participação. (BENJAMIN, 2005, p.21, tradução nossa)

Por estas razões, as funções sociais do objeto artístico sofrem um deslocamento do valor de culto associado às obras de cunho artístico para o valor de exibição e de entretenimento. Entretanto, Benjamin respondendo a Abel Gance, que na época considerava que a linguagem pictorial conduzia a uma regressão ao nível egípcio de expressão (2005, p.10), afirma que a linguagem não havia amadurecido porque os olhos contemporâneos não estavam ajustados a ela, não a respeitavam, não a cultuavam, nem à sua expressão. Ou seja, o novo padrão de ordem ainda não havia se imposto totalmente. Benjamin defende a ruptura e a reorganização modernas em nome da utopia socialista, em que seus trabalhos encontram subsídios ideológicos:

A reprodução mecânica de arte muda a reação das massas em relação às artes. A atitude reacionária em reação à uma pintura de Picasso muda em uma reação progressiva em relação a um filme de Chaplin. A reação progressiva é caracterizada por uma fusão direta, íntima, de prazer visual e emocional com a orientação de um especialista. Tal fusão tem uma grande significação social. Quanto maior o decréscimo na significação social da forma artística, mais profunda a distinção entre criticismo e apreciação pelo público. (BENJAMIN, 2005, p.16-17, tradução nossa).

O processo de contínua reconstrução do tecido sistêmico atravessou aceleradamente todo o século XX e adentrou o XXI gerando novos padrões de controle e de ordem. A visão de Benjamin antecede a visão contemporânea de Oliveira e Gonzalez, embora as autoras não imprimam em suas teorizações o mesmo aporte ideológico: na cultura e nos processos criativos nela inseridos, os textos codificados em diversas linguagens ou códigos modelizadores são meios pelos quais se podem identificar o contínuo processo de recodificação e Ressignificação58 dos conteúdos ou mensagens circulantes (OLIVEIRA, 2005,

p.02). Isto se dá não só pela informação que se pode desprender daí, mas pelas formas de sua organização, no que Oliveira denomina “sistema normativo da ordenação dos enunciados” (2005, p.02). Tal ordenação é ciclicamente auto-organizada (GONZALEZ, 2004) por movimentos de ruptura e levantamento de hipóteses continuados, em que o próprio código funciona como mediador ou meio.

Atuar dentro do sistema de um código, ou linguagem, de acordo com estas hipóteses, deve compreender tanto o aspecto de fechamento do todo, “demarcado, regido por

determinadas expectativas combinatórias” (OLIVEIRA, 2005, p.02) como o aspecto de abertura, por meio do qual a linguagem é renovada nas trocas com outros códigos.

Para tanto, no início do século XXI -dadas às propagadas mudanças advindas das renovações radicais dos sistemas e verificadas durante todo o século XX e, em particular, a partir de sua segunda metade- deve-se definir a consistência do conceito de informação no universo criativo contemporâneo das pós-vanguardas produtivas. Deve-se, também, inquirir como ocorre a coleta de informação que aí tramita e os contextos de sua veiculação e articulação cultural, em um momento em que as crenças existentes já não atendem às necessidades informacionais para que os processos comunicacionais se realizem de forma eficaz. Delineia-se assim um corpus científico englobado pela Ciência Cognitiva, pela Semiótica e pela Ciência da Informação, em um conjunto verdadeiramente transdisciplinar ainda por definir-se totalmente59.

59 Definindo a ciência cognitiva como: “um esforço contemporâneo, com fundamentação empírica, para responder questões epistemológicas de longa data, principalmente aquelas relativas à natureza do conhecimento, seus componentes, origens, desenvolvimento e emprego” (GARDNER, 1985, p. 19. tradução nossa).

3. PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO MENTAL E CRIATIVIDADE

Que são as palavras impressas num livro? Que significam estes símbolos mortos? Nada, absolutamente. Que é um livro se não o abrirmos? É simplesmente um cubo de papel de couro, com folhas. Mas, se o lemos, acontece uma coisa rara: creio que ele muda a cada instante. Jorge Luiz Borges Seguindo a tendência analítica que procura identificar os processos cerebrais acionados pelas diversas situações de interação, busca-se esclarecer, a partir deste capítulo (conforme Modelos que se têm construído nas Ciências Cognitivas durante o século XX e no início do presente século) como se processa a aquisição das representações de conhecimento. De acordo com eles, estas representações de conhecimento, também entendidas como memorização, partem da vivência de diversas situações informacionais cuja repetição reforça ou refuta aprendizados. Nos indivíduos da espécie humana, providos de um sistema sensitivo, os órgãos mediadores da percepção das informações (visão, audição, tato, paladar e olfato) registram-nas de forma única, exclusiva e individualizada de assimilação da realidade na construção das representações que passam pelos filtros da bagagem cognitiva e das perturbações internas. Sobre elas serão montados esquemas e quadros de imagens constantemente renovados pela adição de novas experiências, sedimentando de forma dinâmica o conhecimento. Quando, por alguma razão, os esquemas e quadros mostram-se ineficazes na solução de alguma situação, os organismos em desequilíbrio buscam reequilibrar-se por meio de mecanismos convencionados como criativos. As linguagens e codificações são, nesta visão, os organizadores dos mecanismos de análise e síntese simultânea de situações da vivência individual e coletiva. Cabe, portanto, fazer neste ponto um levantamento e descrição destes modelos, escolhidos por relevância no presente trabalho, para o seu melhor entendimento.