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Resíduos orgânicos urbanos: seus problemas e soluções

Como analisar a utilização dos descartes humanos urbanos produzidos em grandes proporções, fruto de um consumo desenfreado, e associá-los ao sistema de reciclagem? Isso nos impõe inúmeras condições.

As cidades brasileiras, por não terem sido concebidas para aproveitar os insumos (leia-se resíduos) por elas descartados, viraram locais de geração de poluentes. A vida nesses locais não associa estratégias que revertam as matérias secundárias (nome dado aos materiais que podem ser utilizados como produto reciclado) em fonte de recursos. O Brasil pouco investe nesse setor; dos 5.507 municípios, só 135 municípios possuem coleta seletiva, ou seja, apenas 2,5 % das cidades prestam esse serviço, e com enfoque voltado à reciclagem dos materiais secos (papéis, plásticos, vidros e metais). Essa baixa adesão à reciclagem se justifica com a seguinte explicação: custa em média 8 vezes mais a operação da coleta de forma seletiva que a coleta convencional de lixo.

Vamos apresentar diversos programas de (re)aproveitamento dos descartes urbanos que rompem com a visão de que reciclar é

uma atividade cara, como se ninguém auferisse lucro nesse processo. Quanto será que ganham as empresas coletoras de lixo e a indústria que beneficia os reciclados?

Rompendo com essa visão de que reciclar é caro, alteramos os modelos que subsidiam a reciclagem e estabelecemos parcerias em que o poder público também participa dos lucros, ampliando essa questão para os campos da melhoria ambiental, social, etc. Afinal, com o modelo de reciclagem que se pratica no Brasil, somente as indústrias obtêm vantagens.

Vendo pelo ângulo das indústrias, perde-se a possibilidade de explorar a gama de ações que envolvem a prática da reciclagem. Deve­ se dissecar ao máximo suas funções sociais, ambientais e econômicas para compreender as relações que a reciclagem alcança.

O consumismo potencializa muito o ato do descarte, pois os produtos são cada vez mais sofisticados, apresentados com embalagens produzidas para aguçar o desejo de possuí-los, além de contar com o marketing, que estimula sua venda. O problema é que também carregam uma enormidade de material que será descartado. Assim, cada vez mais tipos diferentes de produtos são oferecidos aos nossos desejos, e, ao consumi-los, contribuímos para aumentar o descarte de lixo.

A contradição que encontramos nessa relação entre consumo e descarte cria uma interface que está levando à escassez de matéria-prima virgem; do outro lado da balança, temos um enorme estoque de matéria secundária, que está disponível na forma de lixo. E os países ricos têm um papel importante na contribuição para esse desequilíbrio.

Mas será que o vilão da história é somente o descarte do resíduo seco? Como fica a questão da matéria orgânica, um dejeto que acompanha o homem desde seu surgimento na Terra, que pode e deve ser aproveitada?

Devemos pensar da seguinte maneira: se não existisse o consumo estimulado e a própria obsolescência dos produtos, ainda assim teríamos a necessidade básica de aumentar a produção global dos alimentos (consumo necessário), pois, a cada ano, acrescentamos 80 milhões ao habitantes no planeta, sem considerar que 1/6 da população mundial se encontra passando fome ou no estado de subnutrição. Como obter esse aumento na produção de alimentos se as terras disponíveis para a agricultura, em boa parte dos países, já são exploradas há muito tempo? Será que apenas a adubação química conseguirá resolver o problema de reposição dos nutrientes da terra e das plantas?

Um relatório da FAO, Organização de Alimento e Agricultura das Nações Unidas, descreve a fome da seguinte maneira: “Não é uma

condição transitória. É crônica. É debilitante. Às vezes, é fatal. Aflige as vidas de todos que são afetados e solapa as economias nacionais e os processos desenvolvimentistas por quase todo o mundo em desenvolvimento" (Brown, 2001).

Como a alimentação é uma necessidade para qualquer ser vivo, a preocupação em como obtê-la da melhor forma, com qualidade e quantidade suficientes para suprir a demanda, sempre esteve presente na ação de entidades como a ONU, a FAO, o Banco Mundial, etc., bem como na ação de programas de governos locais, sendo objeto de discussão nos fóruns mundiais com representação dessas entidades.

O objetivo aqui é mostrar como pode ser aproveitada a matéria orgânica descartada, que até hoje é o produto mais desprezado. Como exemplo desse desprezo, podemos citar o fato de que, nas campanhas de coleta seletiva, o enfoque é sempre dirigido à reciclagem dos materiais secos, produtos que possuem valor econômico estabelecido pelo mercado, ao passo que a matéria orgânica é classificada como lixo, exatamente por não possuir

empresas que a transformem em produto.

A única forma de comprovar a viabilidade do uso racional da matéria orgânica é demonstrá-la na prática, pois ainda existe o conceito de que reciclar é mais caro que enterrar (leia-se jogar no aterro). Essa idéia é defendida por diversos departamentos públicos que gerenciam resíduos e por grandes empresas privadas que operam nesse mercado da limpeza. Trata-se de uma política que só contabiliza o custo do processo na reciclagem. Nessa matemática, os demais benefícios não são computados e a soma sempre leva em conta onde se obtém o lucro com maior facilidade e o que dá menos trabalho. Assim, novamente caímos no aterro.

Para rebater esse pensamento, serão apresentados diversos programas de reciclagem que operam prioritariamente com a utilização da matéria orgânica descartada, comprovando, assim, que reciclar é, na maioria das vezes, mais barato que jogar fora, além de ser eficiente e não poluidor.

Trata-se de ações desenvolvidas no âmbito do

aproveitamento do material descartado, tais como o Programa FEIRA LIMPA, desenvolvido para a Prefeitura de São Paulo, e o Sistema de Reciclagem Integrada, concebido para a CEAGESP (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo) - maior distribuidora de alimentos da América Latina e a terceira do mundo em volume comercializado (10.000 ton/dia), sendo também a maior geradora privada de resíduos orgânicos do Brasil (média de 100 ton/dia).

No caso da CEAGESP, aplicamos os 3 R's (Reduzir, Reutilizar e Reciclar) através de um programa concebido pela empresa e denominado Sistema de Reciclagem Integrada. São utilizadas sobras orgânicas nos projetos de alimentação humana, produção de ração animal e farinha de peixe, compostagem e energia térmica.

O Sistema de Reciclagem Integrada e o FEIRA LIMPA são programas que possuem, em sua metodologia de operação, a concepção de aproveitar o descarte dos materiais secundários orgânicos como fonte de recursos. Para isso ocorrer há que se separar a matéria orgânica, pois ela não é homogênea, e o ato de separá- la nas suas diferentes composições (frutas, verduras, legumes, coco verde, palha, pescado etc.) nos proporciona a condição de negociá-la como uma matéria-prima (commodity).

Separar só não basta; é preciso haver quem a utilize. As pessoas que trabalham no setor de reciclagem conhecem uma frase que explica esse fato: “sem mercado consumidor é enterrar em separado”. Deve-se encontrar uma viabilidade econômica para ela, e isso só ocorre se existirem parceiros que atuem no mercado de reciclagem e se a matéria secundária servir de insumo para ele. A parceria entre o poder público e o privado tem-se apresentado como a opção mais sensata, pois se consegue encontrar empresários (parceiros) que utilizam esses descartes.

Além de separar e encontrar mercado, em alguns casos temos também a necessidade de consorciar diversas técnicas para viabilizar a reciclagem da matéria orgânica. Quando foram colocadas em prática as idéias na CEAGESP, em março de 2003, saiu-se do zero na questão do aproveitamento e atingiu-se, em 35 meses, a reciclagem de 10.496 toneladas, sem que a empresa tivesse que gastar um centavo sequer. Isso foi possível ao se utilizarem técnicas integradas ao gerenciamento do descarte orgânico.

Só para exemplificar, quem pode imaginar que vísceras de peixe (cabeça, barrigada, espinhos etc.), um lixo indesejável, possuem um valor altíssimo quando processado?

Cada quatro toneladas de vísceras se transformam em uma tonelada de farinha de peixe, comercializada a US$500.00

ou R$1.078,50 (por tonelada).

De acordo com a Tabela 1, os valores pagos demonstram que - o lixo representa o maior custo, comparado com a reciclagem, pois

temos que transportá-lo e pagar o aterro.

O descarte de resíduos possui diferentes níveis de custos, conforme pode ser visto na Tabela 1. Atualmente, para encaminhar os resíduos ao aterro sanitário, a CEAGESP paga R$77,69 por tonelada enviada, pagando os custos de transporte e aterro. Por meio de parcerias, esse custo pode ser diminuído. É o que acontece com os projetos desenvolvidos com o assentamento Dom Tomáz Balduíno, no município de Franco da Rocha (a 41,85 km de São Paulo), e com a empresa Agrorgânica, em Campinas (a 96 km de São Paulo).

Sem que haja despesa alguma para ambas as partes envolvidas, essas duas propriedades recebem as sobras orgânicas do ETSP para serem transformadas em composto. A vantagem desses projetos é que a CEAGESP paga somente o transporte do material orgânico. Ou seja, para encaminhar os resíduos ao assentamento, gasta-se R$17,58 por tonelada. Já para que sejam destinados à empresa Agrorgânica, paga-se R$40,32 por tonelada enviada.

Nas outras categorias de reciclagem (Ração, Palha, Madeira, Banco Central de Alimentos, etc.) a economia é de 100%, isto é, não há custo algum para a CEAGESP.

Assim, inverteu-se a lógica atual de que reciclar é dispendioso. Com isso, ampliou-se a base de sustentação de todos os programas e foi elaborada uma nova fórmula de aproveitamento dos desperdícios urbanos, estabelecendo graus de prioridades entre eles. Definiu-se que todo e qualquer alimento que esteja em condições de consumo humano deve ir para o Banco Central de Alimentos. Quando o alimento não apresentar essa condição, ele é destinado à produção de ração animal, e por último ele deve ser encaminhado para a produção de composto.

Tabela 1: Demonstrativo de custos da coleta de resíduos na CEAGESP. Categoria - Nível Valor* R$ US$ Coleta Interna - 1 197.828,00 91,714.42 Aterro - II 77,69 36.02

Reciclagem / Franco da Rocha - III 17,58 8.15

Reciclagem / Campinas - IV 40,32 18.69

Reciclagem / Outros - V 0,00 0.00

*Cotação do dólar comercial do dia 10/02/2006: R$2,157.

Passos importantes foram dados na busca de solução para a reciclagem, pois técnicas próprias foram desenvolvidas, além da incorporação de outras de terceiros para incrementar ao máximo o aproveitamento dos descartes.

Numa visão geral, consideramos que o Brasil tem que introduzir ações nesse sentido. Deve-se pesquisar o que deu certo em outros locais e fazer adaptações à realidade brasileira, pois existe um enorme número de pessoas desempregadas e que precisam trabalhar. Nesse caso, isso implica a criação de técnicas que utilizem mão-de-obra e a associação da tecnologia empregada às nossas condições climáticas, sociais e econômicas, pois não adianta importar equipamentos de países desenvolvidos e achar que aqui os resultados serão os mesmos. Não se trata da eficiência da máquina, mas sim da composição do lixo e sua relação direta com a técnica e com os objetivos planejados.

Comprovando a questão acima, sobre a falta de investimento em técnicas de aproveitamento da matéria orgânica descartada, observe que o país inteiro só utiliza 1,0% dessa matéria-prima na forma de compostagem (dado retirado do site do CEMPRE - Compromisso Empresarial para Reciclagem / www.cempre.org.br). Ou seja: enterram-se diariamente 60 mil toneladas de um produto que poderia ser transformado em fertilizante agrícola, tendo-se,

ainda, que tratar o chorume e o gás metano eliminado por ele. Além disso, a agricultura brasileira é dependente da importação de milhares e milhares de toneladas de adubo mineral.

Dessa forma, gastamos 2 (duas) vezes: quando enterramos os descartes orgânicos e quando importamos o adubo mineral (químico) necessário para repor os nutrientes da terra. A primeira, com o pagamento para transportá-los e enterrá-los (custo aterro - II), totaliza 21,9 milhões de ton/ano de matéria orgânica (60 mil ton/dia X 365 dias, tendo como ano de referência 2000). A segunda, com a necessidade que temos anualmente em adquirir adubo mineral importando-o e pagando-o em dólares, totaliza 12.426 milhões de toneladas no ano de 2000 (dado retirado do site do CEMPRE. Estudo realizado pelo IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, SECEX/MDIC - Secretaria de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, ANDA - Associação Nacional para Difusão de Adubos e SIACESP-Sindicato das Indústrias de Adubos e Corretivos Agrícolas do Estado de São Paulo / www.cempre.org.br).

O desafio imposto é como recuperar parte desse produto nobre e desprezado, que quando descartado é tratado como lixo, pois, para se produzir alimento, é preciso ter disponíveis terra agricultável, sementes, adubo, energia, máquinas, mão-de-obra, defensivos químicos e transporte da lavoura até a mesa das pessoas.

Os programas que serão apresentados irão demonstrar que, quando o poder público investe na reciclagem, conferindo a ela estrutura e contribuindo para criar um mercado para o uso dos materiais reciclados, ele estabelece as bases de sustentabilidade para a sociedade e o meio ambiente.

Diante disso, concluímos que a reciclagem mais importante desenvolvida nesses programas foi a das idéias, na mudança de antigos conceitos.

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