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4 A CONTROVÉRSIA JURÍDICA ACERCA DA USUCAPIÃO ESPECIAL DE

4.1 RESOLUÇÃO DO CONFLITO SOBRE A MATÉRIA POR MEIO DA APLICAÇÃO

No capítulo anterior verificou-se a existência de uma possível antinomia jurídica, visto que a mesma Constituição Federal, que assegura o direito de adquirir a propriedade por meio da usucapião especial de imóvel urbano, também concede autonomia para o Município legislar sobre o parcelamento do solo urbano, inclusive no que diz respeito à fixação de dimensões mínimas e máximas para os lotes urbanos.

Conforme visto, o Município exerce essa autonomia por meio dos seus planos diretores, os quais são instituídos por meio de leis complementares.

No referido caso o conflito ocorre pelo fato de os Municípios, por meio dos seus planos diretores, delimitarem para os lotes urbanos dimensões mínimas superiores a 250 metros quadrados e com isso obstarem as ações de usucapião especial de imóvel urbano, que por sua vez exigem área máxima de até 250 metros quadrados.

Conforme visto no presente trabalho, as antinomias jurídicas representam um problema para o ordenamento jurídico. A presença de uma antinomia provoca imensa

insegurança jurídica, principalmente para aqueles que precisam recorrer ao Judiciário para satisfazerem seus direitos.

Diante dessa situação, busca-se uma solução com base nos critérios hierárquico, cronológico e da especialidade para solucionar essa antinomia, conforme explanado no capítulo anterior.

No presente caso, ressalta-se que a usucapião especial de imóvel urbano possui embasamento no artigo 183 da Constituição Federal, enquanto os planos diretores exigem metragem mínima superior a 250 metros quadrados e são instituídos por meio de leis infraconstitucionais.

Logo, em princípio, é possível solucionar a antinomia aparente pela aplicação do critério hierárquico, no qual a Constituição Federal por ser norma superior prevalecerá em relação à lei infraconstitucional, que, por sua vez, é considerada norma inferior. Entretanto, interpretando-se que a lei infraconstitucional (plano diretores) veio tratar com maior especificidade sobre o assunto, poderia se cogitar que esta prevaleceria sobre a Constituição Federal, à luz do critério da especificidade.

Portanto, nesse caso, ocorrendo a possibilidade de aplicação de dois critérios, os quais apresentam soluções antagônicas, proporcionando ao aplicador do direito uma situação de indecidibilidade, restaria configurada uma antinomia real.

Sob esta ótica, consoante visto em capítulo próprio, no caso de haver possibilidade de aplicar mais de um critério para solucionar a antinomia, deverá recorrer-se aos critérios solucionadores de antinomia de segundo grau, os quais são utilizados para resolver o conflito entre os seguintes critérios: hierárquico e cronológico, de especialidade e cronológico, hierárquico e especialidade, sendo este último referente à hipótese em debate.

Para escolher um dos critérios, o intérprete deverá atentar para o fato do direito, na sua acepção objetiva, ser representado pelo conjunto de textos legais reunidos em um ordenamento jurídico, e que este ordenamento deve representar, por exigência social, um todo organizado, em que cada norma deve ocupar o lugar que lhe corresponde e desempenhar a função que lhe compete. (ESTIGARA, 2005).

Como a estrutura da ordem jurídica é uma construção escalonada de normas supra e infra-ordenadas umas às outras, em que uma norma do escalão superior determina a criação da norma do escalão inferior, o problema do conflito de normas dentro de uma ordem jurídica põe-se de forma diferente conforme se trata de um conflito entre normas do mesmo escalão e de um conflito entre uma norma de escalão superior e uma norma de escalão inferior. (KELSEN, 2009, p. 144).

Entre uma norma de escalão superior e uma norma de escalão inferior, isto é, entre uma norma que determina a criação de outra, não pode existir qualquer conflito, visto que a norma do escalão inferior tem o seu fundamento de validade na norma do escalão superior. Se uma norma do escalão inferior é considerada como válida, tem de considerar-se como estando em harmonia com uma norma do escalão superior. (KELSEN, 2009, p. 144).

Portanto, aplicando a teoria da construção escalonada do ordenamento jurídico, tem-se a seguinte situação: a Constituição Federal, que assegura a usucapião especial de imóvel urbano, é a norma fundamental, a qual determina a criação de lei infraconstitucional para instituir os planos diretores municipais, logo, o plano diretor tem o seu fundamento de validade na Constituição Federal.

Assim, não podem os Municípios, por meio de seus planos diretores, obstarem os direitos dos cidadãos, os quais são assegurados pela Constituição Federal, norma esta responsável pela validade desses instrumentos urbanísticos.

Outro aspecto importante a destacar é que ao examinar o conflito à luz do artigo 183 da Constituição Federal, o qual dispõe acerca da usucapião especial de imóvel urbano; e do artigo 182, § 1º, o qual estabelece que o plano diretor é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana dos Municípios; bem como do artigo 30, inciso VIII, que delega competência aos Municípios para promover, por meio de seus planos diretores, o adequado parcelamento do solo urbano; verifica-se que ambas as normas encontram-se no mesmo plano de validade, entretanto, a primeira possui eficácia já com a sua aplicação, enquanto as demais necessitam de uma lei infraconstitucional para atingir a sua finalidade.

A autonomia que a Constituição Federal confere ao Município de auto-organizar- se, tem limites explícitos no próprio artigo 29, caput da Carta Magna. O referido artigo menciona que o Município organiza-se e rege-se por sua Lei Orgânica e demais leis que denotar mas, para poder organizar-se desta forma deverá observar os princípios da Constituição Federal e os da Constituição do seu respectivo Estado-membro. (CASTRO, 2006, p. 52).

Ainda, nesse sentido, Meirelles (1997, p. 84) discorre que

A autonomia não é poder originário. É prerrogativa política concedida e limitada pela Constituição Federal. Tanto os Estados-membros, o Distrito Federal como os Municípios têm a sua autonomia garantida constitucionalmente, não como poder de autogoverno decorrente da Soberania Nacional, mas como um direito público subjetivo de organizar o seu governo e prover a sua Administração, nos limites que a Lei Maior lhes traça.

Por fim, ressalta-se que o ordenamento jurídico deve ser embasado pelo princípio da dignidade da pessoa humana, o qual constitui um fundamento da Constituição Federal.

De acordo com Martins (2008, p. 63), a dignidade da pessoa humana fornece ao intérprete uma pauta valorativa essencial à correta aplicação da norma e à justa solução do caso concreto.

Ainda, esclarece que enquanto valor incorporado ao sistema jurídico constitucional sob a forma de princípio, previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal:

[...] a dignidade da pessoa humana sinaliza uma inversão da prioridade política, social, econômica e jurídica, até então existente, do Estado brasileiro constitucionalmente idealizado. Passa-se, a partir do texto de 1988, a ter consciência constitucional de que a prioridade do Estado (política, social, econômica e jurídica) deve ser o homem, em todas as suas dimensões, como fonte de sua inspiração e fim último. [...] Destarte, deixa-se de lado uma visão patrimonialista das relações políticas, econômicas e sociais para conceber o Estado, e o sistema jurídico que ele estabelece a partir destas relações, como estrutura voltada ao bem estar e desenvolvimento do ser humano. Assim a pessoa humana passa a ser concebida como centro do universo jurídico e prioridade justificante do Direito. (MARTINS, 2008, p. 72).

Desta forma, prever a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil, significa dizer que uma das finalidades do Estado brasileiro é a de propiciar as condições materiais mínimas para que as pessoas tenham dignidade.

Portanto, negar o direito de adquirir a propriedade por meio da usucapião especial de imóvel urbano, devido à limitação imposta pelos Municípios de uma metragem mínima para os lotes urbanos superior ao teto exigido como requisito para configuração da usucapião especial urbana pela Constituição Federal, implicaria na violação do princípio da dignidade humana, tendo em vista que a finalidade das normas previstas na Constituição Federal que asseguram o direito à usucapião é justamente a de garantir o direito fundamental à moradia.

4.2 ESTUDOS COMPARATIVOS ENTRE A JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE