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A responsabilidade civil do Estado por atividade não arriscada: a questão dos fatores de atribuição

V: enunciados aprovados Brasília, Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários, 2012 p 22.

1.2 O ―RISCO‖ COMO FUNDAMENTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL: A OBJETIVAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO.

1.2.1 A responsabilidade civil do Estado por atividade não arriscada: a questão dos fatores de atribuição

A questão relativa aos ―fatores de atribuição‖ recebeu maior visibilidade no Direito argentino sendo pouco debatida no Brasil, com destaque para o trabalho de André Fontes382. A referida questão poderá também ser tratada sob a nomenclatura de nexo de imputação, como faz Fernando Noronha383, ressaltando-se que não se deve ser confundi-lo com a imputação enquanto elemento constitutivo da culpa384, restrito à seara da responsabilidade civil subjetiva.

Independentemente da expressão adotada, no presente estudo se utilizará preferencialmente ―fatores de atribuição‖, resta inquestionável sua importância para a responsabilidade civil que, se torna inviável sem um critério de imputação385, pois, conforme ensina R. Vázquez Ferreyra, ―al hablar del factor de atribución se hace mención al fundamento que la ley toma en consideración para atribuír jurídicamente la obligación de indemnizar un daño, haciendo recaer su peso sobre quien en justicia corresponde‖386

.

Vê-se, portanto, que os ―fatores de atribuição‖ são um pressuposto da responsabilidade civil, que consiste no motivo de ser da atribuição do dever de indenizar ao devedor decorrente dano sofrido por determinada pessoa, o componente que aponta o responsável e o relaciona ao fato danoso387. Em suma, são a ―razão especial‖ que diante da ocorrência de um dano injusto apresenta em definitivo aquele que deverá suportar os efeitos do dano388, quando presente todos os elementos.

381LIMA NETO, Francisco Vieira. Ato antijurídico e responsabilidade civil aquiliana – Crítica à luz do Novo

Código Civil. Revista Brasileira de Direito Comparado. Rio de Janeiro, n. 29, p. 103-146, 1990. p. 141.

382FONTES, André. Os fatores de atribuição na responsabilidade por danos. Revista da EMERJ. Rio de Janeiro,

v. 2, n. 5, p. 207-2015, 1999.

383NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 495. 384

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 45.

385

BUERES, Alberto J. El acto ilicito. Buenos Aires: Hammurabi, 1986. p. 112.

386FERREYRA, Roberto A. Vázquez. Responsabilidad por daños (elementos). Buenos Aires: Depalma, 1993.

p. 193.

387NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 495-496.

388FERREYRA, Roberto A. Vázquez. Responsabilidad por daños (elementos). Buenos Aires: Depalma, 1993.

103 Dentre os ―fatores de atribuição‖ mais conhecidos encontra-se a culpa em sentido amplo, que durante muito tempo, como já se viu, foi o mote da responsabilidade civil, e o risco, normalmente aludido como o fundamento da responsabilidade objetiva. Todavia, como bem alerta André Fontes a utilização do termo no plural justifica-se na ideia de um catálogo amplo e aberto389, de maneira que não se esgotam na culpa e no risco, podendo-se falar, atualmente, em solidariedade, seguridade social, equidade, igualdade do ônus público, entre outros390.

Ressalta-se que o rol de ―fatores de atribuição‖ está sujeito a ampliações, modificações e renovações, tratando-se de elemento cuja conformação dá-se em um dado momento histórico, numa sociedade determinada e numa específica ordem jurídica391-392, que por certo sofre influências ideológicas393, que implica tanto uma conotação econômica394 quanto questões relativas aos interesses juridicamente protegidos395.

389FONTES, André. Os fatores de atribuição na responsabilidade por danos. Revista da EMERJ. Rio de Janeiro,

v. 2, n. 5, p. 207-2015, 1999. p. 213.

390FONTES, André. Os fatores de atribuição na responsabilidade por danos. Revista da EMERJ. Rio de Janeiro,

v. 2, n. 5, p. 207-2015, 1999. p. 215.

391GHERSI, Carlos Alberto. Teoría general de la reparación de daños. Buenos Aires: Astrea, 2003. p. 87. 392

Pela clareza, reproduz-se o posicionamento de Carlos Alberto Ghersi: ―el factor de atribución, que es concretamente lo que en un momento histórico y en una sociedad determinada, el orden jurídico sindica como la circunstancia o situación por la cual un sujeto de derecho debe asumir la reparación del daño. Esta decisión en la conformación de los factores de atribución, es decir, su restricción o ampliación, depende de una disputa ideológica, producto de la contradicción que venimos señalando en toda esta temática: por un lado, las empresas, el poder económico, tratando de restringir los factores, y por otro las personas, los consumidores, ampliándolos para una mayor protección de sus derechos, y el Estado, arbitrando o en connivencia con alguno de los sectores en pugna (p.ej., cuando el Poder Ejecutivo vetó los arts. 13 y 40 de la ley 24.240 que imponían la responsabilidad solidaria y objetiva de la cadena de producción, circulación, distribución y comercialización de bienes y servicios)‖ (GHERSI, Carlos Alberto. Teoría general de la reparación de daños. Buenos Aires: Astrea, 2003. p. 87-88).

393 Ideologia no âmbito deste estudo é apenas a concepção de que as proporções políticas de um Estado refletem

não apenas no Poder Judiciário, mas também no direito produzido em sua égide, o direito legislado e também a doutrina, não é que não possa emancipar-se, mas não se deve ignorar que os reflexos estão presentes. Adotamos, portanto, a concepção fraca de ideologia, conforme distingue Mario Stoppino: ―No significado fraco, Ideologia é um conceito neutro, que prescinde do caráter eventual e mistificante das crenças políticas. No significado forte, Ideologia é um conceito negativo que denota precisamente o caráter mistificante de falsa consciência de uma crença política‖ (STOPPINO, Mario, Ideologia. In BOBBIO, Noberto; MATEUCCI, Nicola; PASQUINO Gianfranco (Orgs.). Trad. Carmen C, Varriale et al. (coord.). rev. geral João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. Dicionário de Política. 11ª ed. Brasília: UNB, 2005. p. 591)

394

FONTES, André. Os fatores de atribuição na responsabilidade por danos. Revista da EMERJ. Rio de Janeiro, v. 2, n. 5, p. 207-2015, 1999. p. 215.

395

Nesse sentido expõe Rodrigo Xavier Leonardo: Destaca-se, cada vez mais, a compreensão de que o dever de indenizar é proveniente de uma imputação, que pode ter por fundamento a culpa, o risco, a repartição dos custos das externalidades provenientes do desenvolvimento de uma atividade econômica, ou, ainda, uma outra escolha política que, em maior ou menor medida, pressupõe um sopesar de valores entre os interesses de proteção dos potenciais lesados e os incentivos ou a repressão a determinada conduta ou atividade (LEONARDO, Rodrigo Xavier. Responsabilidade civil contratual e extracontratual: primeiras anotações em face do novo código civil brasileiro. Revista de Direito Privado. São Paulo, n.19, ano 5, p.261-269, jul./set. 2004. p. 265).

104 Para a conformação do rol dos ―fatores de atribuição‖ contribui ativamente a doutrina e jurisprudência396, uma vez que, se é usual que a lei ao dispor sobre o dever de indenizar já deixe consignado o fundamento para tanto, não se pode ignorar que em outras tantas vezes, como já se disse, o legislador acaba por não ser claro em relação à ofensa a determinado bem jurídico. Em tais casos, cumpre à doutrina e a jurisprudência indagar a ―razão de ser‖ que obriga ao ressarcimento397.

Os ―fatores de atribuição‖ subdividem-se em dois grupos: os subjetivos e os objetivos, que consubstancia a índole da responsabilidade civil, é dizer, se trata-se de responsabilidade civil subjetiva ou objetiva. Os primeiros baseiam-se exclusivamente na culpa e no dolo e são considerados subjetivos porque se leva em consideração uma análise valorativa da conduta do causador do prejuízo a fim de atribuí-la como certa ou errada, a partir dos padrões sociais398, a partir da análise da culpabilidade e da voluntariedade, de maneira que ―decorrem de qualquer ato voluntário dirigido ao fato causador do prejuízo‖ 399.

Consideram-se ―fatores de atribuição‖ subjetivos a culpa e o dolo, para os quais é relevante a análise da ilicitude da conduta do agente causador do dano, logo, é possível se falar em identidade entre a culpa, em sentido amplo, e a imputabilidade, na medida em que ―só o ato imputável a alguém enseja a qualificação de ato ilícito, sendo que por envolver a ideia de capacidade de discernimento a imputabilidade torna-se elemento inseparável da culpa‖ 400

.

De outro lado, os ―fatores de atribuição‖ objetivos são assim considerados porque dispensam a análise relativa à valoração da conduta do agente causador do dano, inclusive no que concerne à ilicitude, tornando irrelevante a voluntariedade e a culpabilidade, de maneira que a reparação do dano passa a fundar-se em uma causa externa401, estipulada em lei, pela doutrina ou jurisprudencialmente.

Os ―fatores de atribuição‖ objetivos são reflexos da evolução da responsabilidade objetiva no período pós-industrial, pois se antes era inviável pensar na responsabilidade civil

396FERREYRA, Roberto A. Vázquez. Responsabilidad por daños (elementos). Buenos Aires: Depalma, 1993.

p. 196.

397GONZÁLES, Matilde M. Zavala de. Responsabilidad por el daño necesario. Bueno Aires: Astrea, 1985.

p.134.

398LIMA NETO, Francisco Vieira. Ato antijurídico e responsabilidade civil aquiliana – Crítica à luz do Novo

Código Civil. Revista Brasileira de Direito Comparado. Rio de Janeiro, n. 29, p. 103-146, 1990. p. 141.

399FONTES, André. Os fatores de atribuição na responsabilidade por danos. Revista da EMERJ. Rio de Janeiro,

v. 2, n. 5, p. 207-2015, 1999. p. 213.

400MONTENEGRO. Antônio Lindbergh. Ressarcimento de danos pessoais e materiais. Rio de Janeiro: Ed.

Lúmen Júris, 1999. p. 32.

401FONTES, André. Os fatores de atribuição na responsabilidade por danos. Revista da EMERJ. Rio de Janeiro,

105 sem culpa, o fenômeno de esfacelamento dos fundamentos estruturais da culpa fez surgir e ascensão de ―elementos de caráter social, de eqüidade, de solidariedade, de prevenção, de assistência e de segurança concorrem para a imposição da nova concepção de responsabilidade, de forma a lhe possibilitar a sua sustentação, formando os seus pressupostos‖ 402

.

Dentre os ―fatores de atribuição‖ objetivos encontra-se ―risco criado‖, o qual já se abordou, no entanto, os ―fatores de atribuição‖ objetivos possuem uma cartilha ainda mais ampla, que permite a aplicação também para outras situações em que a atividade geradora do dano não será considerada arriscada, nos moldes já estudados. Segundo Vázquez Ferreyra podemos considerar como ―fatores objetivos de atribuição‖: a solidariedade403

, a seguridade social, o risco criado; a equidade, a garantia e a tutela especial do credito; igualdade do ônus público, seguro e critério econômicos. Carlos Alberto Ghersi acrescenta, ainda, o abuso de direito404 e a violação dos deveres decorrentes da boa-fé objetiva405, ressaltando-se que tal rol é exemplificativo, encontrando-se em expansão, e que muitas vezes são aludidos de forma implícita406.

Diante desse rol de ―fatores jurídicos‖ resta perceptível que o risco embora de grande relevância na ―sociedade de riscos‖, em que se transformou a sociedade pós-industrial, não pode ser aludido como único fundamento da responsabilidade objetiva o Estado, tampouco se dizer que o art. 37, §6° da Constituição Federal adotou a teoria risco-administrativo.

A Constituição Federal adotou a responsabilidade objetiva do Estado como padrão e o fundamento para tanto pode ser encontrado sempre na solidariedade e ora no risco, ou na seguridade social, ou igualdade do ônus público, que é na verdade uma expressão do Princípio

402

ALONSO, Paulo Sérgio Gomes. Pressupostos da responsabilidade civil objetiva. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 43.

403Cabe rememorar que esta, muito embora indicada como fator de atribuição da responsabilidade objetiva,

possui uma abrangência muito mais ampla, atuando como verdadeiro fundamento ético-jurídico da responsabilidade civil seja ela subjetiva ou objetiva. Neste contexto relevante consideração é realizada por Ricoeur em ―O Justo 1‖, quando estuda a reformulação do conceito jurídico de responsabilidade o jusfilósofo aponta que ―a virtude da solidariedade, invocada em apoio às pretensões exclusivas da filosofia do risco, está prestes a ser desalojada de sua posição ética eminente pela própria ideia de risco que a engendrou, uma vez que a proteção contra o risco orienta para a procura de segurança mais do que para afirmação da solidariedade‖ (RICOEUR, Paul. O Justo 1: a justiça como regra moral e como instituição. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008. p. 51.

404GHERSI, Carlos Alberto. Teoría general de la reparación de daños. Buenos Aires: Astrea, 2003. p. 200-

201.

405GHERSI, Carlos Alberto. Teoría general de la reparación de daños. Buenos Aires: Astrea, 2003. p. 205-

206.

406Nesse sentido, explica Vázquez Ferreyra: ―cabe advertir que estos dos factores de atribución no han sido

contemplados en forma expresa por la jurisprudencia, ni tampoco analizados por la doctrina, pero creemos que inconscientemente funcionan como justificativos de indemnizaciones otorgadas por los tribunales‖ (FERREYRA, Roberto A. Vázquez. Responsabilidad por daños (elementos). Buenos Aires: Depalma, 1993. p. 214).

106 da Igualdade e, ainda, na equidade, bem como na miscigenação e combinação desses fundamentos, ressaltando-se a influência, ainda que implícita, dos critérios econômicos.

Ao presente estudo é relevante a solidariedade e a igualdade na distribuição do ônus público, a primeira já foi estudada, portanto, passa-se ao estudo da segunda, tangenciando-se, também, a equidade enquanto fator de atribuição.

1.2.2 A igualdade na distribuição do ônus público como fundamento da responsabilidade